A gramática com certeza tem uma explicação lógica para o fato de que a palavra "poema" pertence ao gênero masculino mesmo terminando com o sufixo -a, que costuma designar o gênero feminino. Mas há sobretudo uma cultura patriarcal que usa a linguagem pra se sobrepor e dizer que nem o gênero feminino pertence ao gênero feminino e que poema é masculino.
Mas Nina Rizzi não se curva a regras gramaticais ou a uma sociedade patriarcal e em seu "quando vieres ver um banzo cor de fogo" nos ensina que poema é no feminino, é a poema
segunda poema pra dentes
quero do teu sertão
ser a gogóia, que apatola
e come em pêlo, come esgalamido
Subverter o gênero da palavra "poema" é subverter a linguagem em um mundo em que a linguagem é usada como arma de opressão. Nina desrespeita essa linguagem com um profundo respeito pelo o que ela é capaz, ela desrespeita esse uso da linguagem como forma de opressão, deslegitima esse uso e coloca o sujeito como uma força maior que a da linguagem.
Mas se a linguagem possui esse poder ela também é uma impossibilidade; uma impossibilidade de ser, sendo apenas a representação. A poema fazendo uso da linguagem é também essa impossibilidade, e mesmo assim capaz de muito. Na segunda parte do "quando vieres ver um banzo cor de fogo" intitulada "amar a poema" parece reconhecer essa impossibilidade da linguagem.
Nina usa umas palavras bonitas que ninguém mais coloca nas poemas. São palavras que estão na boca do feirante da feira de domingo da rua de trás, da manicure do bairro, do cobrador do turno da manhã do ônibus pro trabalho, do ambulante que vende amendoim e abacaxi nos dias mais quentes; são expressões populares - como diz o artigo científico.
3. quando vieres ver um banzo cor de fogo
talvez a sida ou peste já nos tenha a todos
afectado a pele a não mais luzir o suor dos lombos
os olhos sejam o quê de duas coisas verdes.
também eu estalo e não terei estado em penedo
e faço sacrilégios pra que daqui a lá já não te deva
aqueles quase dois mil euros.
toda carne então é só essa coisa de meter
ternura. e os bocadinhos de lembrança
do lume à cera. vigília e nada.
quando vieres ver um banzo cor de fogo
oxalá não se enrugue esse couro que de tão velho
já não será tambor. oxalá cresçam pitangas, poemas.
As palavras que Nina Rizzi usa e a sua poema são deliciosas, tão deliciosas quanto lamber os beiços e todo o resto da fruta preferida que tu come até os fiapos grudados na semente. São tão deliciosas as palavras que Nina escolhe que queremos tirá-las da poema e sair usando em todos os lugares.
Há também na poema de Nina o sexo falado descaradamente. Um eu lírico que confessa que gosta de ser chamada de putinha sem preambulos, chamando a buceta de "gatinha" - porque o sexo também é um pouco ridículo -, declarando "pra porra co’lirismo". Um eu lírico que fode com homem e mulher. É assim que ela inicia seu livro com a parte 1. carne carne
antipoema
pra porra co’lirismo!
poesia concreta
é teu pau ereto por entre
minhas gretas e becos
Nina também é política porque a poema é seu corpo e voz, e seu corpo e voz são políticos, são voz e corpos femininos e negros que se afirmam e tomam lado em seus versos. Eu posso dizer muito mais sobre a poesia de Nina, mas quero dizer apenas: Leiam Nina Rizzi!
mergulho-risco quando pixo
é preciso cuidar bem do coração
te mando um salve enquanto
os manos incendeiam uma viatura aqui na rua
é preciso politizar a ferida
com a mão inteira acariñar a chispa
que arde fundo cá dentro. dá-me tua mão
é preciso cuidar bem do coração
NINA RIZZI
quer ser selvagem
quer des tudo
desmilitarizar
desescolarizar
descivilizar
na arte na tradução na poesia
na vida na vida na vida
arrisca desastres
nunca teve um nome ernesto
mas foi e é
ellena em chamas
"Autora dos livros de poemas Quando vieres ver um banzo cor de fogo (Patuá, 2017) e A duração do deserto (Patuá), Nina Rizzi (SP, 1983), vive atualmente em Fortaleza/ CE. Historiadora, poeta e tradutora, tem poemas, textos e traduções publicados em diversas revistas, jornais, suplementos e antologias. Publicou tambores pra n’zinga (poesia, Orpheu/ Ed. Multifoco, 2012) e Susana Thénon: Habitante do Nada (tradução, Edições Ellenismos, 2013). Edita a Revista Ellenismos – Diálogos com a Arte, e escreve seus textos literários no quandos. Atualmente traduz as Obras Completas de Alejandra Pizarnik."
bio da editora Patuá
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