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LGBT
A prostituição na vida das travestis e mulheres transexuais - Parte I
Virgínia Guitzel
Travesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC

A atenção dada as identidades de gênero não cisnormativas vem ganhando internacionalmente cada vez mais um peso significativo, retomando grandes debates dentro do movimento feminista. No Brasil, a visibilidade conquistada pelo ativismo trans se deu principalmente vinculado aos escandalosos casos de torturas de Verônica Bolina, o assassinado de Laura Vermont que demonstraram a relação permanente de opressão entre o Estado, suas forças armadas e os LGBT. Assim como a agressão sofrida por Viviany, que na 11° Parada LGBT fez uma perfomance crucificada denunciando a perseguição moral e social que sofrem as travestis, mulheres e homens trans.

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Nas universidades, ainda que mantenham seu caráter completamente elitistas e construídas contra a presença de setores oprimidos e dos trabalhadores, tem se tornado um espaço onde os debates sobre transsexualidade e as identidades não binárias e não adequadas a cisnormatividade encontram um espaço impar impulsionados por importantes teorias pós-modernas e figuras como Foucalt, Judith Butler e desde o Brasil Berenice Bento, entre outras. É também, um espaço que muitas vezes pela distância da familia e das cidades de origem, propiciam uma liberdade individual e um descobrimento de tais (auto)reflexões que vem garantindo o surgimento do orgulho e da auto-afirmação trans nestes espaços - ainda que a partir deste momento, as próprias chances de permanência destes espaços caem brutalmente ao indice comum as demais pessoas cisgêneras.

Neste primeiro e breve artigo, não daremos conta de abarcar o conjunto da reflexão sobre a prostituição, os debates históricos do feminismo à respeito e tampouco o ponto de vista das próprias mulheres e travestis que vivem cotidianamente desta opressão. No entanto, humildemente oferecemos uma primeira reflexão, que daremos sequência, para abordar um tema fundamental que diz respeito da realidade da esmagadora maioria da população trans brasileira e mundial: a sexualidade comercializada, roubada e mutilada das pessoas trans.

O surgimento da prostituição e suas características na sociedade capitalista

Em cada sociedade, a dominação das mulheres sob os homens – isto é, patriarcado -encontrou formas particulares de favorecer o desenvolvimento das classes sociais determinadas por cada momento histórico. A sociedade capitalista, com seu alto grau de avanço humano, fortaleceu o patriarcado submetendo-o ao aperfeiçoamento da dominação de classe, garantindo que a dominação do gênero feminino não pudesse mais ser desassociada da divisão das fileiras operárias, da manutenção do trabalho doméstico e da profunda submissão como garantia de contenção social.

Ainda que tenha se estabelecido, sob a ordem burguesa, o trabalho assalariado como forma predominante de exploração, a sociedade capitalista pelo seu caráter internacional seguiu a dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado, isto é, combinando elementos de profundo avanço frente as demais sociedades passadas sem eliminar completamente seus aspectos mais atrasados ou conservando tais aspectos artificialmente como no caso da prostituição, que carrega consigo a opressão e dominação feminina muito mais antiga do que sistema capitalista.

Ainda que filosoficamente abram-se nas redes sociais, blogs feministas e na acadêmia grandes debates sobre o que significa esta ação de comercialização da atividade sexual e do prazer, não se pode negar que ao longa da história, o gênero feminino teve sua liberdade sexual castrada pela monogamia exclusivista e seu corpo, assim, como sua totalidade, visto e garantido como propriedade masculina. Isto é, a sexualidade então comercializada sempre esteve apenas a serviço do prazer masculino e da perpetuação da “sociedade dos homens” imperante. No capitalismo, encontram-se para além da soberania masculina preservada integralmente, aspectos mantidos superficialmente na contramão do avanço e na superação da humanidade unicamente para garantir a dominação burguesa, como a manutenção da família monogâmica, heteronormativa e cisgenera, instituição garantida apenas para os detentores dos meios de produção, ainda que a ideologia dominante siga sendo a ideologia da classe dominante.

Por outro lado, a profunda crise e repressão sexual sustentada pela completa falta de condições materiais e limitações impostas pelo Estado, a polícia, as leis e a democracia burguesa, combinam com a existência, permanência e necessidade da prostituição. Frente a tamanha miséria sexual, a necessidade da imitação da família tradicional incapaz de satisfazer os desejos sexuais construídos pela humanidade, a ausência de espaços para a juventude se satisfazer sexualmente, a repressão sexual que intimida e mantém milhares dentro dos armários vivendo sob a frágil e instável heternormatividade são apenas elementos que ajudam a entender a sustentação da prostituição como instituição que marca o elo mais tortuoso para milhares de mulheres cis, travestis e, mulheres trans.

Abolir ou legalizar a prostituição sob a ordem capitalista?

Entre o feminismo há historicamente duas tendências fundamentais sobre a prostituição: as abolicionistas e as legalistas. Ambas contraditórias por deixar responsável o Estado por abolir ou " incluir ao capitalismo" essa opressão secular. Mas também utópicas, sendo a primeira uma medida que se se efetiva, significaria de maneira prática virar as costas para milhares de pessoas em profunda condição de vulnerabilidade e miséria sem oferecer uma saída verdadeira para suas angústias. E se "adentram ao capitalismo", não podem esperar mais qualidade de vida ou melhores condições de trabalho, pois a " modernização da prostituição" inspiradas em outros países como Amsterdã não libertou as mulheres, muito menos, a desvinculou de um papel objeto e inferior à serviço apenas da satisfação de outros, não a si própria.

Sem transformar radicalmente a sociedade contrapondo os interesses da maioria da população trabalhadora contra os interesses vigentes de uma pequena minoria de exploradores, não se pode abolir a familia, a prostituição e a miséria da sexualidade. Não se pode libertar as mulheres, trans e cis, acorrentadas juntamente pela dominação machista. A violência assim como os abusos e estupros decorrentes da prostituição são expressões da forma com que o gênero feminino é tratado na sociedade capitalista, por isso, é preciso questionar ambas estratégias do feminismo que não podem oferecer uma crítica contundente e superadora a democracia burguesa, muitas vezes a embelezando e inaltecendo como a forma mais avançada de organização das sociedades no século XXI, ignorando os dados chocantes do número de mulheres, trans e cis em profunda situação de miséria, o trans-feminicidio, etc.

Única escolha: A marca na vida das travestis e transexuais da prostituição

Contudo, ainda que a prostituição corresponda a dominação do gênero feminino, há importantes diferenças entre a relação desta opressão entre mulheres cis e mulheres trans e travestis. Para além de ser a única e última escolha de sobrevivência de milhares de mulheres, fugidas de suas casas, violentadas, expulsas de casa, levadas pelo tráfico de mulheres e crianças e situações de abandono, para as identidades trans há ainda contornos maiores e mais dependentes.

As limitadas condições de construção da identidade de gênero pelos serviços públicos assim como pela iniciativa individual levam inevitavelmente a conformação de “guetos trans” sociais e culturais que obrigatoriamente se submetem à uma sistema retrogrado das cafetinas pela necessidade de moradia, espaços para realizar os atendimentos, assim como pelas vias do acesso a hormônio, cirurgias e demais procedimentos médicos, ainda que nenhuma destas necessidades são garantidas com segurança e qualidade, sendo uma triste realidade as doenças, dificuldades e efeitos colaterais pela auto-hormonização e a utilização de silicone industrial. Este sistema de opressão não poderia existir sem a conivência do Estado, que reprime e extorque as travestis com suas forças armadas (policia) expressando a sua função de dominação e conservação da sociedade atual na contramão de garantir o avanço e a emancipação do trabalho, da mulher, da sexualidade, da humanidade.

Mas ainda muito além dessas questões, é neste gueto que as pessoas trans encontram seus pares, podendo compartilhar dicas, experiências e vivências, para além de garantir sua proteção contra a violência machista, transfobica e policial. Aqui não se tratam apenas de uma questão econômica – a necessidade objetiva de vender a força de trabalho ou exercer atividades sexuais como forma de sobrevivência – mas também instintiva de sobrevivência social, baseada na reprodução da cultura e dos desejos sociais como a luta contra a solidão trans.

A consequência desta situação para a comunidade trans traz marcas profundas na vida. A objetificação, fetichização e transformação das mulheres trans e travestis em mercadorias, sob a ditadura da beleza e da juventude é uma expressão material da sexualidade como “nossa função social obrigatória”. A desumanização que sofremos pelo misticismo baseado em nossa invisibilidade compulsória e na prostituição como “destino natural” em torno de nossas identidades impede o desenvolvimento afetivo, a constituição de relações amorosas e do reconhecimento e na legitimidade roubada das capacidades e das potencialidades das pessoas trans em diversas funções, reflexões e inclusive na sua própria auto-determinação de seus corpos, mentes e identidades.

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A necessária aliança revolucionária entre os oprimidos e a única classe progressista da sociedade: a classe operária

Na democracia burguesa juízes, médicos, deputados, psiquiatras, acadêmicos, a polícia e o Estado querem dominar nossos corpos e nossas mentes. Autorizar e regulamentar nossa sexualidade e nossas identidades à maneira que se adequem a moral dessa sociedade decadente. Para encontrar uma resposta a problemática da prostituição é preciso partindo das bases de sua sustentação, entender sua relação com o trabalho precário, o desemprego e o sistema capitalista.

O capitalismo, apesar de aprofundar cotidianamente o antagonismo entre a burguesia e o proletariado não eliminou as demais classes sociais, pelo contrário, veio as preservando artificialmente para dar base a sua sustentação. O lumpem-proletariado, ou seja, a massa de pessoas alheias ao mercado de trabalho, desprovidas de vender sua força de trabalho (o único direito “garantido” nesta sociedade de exploração) garante a submissão dos trabalhadores nos postos mais precários e sua defensiva sob os ataques e a retirada de direitos como chantagem barata de sua condição de explorado.

Pela sua pequena influência social, seu local ausente na produção e consequentemente na economia, as prostitutas e as pessoas trans em geral estão à sorte do proletariado e de sua crise de direção para fazer suas angustias e sofrimentos com tal sociedade encontrem força para destruir cada pedaço dessa opressão, erguendo uma nova sociedade com uma nova cultura, novos valores e livre de toda a dominação, opressão e exploração que vivemos. Por isso, senão debatida e tomada pela organização de trabalhadores como os sindicatos e os partidos da esquerda não se poderá encontrar uma saída verdadeira para tal questão. Também não poderá se levantar um movimento verdadeiramente revolucionário senão tomada pelas mãos que tudo produzem as demandas dos que mais oprimidos pela sociedade capitalista garantindo que assim a classe trabalhadora, única classe progressista e capaz de levar as tarefas da revolução até o fim, arraste consigo e atrai aliados na luta por nossa libertação.

Esta condição de lumpem-proletariado também fortalece a desorganização de um real movimento trans que possa expressar suas próprias demandas, prevalecendo os estudos acadêmicos, as teorias pós-modernas e as “problematizações” de gênero sob a realidade e profunda situação de miséria da grande maioria das pessoas trans.

Desde o Pão e Rosas Brasil seguimos a luta por melhores condições de vida das mulheres trabalhadoras, prostitutas e oprimidas. Aprovamos a campanha pela aprovação da Lei João Nery como um direito elementar para a comunidade trans e de enfrentamento ao Estado, que deve reconhecer não apenas a existência das identidades não cisgeneras como também a profunda situação de desigualdade entre as pessoas trans e não, como o machismo, a transfobia, a homofobia e o racismo tão cotidianos e concretos em nossas vidas. Mas reafirmamos em cada uma dessas lutas, a revolução socialista segue como condição para nossa emancipação, para dar a humanidade capacidade e liberdade para construir, na maior plenitude e racionalidade, um novo ser humano, verdadeiramente livre.

Texto originalmente publicado em TransOutubro em 27 de Outubro de 2015.

 
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