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INTERNACIONAL
Há 214 anos da Revolução Haitiana
Juan Luis Hernández

O dia 1º de janeiro de 1804, há 214 anos, Jean-Jacques Dessalines proclamou a independência da antiga colônia francesa de Saint Domingue, reafirmando a abolição da escravidão e a igualdade e liberdade de sua população.

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Juramos viver livre e independentes e preferia a morte antes que voltem a nos acorrentar!
“Declaração da Independência do Haiti”, 01/01/1804

Em uma pequena ilha do Caribe, se impunha uma heroica e surpreendente revolução. A Revolução Haitiana foi a única rebelião de escravos triunfante em toda história da humanidade, a única que conseguiu constituir um Estado nacional próprio, e a primeira que conquistou a independência no que é hoje a América Latina.

Excluído das recentes celebrações do segundo centenário, o processo haitiano permanece submergido nas penumbras da história. Desde o início, esteve inscrito o impensado, o inimaginável, o incrível: os escravos africanos jamais poderiam ser protagonistas de um episódio de tamanha envergadura histórica.

A legislação sobre a escravidão que era regida na França (o “Código Noir”, promulgado por Luís XIV em 1685) estabelecia que os escravos eram bens móveis, e que em tal caráter ingressavam como patrimônio de seus donos. Não eram considerados seres humanos suscetíveis de ser sujeitos de direitos, senão mero objetos à disposição de seus amos.

Mas no dia 22 de agosto de 1791, na Planee Nord da Ilha de Saint Domingue, até então a colônia mais próspera da França e do mundo, aconteceu o impossível: explodiu a rebelião. Sob o céu luminoso do Caribe, os “bens móveis” as “coisas”, os condenados da Terra, os últimos entre os últimos, acenderam o fogo da rebeldia que não se apagaria por mais de uma década.

Os rebeldes incendiaram os canaviais, aniquilaram as patrulhas e destacamentos das tropas coloniais, obrigaram os europeus e se esconderem nas cidades costeiras. Nos meses e anos seguintes, foram enviados governadores e delegados da França monárquica primeiro, depois da França republicana, cujas manobras foram desarticuladas uma e outra vez pelos insurretos.

Foram rechaçadas as invasões da Espanha, proveniente da parte ocidental de Saint Domingue e da Inglaterra, que pretendia apoderar-se da ilha e reimplantar a escravidão. Todas as tentativas reacionárias foram derrotada pelos antigos escravos, que em dez anos de luta duríssima, forjaram sua experiência político-militar e formaram suas próprias direções e projetos políticos.

Muitos pesquisadores analisam esse processo como um episódio importante, mas colateral, dentro do contexto mais amplo da Revolução Francesa, desconhecendo ou relativizando as tradições culturais e políticas próprias dos escravos africanos. Nós entendemos que existiu um substrato comum que fez possível que homens trazidos violentamente da África, pertencentes a distintas nações e falando diferentes idiomas, pudessem se colocar de acordo para iniciar e dar continuidade para a luta revolucionária.

O vudu, uma religião produto do sincretismo de crenças animistas africanas com o culto cristão e o criolo, um idioma surgido da mescla do francês com vocábulos procedentes de diversos idiomas da África, foram os elementos aglutinadores que permitiram uma primeira enunciação e circulação das ideias políticas entre as massas insurretas. Os escravos que fugiam e se auto organizavam, tinham práticas de organização e de luta fundamentais para a continuidade do movimento rebelde.

Nesse contexto, a insurreição de 22 de agosto foi preparada mediante reuniões clandestinas prévias, onde participaram delegados das plantações e dirigentes dos escravos fugitivos. Os insurretos aproveitaram habilmente as crescentes disputas entre brancos, mulatos e a população escrava, mesclada pelos confrontos entre monárquicos e republicanos. Por isso, entendemos que a Revolução Haitiana é incompreensível por fora dos marcos da Revolução Francesa, mas por sua vez teve também uma dinâmica própria e uma incidência nada desprezível nos eventos da metrópole.

A abolição da escravidão na ilha, pela qual vinham lutando ardorosamente os rebeldes, foi proclamada no dia 29 de agosto de 1793 por Léger-Félicité Sonthonax, um delegado jacobino que compreendeu que se a França queria conservar a colônia, necessitava dos insurretos para enfrentar a Espanha e a Inglaterra. A proclamação de Sonthonax foi enviada à França, onde foi debatida na Convenção.

Entre a atitude da Assembleia Nacional Francesa, que nos anos prévios rechaçou petições muito mais moderadas dos mulatos (homens negros livres radicados na ilha) exigindo igualdade de direitos políticos com os brancos, e a atitude da Convenção, que no dia 4 de fevereiro de 1794 aprovou, em meio a uma vibrante debate, a abolição da escravidão na França e suas dependências ultramarinas, mediou um processo de radicalização política revolucionária para qual contribuíram os sucessos antilhanos.

Com a expulsão final dos espanhóis e ingleses, a aceitação da abolição da escravidão por parte da França e o ascenso para a condução da revolução por parte do líder moderado Toussaint L’ouverture, parecia que tudo se encaminhava para autonomia política da ilha no marco de um entendimento amistoso com a França. Mas em 1801 Napoleão Bonaparte enviou um poderoso exército que pretendia retomar novamente o país e reestabelecer o regime escravocrata. Os franceses prenderam L´ouverture e o deportaram para a França, onde ele morreu no cárcere. Se desencadeou então, a última fase da revolução, a mais radicalizada, onde a população afrodescendente se uniu para expulsar o invasor francês, defender a liberdade tão duramente conquista e agora sim, proclamar a independência em relação à França.

Toussaint L’ouverture

Em novembro de 1803, dizimado por uma implacável guerra de guerrilha e recorrentes epidemias de febre amarela, o exército francês teve que se render formalmente frente ao novo chefe rebelde, Jean-Jacques Dessalines, e evacuar a ilha com a ajuda de uma frota britânica. Proclamada a independência, em um inédito ato de reparação histórica, os vencedores descartaram o antigo nome colonial de Saint Domingue, e batizaram o novo Estado com sua atuação denominação, Haiti, como denominava sua terra o antigo povo taíno, habitantes originários da ilha exterminados pelos europeus,

Jean-Jacques Dessalines

No dia 20 de maio de 1805, foi promulgada a Constituição do Haiti, um texto compleco que estabeleceu um regime político imperial de características autoritárias e introduziu novas reformas sociais: a abolição da escravidão, os direitos sócias para homens, mulheres e crianças, o divórcio para unir, definitivamente, a igualdade e a liberdade, sem diferenças raciais ou de gênero.

A Revolução do Haiti foi uma revolução antiescravista e anticolonial, mas que, sem dúvida, não alcançou seus objetivos de liberação nacional. Foi um exemplo do que Marx denominava de “revolução em permanência”, isto é, o aprofundamento da revolução a partir da transformação do sujeito político-social protagonista, que a empurra para frente através de fases sucessivas cada vez mais radicais. Mas foi também um exemplo dos limites impostos aos processos emancipatórios quando ficam confinados dentro das fronteiras nacionais.

A revolução não conseguiu comover os cimentos da economia de plantação das Antilhas e na costa atlântica: os britânicos proibiram o comércio de escravos, mas mantiveram a escravidão em suas colônias; os franceses afogaram em sangue a rebelião antiescravista de Guadalupe; na Venezuela, apesar das proclamações de Simón Bolivar (1816) a escravidão foi reestabelecida e abolida em 1854; Nos Estado Unidos, Cuba e Brasil, a escravidão existiu até a metade do século XIX. Nesse contexto desfavorável, os sucessivos governos haitianos não conseguiram impulsionar projetos econômicos alternativos para relocalizar o país na economia mundial e terminaram com uma ruidosa “reconciliação” com a metrópole, pagando uma enorme indenização, ponto de partida de renovadas formas de exploração e dependência que agoniam até hoje a população caribenha.

Mas a heroica revolução na qual os antigos escravos enfrentaram e derrotaram os exércitos mais poderosos da Europa sob a consigna “liberdade ou morte”, não pereceu. Permanece na memória e no coração de homens e mulheres livres de todo o mundo, como aquele relâmpago que por um momento iluminou a potencialidade de um povo disposto a lutar até a morte para romper suas correntes.

 
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