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MORRE ANTONIO CANDIDO
Aos 98 anos, morre Antonio Candido, crítico fundamental e militante humanista
Vanessa Dias

A morte de Antonio Candido, aos 98 anos, representa a perda do mais importante crítico literário brasileiro. Não há como negar, tenha-se ou não acordo com a visão que ele estabeleceu da literatura brasileira, que sua obra marcou um divisor de águas na forma como aprendemos e ensinamos literatura, que até hoje imprime sua marca nos currículos de literatura, desde os cursos universitários até o ensino básico.

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Candido era o último representante vivo das primeiras gerações de notórios formandos da Universidade de São Paulo (USP), fundada como tal em 1934. Nascido em 24 de julho de 1918, o jovem Antonio Candido ingressou na Faculdade de Direito e na de Ciências Sociais da USP em 1939. O direito ficou pelo caminho, e nas Ciências Sociais ele se formou em 1942. Sua atividade intelectual intensa e muitíssimo vasta – que se manteve viva até seus derradeiros dias, com um texto ainda inédito sobre sua parceria com Oswald de Andrade concluído semana passada – se iniciou ainda durante a graduação. Em 1941, passou a exercer a crítica literária na revista Clima, ao lado de nomes fundamentais da crítica artística brasileira, como Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado e Gilda Rocha de Mello e Souza (com quem viria a se casar). Em 1942, torna-se docente assistente de sociologia na USP, onde foi colega de Florestan Fernandes. Em 1943 passa a escrever para a Folha da Manhã, onde deu continuidade à escrita de ensaios sobre autores fundamentais da literatura, inclusive as primeiras obras de Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.

O ensino de literatura na universidade só passou a ser um ofício de Candido em 1958, quando se tornou professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de Assis, hoje parte da Unesp, onde permaneceu até 1960. Nesse período publica a primeira obra que marcou a influência decisiva de Antonio Candido no estudo da literatura brasileira: é de 1959 o seu “Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos”, que ganharia novo fôlego em 1975 trazendo sua visão mais consolidada sobre o processo de formação da literatura brasileira em estreita relação com as literaturas europeias. Ali, Candido aponta sua visão de que só há uma literatura brasileira em sentido estrito a partir do romantismo, em que os autores ganham uma autonomia criativa em relação à colônia, ligada ao processo de formação da identidade nacional e até mesmo da independência política do país. Tal visão continua a embasar os currículos das universidades, como no próprio caso da USP, em que as escolas literárias brasileiras do período pré-romantismo ocupam um segundo plano na estrutura curricular. É bastante provável que nem o próprio Candido já concordasse com esse tipo de divisão, mas o peso da tradição na academia, seguindo a sua obra de 1975, se manteve até os dias de hoje.

Mas a influência de Candido no estudo da literatura e da sociedade brasileira está, certamente, muito além da visão sobre a formação de uma literatura autenticamente nacional. Tendo regressado à USP em 1961, somente em 1974 passa a ser professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada. Entre seus alunos encontram-se nomes de grande peso na academia, na crítica e inclusive na política brasileira, como Fernando Henrique Cardoso, Roberto Schwarz, Davi Arrigucci Jr., Walnice Nogueira Galvão e João Luiz Lafetá. Os cargos de importância que ocupou em sua carreira profissional são tantos que é difícil sintetizá-los. Limitamo-nos a citar a resumida lista feita por Walnice Nogueira Galvão em evento em homenagem a Candido em 1999: presidente da Cinemateca Brasileira por dois mandatos (1962 e 1977); planejamento do suplemento literário do jornal Estado de S. Paulo (1956); coordenação do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp (1976-1978). Foi premiado com alguns dos títulos mais renomados da literatura, como o Prêmio Camões, de Portugal (1998), o Prêmio Alfonso Reyes, do México (2005) e quatro vezes o Prêmio Jabuti.Antonio Candido também foi consagrado professor-emérito da USP e da UNESP e doutor honoris causa da Unicamp, de Campinas (SP), além de professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.

A origem de Candido com uma formação sociológica exerceu uma imensa influência em sua concepção de literatura, e isso representou uma das maiores guinadas na forma como se concebia a crítica literária. Se contrapondo a todas as escolas de influência formalista, Candido prezava a percepção de como o social se manifestava no literário. Em uma de suas críticas mais célebres, a “Dialética da Malandragem”, em que analisa o romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antonio de Almeida, Candido oferece uma mostra de seu método, em que tenta ver como o contexto social se expressa no conteúdo e na forma literária da obra, vendo ali a primeira manifestação literária do “malandro” e se contrapondo às prévias análises dessa obra.

Contudo, há outro aspecto fundamental da atividade de Candido que possui uma importância própria e também imprime sua marca na análise literária de Candido, com sua predominância para uma análise casada entre o literário e o social. Trata-se de sua militância política, presente desde os tempos de sua graduação. Assumidamente pertencente à uma esquerda de viés reformador, a militância de Candido se inicia na luta contra a ditadura de Getúlio Vargas, na Frente de Resistência da Faculdade de Direito. Depois de formado, integrou a Associação Brasileira de Escritores (ABDE), que reunia intelectuais que se opunham a regime “numa frente ampla que ia do centro à esquerda”, e a qual produziu “um dos primeiros manifestos contra o regime”, como apontado por Walnice Nogueira.

Com o fim do Estado Novo de Vargas, Candido integrou a Esquerda Democrática, que daria origem, em 1947, ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), no qual Candido teve uma militância ativa, ocupando cargos na direção em duas ocasiões e também conduzindo o jornal do partido, o Folha Socialista. Em 1950, para preencher a obrigatoriedade dos cargos concorrentes ao legislativo, Antonio Candido é lançado a candidato para deputado estadual. Mesmo fazendo parte do pequenino PSB e sem pretensões reais de se eleger, ele obteve 580 votos, um terço dos 1.500 necessários para se eleger na época.

Já como docente da USP, teve participação ativa no apoio à histórica ocupação feita pelos estudantes do prédio da Maria Antonia em 1968, onde era sediada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL). Ele fez parte de uma Comissão Paritária Central eleita. Depois, teve a iniciativa de recolher depoimentos sobre a destruição da faculdade que foi feita tanto pelos bandos paramilitares da direita (Comando de Caça aos Comunistas – CCC, sediado no Mackenzie) como pela ditadura oficial. Os relatos só puderam ser publicados em livro vinte anos depois. Foi um dos fundadores da Associação de Docentes da USP (Adusp), da qual foi o primeiro vice-presidente. Atuou, junto com D. Paulo Evaristo Arns, na Comissão Justiça e Paz; presidiu o lançamento da candidatura de Fernando Henrique Cardoso ao Senado em 1978. E, em 1980, fez parte da fundação do PT, tendo atuado no partido em diversas posições, como, por exemplo, à frente da Fundação Perseu Abramo. Em algumas de suas últimas aparições públicas, foi a um evento público na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas em 2009 para rechaçar a entrada da Polícia Militar no campus em um episódio de repressão a estudantes, funcionários e docentes. E em 2010 manifestou seu apoio à candidatura de Dilma Rousseff.

Suas posições políticas transparecem em sua obra fundamentalmente, como dissemos anteriormente, em sua insistência em considerar o contexto social das obras como determinante para a compreensão de um texto literário. Se isso pode parecer evidente para muitos hoje em dia, ainda assim representou um grande embate de visões no campo da crítica literária – e ainda o é muitas vezes. Se em grande número de universidades e na própria USP hoje prima a vertente de análise que considera o social como fundamental para a compreensão da obra, isso certamente está relacionado à herança de Candido em nossa tradição crítica.

Um dos textos mais explicitamente políticos da obra de Candido, e que até hoje se faz presente nos cursos de introdução à literatura ou de teoria literária dos estudantes de Letras, é o célebre “O direito à literatura”. Um texto em que Candido, pautando-se em valores humanistas e reformadores que embasaram seus posicionamentos políticos ao longo de toda sua vida e atuação profissional e militante, defende o direito à cultura e à literatura como direitos humanos elementares. É um texto que marca a noção de defesa da educação e do acesso à cultura de gerações de professores e estudantes; nele, percebemos os pontos mais fortes e fracos da fundamental obra de Candido. A defesa intransigente e aguerrida da educação e da cultura, de uma sociedade mais justa e igualitária, bem como a concepção por vezes idealista no plano da teoria, e reformista no campo político, que levou a que esse grande intelectual se fizesse, ao longo de décadas, porta-voz de uma esquerda cujo projeto estratégico jamais foi capaz de realizar os sonhos de Candido: que a literatura pudesse ser, enfim, um patrimônio de toda a humanidade.

Sem dúvida a obra de Candido permanecerá como um importante marco em nossa história, e que cada vez mais ela possa ser apropriada, debatida e criticada pelas novas gerações. A filha desse incansável pensador, Marina de Mello e Souza, expressou que, mesmo considerando-se “com a vida intelectual completamente encerrada”, Candido não cessava de se preocupar com o mundo. Referindo-se à situação política atual, Marina diz que o pai "estava muito triste. Ele estava assustado com o mundo, com os conflitos, a violência, a guinada à direita no mundo. Ele estava preocupado que tínhamos perdido conquistas e direitos". Mas, ao contrário do que via o velho crítico, nem só de “guinadas à direita” se faz a situação política. A classe trabalhadora, que tem mostrado sua disposição de luta contra os ataques do governo e a perda de direitos, tem como sua missão histórica realizar, também, o sonho de que a cultura seja um bem acessível, universal e pleno, como quis Antonio Candido.

 
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