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Trump e o mal-estar do neoliberalismo
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy
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Ilustração: Ferguson

Os acontecimentos que antecederam o triunfo de Trump – como a vitória eleitoral da direita dura em países do leste europeu, como a Polônia, Croácia, Hungria, o fortalecimento superestrutural da extrema direita em países centrais como a França com Marine Le Pen; a crise dos refugiados e o surgimento de nacionalismos vários, a polarização social que levou ao Brexit e a lutas na Grécia e no Estado espanhol – inscrevem o resultado das eleições norteamericanas no marco da mudança acelerada das variáveis que dominaram a economia e a política nas últimas décadas.

No contexto de outros processos, como o Brexit no Reino Unido e a crise da União Europeia, Trump representa uma tendência à reversão de uma série de pressupostos que primaram durante longas décadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que se acentuaram com o neoliberalismo: globalização e livre comércio, exportação do modelo da democracia degradada ocidental à maioria dos países do globo, e a idéia que ficou “famosa” com Margareth Thatcher de que “não há alternativa” ao neoliberalismo (“There is no alternative”).

Diversos intelectuais do espectro da esquerda socialdemocrata lançaram opiniões sobre o ascenso de Trump. O alemão Jürgen Habermas disse que se trataria de uma “ruptura da racionalidade política”; o falecido filósofo polonês, Zygmund Bauman, disse que estaríamos diante da emergência de um “líder decisionista” à maneira dos totalitários da década de 30. Para Alain Badiou, filósofo francês, trata-se de um “fascismo democrático”, contradição em termos que ele resolve à sua maneira, dizendo que se dá nos marcos da “democracia” e que não enfrenta os mesmos inimigos que o fascismo dos 30, a classe trabalhadora e os partidos comunistas. E mesmo um pensador com algumas posições estranhas (como a defesa de militarização da Europa contra a onda de refugiados) como Slavoj Žižek arriscou dizer em um momento que Trump seria bom porque "ele realmente assusta os liberais".

Vários destes intelectuais apoiaram as formações neoreformistas de esquerda na Europa, como o Syriza e o Podemos, e Bernie Sanders nos Estados Unidos. Trata-se de observações um pouco simplistas para entender o fenômeno, que necessita do ponto de vista marxista.

Podemos dizer que as causas eficientes que deram origem a esta “internacional populista” de direita nos EUA e na Europa existem há muito. Em primeiro lugar, nas condições de polarização social criadas com a crise econômica de 2008, que teve seu epicentro nos países centrais. Também a progressiva decadência imperialista dos EUA, que após as derrotas no Iraque e no Afeganistão e as dificuldades nos processos da Primavera Árabe, principalmente na Síria, não demonstram a mesma capacidade de impor-se pela intimidação (apesar de seguir sendo a maior potência bélica).

Mas, mais em geral, nas décadas de globalização e neoliberalismo que deixaram como saldo uma desigualdade obscena, criando alguns poucos grandes ganhadores – monopólios e bancos – e uma multidão infinita de perdedores. Os votantes de Trump são parte destes “perdedores da globalização”: classes médias de baixo ou regular nível educativo, setores de trabalhadores industriais, microempreendedores e pequenos proprietários que se sentem impotentes frente ao capital financeiro e querem “recuperar o controle” (consigna do Brexit). Este conglomerado social heterogêneo é o que está por trás da revolta contra os partidos tradicionais – conservadores, socialdemocratas e liberais – que conformaram o “extremo centro” do consenso neoliberal, segundo conceito de Tariq Ali.

Estas eleições nos EUA, como há muito não havia, ficaram marcadas pelo repúdio à casta política, a crise de autoridade dos partidos tradicionais do regime. Exemplos disso são evidentes na enorme derrota do partido Democrata, a altíssima impopularidade de Trump e Hillary, a explosão do fenômeno juvenil que se manifestou na candidatura de Bernie Sanders (um reformista “clássico” vinculado aos Democratas), a baixa participação eleitoral e os quase 7 milhões de votos dos “outros partidos”, como o Partido Verde (triplicou sua votação de 2012).

Que explica este repúdio?

Existe uma categoria teórica muito útil do marxista italiano Antonio Gramsci, que ajuda a entender as tendências políticas globais: é a de crise orgânica. Segundo Gramsci, a “crise orgânica” se distingue das crises conjunturais porque é uma crise de conjunto (econômica, social e política) que coloca em primeiro plano contradições fundamentais das classes dominantes que não podem ser resolvidas pelos métodos habituais. Abre-se assim um período de questionamento da orientação da classe dominante que se expressa na crise do regime político e de seus partidos tradicionais, e o principal efeito é o surgimento de novas maneiras de “pensar e sentir”, à direita e à esquerda.

Por que os Estados Unidos está atravessado por tendências de “crise orgânica”? Gramsci também nos oferece uma pista: o fenômeno ocorre quando há dificuldades ou o fracasso de “grandes empreendimentos” políticos da burguesia. Segundo Gramsci, “Em cada país o processo é distinto, ainda que o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que se produz seja porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual solicitou ou impôs pela força o consenso das grandes massas (como a guerra) ou porque vastas massas (especialmente camponeses e pequenoburgueses intelectuais) passaram da passividade política a uma certa atividade e colocam reivindicações que em seu conjunto não orgânico constituem uma revolução. Fala-se de ‘crise de autoridade’ e isto é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto” (C13 §23, entre maio de 1932 e início de 1934).

A agonia da etapa neoliberal, que começou com a crise de 2008, é um destes grandes empreendimentos em crise (o neoliberalismo foi um período de lucros inéditos para o capitalismo em base à superexploração da classe trabalhadora na década de 90). Na Europa, este grande empreendimento em turbulência é a União Européia, um dos projetos mais ambiciosos do imperialismo depois da queda do Muro de Berlim, e que a partir de então conteve relativamente a explosão de contradições nacionais sob domínio da Alemanha.

Sintetizando, a categoria de crise orgânica coloca elementos tais como

1) a separação das massas de seus partidos; 2) deslegitimação da classe dominante como direção do conjunto da nação; 3) crise da autoridade estatal em seu conjunto.

Estes elementos se manifestam não ainda no surgimento de partidos “centristas de massas” com a marca da classe trabalhadora, como na década de 30, mas no surgimento de fenômenos neorefomistas de esquerda com nenhuma ou quase nula relação com ela, como Syriza na Grécia e o Podemos no Estado espanhol, Jeremy Corbyn na Inglaterra, ou o triunfo de Benoît Hamon na disputa interna do PS francês. Pela direita, frações insatisfeitas do capital se expressam com o próprio Trump, a Liga Norte italiana ou a Frente Nacional francesa aparecem como as principais expressões.

O triunfo de Trump então confirma e aprofunda os elementos de crise orgânica que vem manifestando-se nos países centrais desde a Grande Recessão de 2008, e pode ser lido como estes “fenômenos aberrantes” dos quais fala Gramsci, que surgem em situações de transição em que o velho ainda não desapareceu e o novo não ganhou contornos claros.

Não se trata de dizer que o imperialismo norteamericano está em sua fase terminal, ou que o poderio ianque irá cair por si só levando consigo o sistema capitalista. Este fatalismo é alheio aos marxistas.

Estamos na época que Lênin havia definido como imperialista, de “crises, guerras e revoluções”, o que significa que a destruição deste sistema capitalista de exploração e opressão só pode ocorrer com a extensão da revolução socialista a nível mundial.

O que queremos dizer é justamente que esta mudança de rumo da política norteamericana é fruto de sua decadência como imperialismo hegemônico, um “não mais a potência hegemônica em seu auge, sem ainda uma nova potência para ocupar seu lugar”, que anuncia que se abriram tempos extraordinários, uma situação na qual estão inscritas maiores tensões interestatais, guerras comerciais e conflitos militares, com maior acentuação da luta de classes.

Economia e geopolítica e luta de classes

Em 1921, o revolucionário russo Leon Trotsky discerniu uma categoria chave para entender as movimentações na época do primeiro pós-guerra, que servem a nós tão bem quanto serviu a ele. É a de “equilíbrio dinâmico” do capitalismo. Com esta categoria tirada da física, Trotsky havia assinalado que o “equilíbrio capitalista é um fenômeno complexo; o regime capitalista constrói este equilíbrio, quebra-o, o reconstrói para quebrá-lo outra vez, alargando, assim, os limites de seu domínio” (A situação mundial, junho de 1921). Este equilíbrio dinâmico em tensão permanente de ruptura e restauração é resultado da interação entre três fatores: a economia mundial, as relações interestatais e o desenvolvimento da luta de classes.

Trump representa o que seria uma tendência à ruptura do “equilíbrio instável” do capitalismo.

Na esfera da economia, Trump apresenta traços do que foi a política de Ronald Reagan na década de 1980, com a redução de impostos aos ricos e elevação das taxas de juros. O objetivo de uma política assim é trazer para perto de si as companhias e monopólios, inclusive os que se opuseram a sua candidatura, especialmente as do Vale do Silício, que estão em tensão com Trump usando demagogicamente a questão dos imigrantes para exigir regalias.

Apesar de não poder e não querer governar contra os monopólios, Trump cancelou com uma canetada o chamado Acordo TransPacífico, um tratado que prometia reafirmar a preponderância comercial dos EUA na Ásia-Pacífico e ser o primeiro grande golpe na intenção da China de apoderar-se dos mercados locais. A anulação do acordo trouxe grande benefício à China. Alguns dos países que haviam assinado o TPP (como a Austrália) agora estão migrando para a versão chinesa desse acordo regional, que exclui os Estados Unidos e cria uma área de livre comércio de 16 nações, incluindo a Índia, o maior bloco do mundo abrangendo 3,4 bilhões de pessoas.

Estas medidas servem para mostrar "serviço demagógico" à base eleitora, cobrindo tudo aquilo que não poderá cumprir, como a reindustrialização dos Estados Unidos, algo que entraria em contradição com o padrão de lucratividade adotado pelos grande monopólios ianques nas décadas anteriores.

No domínio da geopolítica, está claro que a política externa de Trump significará uma mudança de rumo com respeito a Obama. Obama levou adiante uma política de “centro” para recompor a liderança mundial dos Estados Unidos, privilegiando a diplomacia para diminuir a exposição militar direta e dar por superada a estratégia militarista unilateral de George W. Bush, que levou às derrotas no Iraque e no Afeganistão.

Até mesmo o status quo das alianças internacionais ocidentais parece em risco. Trump desdenhou a existência da União Européia, causando a ira dos governos da França e da Alemanha, e aprovou entusiasticamente o Brexit que tirou o Reino Unido da União Européia. Apesar das disputas ora abertas, ora veladas, Obama aparecia em público como o principal parceiro da chanceler alemã Merkel nas questões internacionais: hoje, a única coisa que une Merkel a Trump é a frieza. Desde a campanha, Trump relativizou a importância da OTAN, dizendo que os países da Europa devem fazer um esforço maior por sua defesa, e pagar pelas bases militares americanas em seu território.

A relação com a Rússia, sempre tensa nas administrações anteriores, é contraditoriamente mais amena, com as articulações de Trump e Putin para combater o Estado Islâmico no Oriente Médio e fechar acordo sobre a Síria (nas mãos da Rússia) que significa deixar o ditador Bashar el-Assad no governo. Ainda não está claro se esta aproximação é circunstancial, limitada a resolver a crise síria, ou implica um giro de magnitude a respeito da política de hostilidade a Moscou, comum às administrações Democrata e Republicana. Em contraposição, a Casa Branca está escalando como nunca as ameaças contra a China, questionando a construção de ilhas artificiais no disputado Mar do Sul da China e comparando esse esforço com a anexação da Criméia pela Rússia em 2014.

No plano interno, recheou seu gabinete com empresários, generais da reserva e supremacistas brancos, expressão da perda de hegemonia dos “conservadores moderados” no Partido Republicano, ainda que estes estejam presentes. Com expoentes do racismo ligado à Ku Klux Klan e do ódio aos islâmicos, Trump teve seu primeiro grande revés com a demissão do general Mike Flynn, que permaneceu apenas 24 dias como assessor de segurança, por denúncia de que havia tratado com o embaixador russo em Nova York a diminuição das sanções econômicas à Rússia, mesmo antes de Trump assumir a presidência.

Fruto desta composição política dominada pela extrema direita Republicana, a primeira semana de Trump foi recheada de medidas reacionárias. No mesmo dia em que emitiu decreto banindo a entrada nos Estados Unidos de muçulmanos oriundos de 7 países da Ásia e do norte da África, reafirmou a iminência da construção do muro na fronteira com o México (que deveria ser pago pelos mexicanos). Também reafirmou o objetivo de indicar membros da Suprema Corte que se opõem ao direito das mulheres ao aborto e os métodos contraceptivos, assim como removerão leis de proteção à mulher contra violência doméstica.

Como dissemos no início, as rupturas do equilíbrio capitalista não abrem espaço apenas à direita, mas também à esquerda. Já no dia da posse, 20 de janeiro, houve enfrentamento com a polícia em diversas capitais do país, e no dia 21 de janeiro aconteceram as maiores manifestações registradas na história dos Estados Unidos: a marcha de mulheres, que colocou mais de 2 milhões de pessoas nas ruas contra Trump. Apesar do patrocínio mais ou menos velado do partido Democrata, este movimento superou amplamente seu controle. Depois do decreto anti-muçulmano de Trump, houve atos nos principais aeroportos do país contra a detenção de imigrantes muçulmanos e em defesa da entrada de refugiados nos EUA.

Ou seja, um “momento rupturista” do equilíbrio dinâmico capitalista (que não significa necessariamente um ritmo catastrófico de desenvolvimento da crise) pode significar o retorno de contradições profundas do capitalismo e a tendência de resolvê-las sobre a base do Estado nacional e não pacificamente.

Que estratégia é necessária para combater o imperialismo?

Trump representa a cara mais podre da decadência do imperialismo americano, que teve seu caminho pavimentado pelo imperialismo de Obama, os Clinton e o partido Democrata. Não há dúvida que o partido Democrata, a outra ala do imperialismo, tentará se recuperar de sua estrondosa derrota eleitoral buscando formar uma oposição domesticada a Trump, impedindo o surgimento de qualquer verdadeira expressão à esquerda.

Isto não é um detalhe. Não há dúvida que a direita costuma emergir quando as respostas da esquerda se mostram insuficientes. Não foi só o desprestígio do neoliberalismo que provocou esta fúria populista:

a estratégia neoreformista de formações como o Syriza, que conduziu a enorme luta de classes dos trabalhadores na Grécia à derrota, e do Podemos, que governa capitais como Barcelona e Madri perseguindo imigrantes e trabalhadores, também tem sua responsabilidade, ao não utilizar a simpatia que geraram nas massas para qualquer medida anticapitalista. Facilitaram credibilidade das respostas “radicais” pela direita.

Na Grécia, o discurso “antineoliberal” do Syriza, que prometeu terminar com os planos de austeridade da Alemanha, em menos de seis meses se converteu no seu contrário: se tornou o partido que aplicou os planos neoliberais da Alemanha contra os trabalhadores gregos. Isso porque sua estratégia nunca foi de combate real, mas um tímido antineoliberalismo sem nenhum átomo de anticapitalismo, que como sempre resulta na derrota dos setores de massas.

Na Espanha, Pablo Iglesias considera as práticas de combate uma “metáfora doce”, e buscou se coligar com o PSOE para as eleições nacionais. Onde governa, nas principais capitais, se enfrenta com trabalhadores em greve e persegue imigrantes, como em Barcelona.

Bernie Sanders representou esta concepção nos Estados Unidos; apesar de ter defendido algumas demandas progressistas de setores de trabalhadores e jovens, usou seu programa reformista para semear ilusões no partido Democrata, e ao apoiar Hillary Clinton, deixou nas mãos de Trump a bandeira do descontentamento com o establishment.

Estas estratégias neoreformistas, que buscam administrar o capitalismo com um rosto mais “humano” e um discurso antineoliberal, ficam atrás inclusive da política limitada da socialdemocracia do século XX. São incapazes de resistir aos desmandos capitalistas e se apóiam nas derrotas dos trabalhadores e da juventude. Preparar o combate à direita significa construir uma estratégia que supere o fracasso do neoreformismo, que na Europa se mostrou cúmplice dos planos de ajuste contra as massas trabalhadoras e o povo.

A classe operária norteamericana não se recuperou da derrota dos anos Reagan, mas nos últimos anos surgiram novas formas de luta e organização, como o movimento Black Lives Matter, o movimento pelo salário mínimo e as greves nas redes de fast food e supermercados, além do movimento de mulheres. Se Trump representa o perigo de uma ruptura entre a classe operária e seus aliados imigrantes, negros, mulheres, o que está na ordem do dia é a construção de um terceiro partido que tem de ser anticapitalista, operário e revolucionário, para levantar um programa que unifique as forças dos explorados e oprimidos tanto dentro como fora dos Estados Unidos. O relógio está correndo.

 
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