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CRÔNICA
Bom dia, em que posso ajudar?
Roberta

“Quando cheguei hoje tinha fila lá embaixo pra entrevista. Se um entra, outro sai. Assim que é.” Crônica enviada ao inbox do Esquerda Diário por uma jovem trabalhadora do telemarketing. Envie textos de denúncia, crônicas, relatos e matérias. O Esquerda Diário preservará sua identidade se necessário.

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9h da manhã. Faz sol lá fora. Se faz calor, já não lembro; o ar condicionado muda tudo. Primeira ligação. Bom dia, senhor, no que posso ajudá-lo? CPF, nome completo, endereço, telefone. Uma questão de segurança, senhor. Dois minutos e quarenta e seis segundos. Obrigada por aguardar, desculpa pela demora.

Ar condicionado resseca, Falar sem parar dá sede. A empresa agradece pela sua ligação. Estendo a mão pra pegar a garrafa. Cai a 15a ligação. Bom dia, com quem eu falo? Bebo água depois. Obrigada, só um momento. Ele expira o ar com força. Essa vai ter que ser rápida. Droga! Senhor, ocorreu um problema com o seu produto. Eu entendo, senhor. Infelizmente, só em 72h úteis, senhor. 17. No que eu posso ajudar? Só um momento, senhora. “Claro.” Água.

A 18a vai bem. Dois minutos e quinze segundos. Vou fechar em três. “Quem está atendendo, pede um minuto.” Só um momento, senhora, vou receber informações internas. De pé. “Ontem foi passado o procedimento novo, mas subiu erro. Quem não quer trabalhar, pode pegar a mochila e ir embora. Mas não atrapalha minha equipe.” Quando cheguei tinha fila lá embaixo pra entrevista. Se um entra, outro sai. Assim que é. Cinco minutos e treze segundos. Obrigada por aguardar, senhora. “Acelerem o atendimento, tem fila. Antes de saírem de pausa, peçam permissão.” Faltavam cinco minutos para a minha. Tenha um excelente dia, senhor. “Tá bom.” Então tá.

20. Bom dia, com quem eu falo? Hoje a tendinite resolveu dar o ar de sua desgraça. Sim, senhor. Esse procedimento é um pouco demorado, mas já estou terminando. Pausa programada. Catorze minutos. O senhor deseja anotar o número do protocolo? Tenha um bom dia. Cigarro, isqueiro, celular. Encho a garrafa na pausa do almoço.

São dois lances de escada, doze degraus em cada um. Acendo um cigarro. “Moça, que bom, me empresta o isqueiro?” Sei como é. Em dez minutos não dá pra descer, procurar isqueiro, fumar e subir. “Dez minutos é osso.” Sim. É foda. Faltam quatro. Dois são pra subir. Dois minutos pro xixi.

Em cima. Disponível. Bom dia, no que posso ajudar? Sento. A cadeira está bamba. Ela fica torta, pouca coisa, três ou quatro graus. Mas seis horas por dia, seis dias por semana e a lombar sente.

24. O senhor pode me passar o CPF, por gentileza? “Já é a segunda vez que eu ligo aí, já passei meu CPF.” O representante da empresa pra quem atendemos está com problemas no celular. Ele fica na mesma sala que nós, separado por uma divisória do chão ao teto. Quando chega, depois de todos nós, dá bom dia apenas ao coordenador, representante da empresa que nos paga. Ele sabe o procedimento padrão de uma operação, mas não quer passar o CPF pra resolver o problema dele. E grita. Grita com a atendente da operadora do celular dele como se estivesse na própria casa. Mas não: ele está em uma sala de operação. Grita e nos atrapalha. Desculpa, senhora, eu não entendi. A senhora pode repetir, por favor? Fazer o cliente repetir informações denota falta de atenção. É falha grave. Se ouvirem essa ligação, eles zeram minha monitoria de qualidade. “De boa, moça, eu trabalho na Vivo. A gente fica atendendo essas ligações sem parar, chega uma hora que a gente nem sabe mais o que tá fazendo.” Pois é, senhora.

28. O representante da empresa, ou o chefe do chefe da minha supervisora, continua tentando resolver o problema do celular. Senhora, ocorreu um problema com o seu pedido. Eu vou passar pro setor responsável e em 72h úteis a senhora vai receber um contato. “Vocês são todos irresponsáveis. Toda vez que eu ligo vocês só me dão prazos e prazos e não resolvem o meu problema!” O chefe do chefe da minha supervisora continua a gritar com a atendente. Não quer aceitar o prazo de tratativa do chamado dele. Sim, senhora, eu garanto que vão retornar. Não garanto, na verdade. Eu estou apenas passando o prazo que a empresa me manda passar através de um representante que grita com uma atendente que, como eu, só pode passar um prazo pré determinado e também não tem como garantir que vão resolver o problema porque não lhe dão condições de resolver nada; ela que conhece de cor e salteado todos os problemas e que, a essa altura, sabe exatamente o que precisaria ser feito pra resolvê-los. Ele grita com a atendente do outro lado da linha. Ao gritar com ela, grita conosco também.

32. Desculpa, senhor, sinceramente. O senhor está coberto de razão, foi falha nossa. Eu peço desculpas, mas é só o que eu posso fazer. Às vezes bate o desespero e acaba o sorriso na voz. Será que é a isso que se referem quando falam pra gente ter sentimento de dono? Se sentir culpado por um problema que nós não causamos? Difícil ter sentimento de dono com um salário mínimo e com medo de ser cortado por um erro impossível de evitar porque não explicaram sequer como identificar uma determinada variável. O coração acelera, a mão fica suada e o sistema trava. Dono não se sente culpado, nem desesperado, nem precisa almoçar em vinte minutos. Sentimento de dono eu não sei nem como é. Só sei do sentimento daquela outra atendente cujo nome não sei, nem o rosto, nem a voz eu conheço. Eu só sei, palavra por palavra, o que ela ouviu do chefe do chefe da minha supervisora. E que “a gente fica atendendo essas ligações sem parar, chega uma hora que a gente nem sabe mais o que tá fazendo.”

Hoje eu vou me dar ao luxo de comer comida. Em vinte minutos. Menos dois pra descer, cinco pra comprar a marmita, três pro xixi, um pra encher a garrafa de água, dois pra subir. Hoje eu vou me dar ao luxo de comer comida. Em sete minutos. Depois de comer, eu vou querer fumar um cigarro. Faço xixi na próxima pausa.

39. Boa tarde, em que posso ajudá-lo? Não sei o que me incomoda mais. Se é a dor no pulso, a dor nas costas, o xixi que eu seguro porque não posso ir ao banheiro fora das minhas três pausas, o sistema que é um lixo, o salário, a sensação de que cada um aqui poderia fazer coisas incríveis se pudesse desenvolver suas habilidades, seus gostos, suas potencialidades escondidas pelo trabalho sem sentido que exercemos. Se é a fila lá fora, dezenas de jovens apreensivos e esperançosos de serem contratados por uma empresa que “paga certinho”, essa coisa mínima que de repente virou um ponto positivo; se é a amiga demitida há um mês sem nenhum motivo, o comentário do coordenador que tem certeza de que a mulher que está gritando com a atendente na PA ao lado há 40 minutos está estressada porque não tem marido. Muitas de nós não temos, e não é bem isso que nos estressa.

45. O senhor pode confirmar os dados de cadastro por uma questão de segurança? São milhares de mulheres, quase todas negras, estressadas pela tensão constante de adiar sua demissão porque cedo ou tarde ela virá. Não é algo que está sob nosso controle individual, não se trata exatamente de fazer por merecer. Senhor, esse é o procedimento, é só o que eu posso fazer pelo senhor. Esse é o procedimento padrão: contratação está sempre aberta; pela lógica, é sempre temporada de corte de pessoal. “Pelo menos”, disse uma atendente, “aqui não tem isso de homem ganhar salário maior.” Nós não ganhamos o mesmo salário de um homem aqui, são eles que estão recebendo um salário feminino. E negro.

49. “Você fica como uma putinha tentando me fazer acreditar que tá querendo resolver o meu problema. Só que, comigo, é o meu procedimento que você tem que seguir.” Senhor, eu entendo seu nervosismo, mas eu estou tratando o senhor com educação. “Você está falando com um homem de verdade, não com moleque. Imagino qual deve ser o seu grau de instrução, então vou te ensinar a trabalhar.” O olho enche de lágrimas. Vamos à matemática básica. O salário mínimo é de R$954,00. A mensalidade de uma faculdade particular costuma ficar entre R$500,00 e R$800,00. O vale-refeição não passa no mercado e mal dá pros dias em que você trabalha. O vale-transporte não cobre, necessariamente, sua ida e volta do trabalho. Tem ônibus que só passa, mesmo, no sistema que faz a roteirização e calcula seu VT. As universidades públicas, bem, essas não são exatamente uma realidade no telemarketing. Fácil imaginar nosso grau de instrução.

54. Não está certo atender tanta ligação. Como cobrar que não suba erro se temos que correr com o atendimento pra não dar fila? Hoje teve muita fila na operação. Se olharmos em volta, são várias PAs vazias. No telão do metrô, ontem, o anúncio de que mais de 20 mil postos de trabalho foram fechados no país em 2017. Cresce o trabalho informal. Teve fila lá embaixo, também, só que essa era pra entrevista. As PAs seguem vazias. Pra cada um que entra, um sai.

Quanto tempo vai demorar pra começar a chegar no meio da operação de um dia como hoje um jovem que vai entrar, atender por algumas horas pra diminuir a fila e ir embora, ganhando por aquelas poucas horas e indo dormir sem saber quando vão chamá-lo de novo, de preferência antes de as contas – estas implacáveis, com dia certo pra vencer - chegarem?

14h58. Faltam dois minutos pro final do expediente. A cada dia que passa eu sinto mais raiva desse “sentimento de dono” que só o patrão e os políticos têm. O único sentimento que me vem quando bato o ponto é o dos meus colegas de trabalho, das dezenas que fazem fila lá embaixo, da atendente com quem o chefe do chefe da minha supervisora gritou. Um sentimento que precisa virar ódio, que é pro sentimento do dono ficar pior do que o nosso.

14:59. O telefone toca. Pelo menos é a última. 55. Boa tarde, em que posso ajudá-lo?

 
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