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TRIBUNA ABERTA
Transfobia no UFC: é hora de dar um “K.O.” nos discursos de ódio
Ádamo Antonioni
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Diante da repercussão que tive com o primeiro artigo que escrevi para o Esquerda Diário, sobre a transfobia no vôlei que a atleta Tiffany Abreu vem sofrendo, decidi dar continuidade ao assunto para responder às objeções que se levantaram, nas redes sociais, a respeito do tema. Mas antes, agradeço às manifestações de carinho, de apoio, de solidariedade daqueles que, realmente, leram e compreenderam a argumentação exposta.

Neste artigo, além de refutar as principais réplicas, trago para a discussão uma nova atleta que também vem sofrendo com a transfobia: é a americana Fallon Fox, ex-lutadora de MMA e mulher trans. Ela é a nova vítima dos ideólogos do gênero perfeito. Aqueles indivíduos que idealizam uma feminilidade no estilo “bela, recatada e do lar”. Ao confrontar essa feminilidade bizarra que nem nos contos da Disney vemos mais, Fox tem sido alvo da artilharia do ódio que tenta desqualificá-la, diminuí-la e, principalmente, desumanizá-la.

Houve até um lutador brasileiro do UFC que gravou um vídeo de repúdio à americana, sob ordens expressas de um pastor evangélico e deputado federal. O lutador foi categórico e se ofereceu para “dar uma surra nesse cara” [sic], de acordo com as suas próprias palavras. Não convém nem citar o nome dele (muito menos do pastor) para não dar publicidade ao ódio. Infelizmente, muitas pessoas apoiaram o discurso inflamado de preconceito, talvez esperando que a tal luta acontecesse, como forma de expurgar essa população T (travestis e transexuais) que não deveriam estar ocupando esses espaços, segundo a lógica daqueles que promovem um verdadeiro terrorismo de gênero.

A Fox, assim como a Abreu, são alvos desse tipo de comentário porque as pessoas, simplesmente, não conseguem aceitar que elas são mulheres. Apesar do tratamento hormonal, apesar do implante de silicone, apesar da cirurgia de redesignação sexual. Nada disso importa. O ódio cega a tal ponto que os terroristas do gênero não querem parar para ouvir o que elas têm a dizer, eles querem apenas incitar a violência, promover o linchamento virtual, e seguir naturalizando a barbárie através de falas relacionadas a “surrar, bater, espancar”... como se não houvessem dados o suficiente que comprovem que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais do mundo: a cada 48 horas, uma é assassinada.

Quem se dedica à análise de discurso sabe o quanto afirmações como “dar uma surra nesse cara” estimulam a violência real que as pessoas sofrem no dia-a-dia. A palavra tem poder, não diz o ditado popular? Talvez uma pessoa comum que ouça esse tipo de fala se sinta motivada em, de fato, “dar uma surra” na primeira transexual que ver pela frente, afinal, o próprio atleta (que deveria ser um exemplo) deu a sugestão. Através de uma palavra mal colocada vinda de alguém com notoriedade, qualquer um se sente no “poder” de praticar a ação daquilo que foi dito.

Ainda que este mesmo lutador tenha dito sobre uma luta dentro das regras do UFC, num octógono, com tempo cronometrado e um juiz arbitrando. Esse tipo de combate não seria justo, pelo simples fato de que a Fallon Fox ser uma Mulher, por mais que os preconceituosos tentem negar isso. O tratamento hormonal na qual ela foi submetida, diminuiu sua força física, consequentemente, baixou o seu rendimento esportivo. Seria, portanto, uma covardia! Mas o que esperar de um país onde uma travesti é linchada publicamente com direito a vídeo gravado de seu espancamento e não há nenhuma comoção nacional para isso? Como aconteceu com a travesti Dandara dos Santos, 42, no Ceará, em março do ano passado. Além do mais, a Lei Maria da Penha também protege mulheres trans. Há casos no país que demonstra isso, como aconteceu em Goiás, em 2011, e no ano passado, no Acre. Ou seja, a legislação brasileira já reconhece essas pessoas como mulheres, só os terroristas de gênero que ainda não.

Acusaram-me, no primeiro artigo, de uma possível “generalização” ao “taxar” de transfóbico todos os que não concordavam com mulheres transexuais jogando com mulheres cisgênero (ou seja, mulheres que seguem a linearidade sexo biológico-gênero-identidade sexual). É claro que discordar não te torna, necessariamente, transfóbico. Não foi isso que quis dizer. Acontece que quando se desrespeita a identidade de gênero da atleta, chamando-a por pronomes masculinos ou termos pejorativos que reforçam estigmas sociais, isso nos leva a suspeitar sobre quais as reais intenções ao atacar a dignidade da pessoa em questão. E, embora eu tenha recebido comentários equilibrados e inteligentes que discordavam de mim, a grande maioria não foi assim, foi transfobia pura mesmo: cheia de hostilidade e odienta.
Comentários estes que tentaram achar guarida numa suposta “liberdade de expressão”, agiam como ratos de esgoto desorientados tentando achar abrigo sob a luz do Sol. “Esta é a minha opinião e eu tenho o direito de dizer o que quiser”, disseram eles. Não! Liberdade de expressão não é liberdade de opressão. O direito de se expressar não te autoriza xingar, caluniar ou difamar uma pessoa. A liberdade de expressão, assim como o Sol, clarifica, ilumina nosso entendimento sobre os limites da nossa fala: entre a opinião e a ofensa. Assim, devemos ter responsabilidade quando dizemos algo, como está previsto na Constituição Federal, quando aborda os crimes contra a honra.

A liberdade de expressão nos leva ao ataque ao “politicamente correto” que também berraram muito. Bom, falar desse conceito é complexo e escapa aos propósitos deste artigo. Apenas quero pontuar que eu identifiquei um certo padrão de respostas por parte dessas pessoas que antagonizaram nas redes sociais. Elas enxergam no “politicamente correto” uma espécie de “invencionice esquerdista” responsável em censurar as “opiniões” das pessoas. Opiniões estas, cabe reforçar, que pregam toda forma de aversão às minorias sexuais.

Sem entrar numa discussão teórica a respeito da natureza do chamado “politicamente correto”, vamos apenas fazer um exercício de lógico a partir de uma questão semântica: se esta extrema-direita diz ser contra o “politicamente correto”, significa que ela se considera “politicamente incorreta”. Aí, se pesquisarmos num dicionário de antônimos o oposto de correto, vamos encontrar não apenas a palavra “incorreto”, como também “errado, desonesto, injusto, traiçoeiro, desleal, desleixado, grosseiro”. São com estas definições que estas pessoas querem se associar?.

Outra objeção recebida diz respeito à fisiologia/anatomia. Alguns viram minha crítica à Biologia como uma forma de negação ou anulação dos estudos realizados nesta área, como as diferenças de ordem cromossômica em um homem e uma mulher. Pretendo escrever um artigo só para falar sobre as ciências biológicas. Por ora, digo que não sou contra à Biologia, ela tem um papel importante, sim, na constituição dos corpos, mas não determinante.

Até porque, “uma razoável porcentagem de dez por centro da população tem variações cromossômicas que não se encaixam exatamente nos conjuntos de categorias XX-fêmea e XY-macho”, atesta a filósofa americana Judith Butler.

Ou seja, existem homens que podem ser XX, conhecida como Síndrome De la Chapelle, ou mulheres XY, a chamada Síndrome de Swyer. Além de tantas outras variações cromossômicas que demonstram o quanto a própria Biologia se encarrega de refutar esse totalitarismo de gênero que quer, a todo custo, encaixar as pessoas em categorias binárias. Estima-se que, no Brasil, de oito a dez mil homens são XX, a mesma proporção para as mulheres XY, e onde estariam estas pessoas?

Será que aqueles que promovem um terrorismo de gênero nas redes sociais já fizeram seu mapeamento genético? Seria uma grande ironia do destino descobrir que seus próprios corpos, ou de seus familiares, comprovam o quanto a Biologia é plural, aberta à diversidade, e não um princípio dogmático que exclui pessoas.

Fallon Fox põe abaixo esse dogmatismo biologicista, que tenta tornar pressupostos biológicos como verdades absolutas, inquestionáveis. Em nenhum momento neguei que haja uma base biológica para os corpos masculinos e femininos no primeiro artigo, minha empreitada, como propõe a Filosofia, foi a de indagar apenas. Mas os terroristas de gênero, imbuídos de um fanatismo cientificista, simplesmente não aceitam que suas verdades sejam questionadas, e, movidos pelo medo e pela ansiedade, contra-atacam violentamente, perdendo completamente a racionalidade.

Dizem eles que Fox fez uso desproporcional de sua força contra uma adversária (mas esquecem de dizer que a mesma lutadora foi nocauteada pela Ashlee Evans Smith, mulher cis). Ora, quem diz isso, então, não pode ver o que aconteceu com a lutadora Heather Hardy, que teve o rosto desfigurado pela Kristina Williams, por causa de um chute. O juiz teve que interromper a luta, o rosto de Hardy ficou tomado pelo sangue. Também não poderão assistir à orelha de Leslie Smith que “explodiu” após um cruzado que recebeu de Jessica Eye. Todas elas mulheres cisgêneros e ninguém se encheu de piedade religiosa com Smith ou Hardy, por terem perdido a luta de forma tão avassaladora.

Se os terroristas de gênero realmente se preocupassem com a integridade física feminina, seriam os primeiros a combater a violência que elas enfrentam no dia-a-dia. Segundo dados do Relógio da Violência, a cada 2 segundos uma mulher é vítima de agressão física ou verbal no Brasil. Cadê os moralistas fazendo campanha pela igualdade, entre homens e mulheres, no mercado de trabalho, na política, nas religiões monoteístas, nos afazeres domésticos, etc? Atacar a Fallon Fox ou a Tiffany Abreu é uma estratégia para desviar o foco da atenção: o problema não é os riscos de agressões iminentes que milhões de mulheres estão expostas, o problema é duas mulheres trans que estão buscando cidadania através do esporte.

São os mesmos que não veem problema algum em músicas do tipo “taca bebida, depois taca pica, e abandona na rua”. Num país onde a cada 11 minutos uma pessoa é estuprada, conforme o Mapa da Violência. A cultura do estupro passa por este processo de desumanização da vítima, que transforma a mulher num mero objeto do prazer masculino; a mulher não é uma vida, é qualquer coisa cujo destino será o abandono no primeiro beco que aparecer, depois da violência sofrida. E mais: a culpa será da vítima, enquanto que o agressor seguirá impune, descarregando seu ódio nas Fallons e Tiffanys da sociedade.

É hora de dar um “K.O” (nocaute) neste ódio desenfreado. “K.O” é, inclusive, o título de uma das músicas mais famosas da cantora Pabllo Vittar, uma drag queen que também vem enfrentando muitos preconceitos por aqueles que tentam desqualificar seu trabalho. Este nocaute só será possível a partir do momento em que os oprimidos tomarem consciência da opressão na qual estão submetidos.

Ao compreender a força opressora que tenta nos desumanizar, não significa que nós, os oprimidos, vamos nos tornar opressores. É isso que vocifera a extrema-direita, ao nos acusar de “ditadura gayzista”, transferindo aos oprimidos o status do opressor. E o que entristece é saber que tem oprimido que compra esse discurso.

Digo isso porque recebi alguns comentários de pessoas assumidamente gays e que se opõem à causa transexual. Saibam vocês que, os confrontos nos octógonos da vida só serão possíveis de serem vencidos se estivermos todos_ LGBT e apoiadores_ unidos contra o opressor que, neste momento histórico, tem sido mais forte que nossas batalhas isoladas. Como diria Paulo Freire: “Esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos”.

E então, quando superarmos o ódio dos terroristas de gênero, só nos restará amar, amar as diferenças, amar a diversidade, amar o outro em sua singularidade: “cê bateu tão forte com o teu amor. Nocauteou, me tonteou. Veio à tona, fui à lona, foi K.O”...

Autor:
Ádamo Antonioni.
Mestre em Comunicação pela UFMS. Graduado em Jornalismo e Filosofia.
e-mail: [email protected]

 
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