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CONTAGEM REGRESSIVA 8 DE MARÇO
Estrelas esquecidas: um filme sobre ciência e luta das mulheres contra o racismo
Letícia Parks
Isabelle de Moraes
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O filme Estrelas além do tempo estreou no Brasil na última quinta-feira (02/02) revelando uma importante parte bastidores da corrida espacial durante a Guerra Fria. Tendo como plano principal a trajetória de três matemáticas negras na NASA, o filme mostra o brilhante e essencial trabalho executado por essas mulheres excepcionais que até então era desconhecido, além de evidenciar os aspectos cotidianos do racismo e machismo enfrentados por elas. As reflexões levantadas pelo filme permanecem incrivelmente atuais não nos deixando esquecer de “Black lives matter” e da recém eleição à presidência de Donald Trump.

A história real, dirigida por Theodore Melfi e roteirizada por ele e Allison Schroeder, é baseada no livro Hidden Figures: The Story of the African-American Women Who Helped Win the Space Race (Figuras escondidas: A história das mulheres afro-americanas que ajudaram a vitória da corrida especial), resultado do trabalho de pesquisa da escritora negra de não-ficção Margot Lee Shetterly, cujo pai trabalhou como pesquisador no mesmo laboratório que as mulheres citadas no filme.

Katherine G. Johnson (responsável pelos cálculos que levaram o homem a Lua), Dorothy Vaughan (primeira mulher negra a chefiar um setor da NASA) e Mary Jackson (primeira engenheira negra da NASA) são capazes de mostrar seus incríveis talentos enquanto lutam por direitos básicos enquanto mulheres negras. O avanço tecnológico que simboliza a NASA em confronto atrasos sociais evidenciam contradições que até hoje ainda não foram resolvidas.

O avanço científico como plano de fundo

Embora a corrida espacial tenha acontecido dentro contexto da Guerra Fria, tendo como motivação principal a disputa entre os EUA e a União Soviética é inegável os incríveis progressos que ocorreram nesta época. Realizar o desafio de colocar um ser humano orbitando o planeta e até mesmo leva-lo à Lua, envolve diversas áreas como Matemática, Física, Astronomia, Engenharia Mecânica, o que evidencia a complexidade da tarefa e os esforço colaborativo necessário para tal. A corrida começa com o satélite espacial Sputinik em 1957, no ano seguinte é criada a NASA, prossegue com Yuri Gagarin sendo o primeiro humano no espaço em 1961 e tem seu ápice em 1969 quando a missão tripulada Apolo 11, pousa na Lua.

Todo esse avanço foi conquistado antes mesmo da existência do computadores, tal como conhecemos hoje. Computadores, na década de 1960, era como eram chamadas as pessoas que realizavam as milhares de operações matemáticas necessárias para os diferentes cálculos. É preciso calcular desde os parafusos necessários para fixar a proteção térmica da região onde fica o astronauta, a quantidade de combustível, a trajetória da nave espacial, a velocidade, etc. Para não sobrecarregar os engenheiros com os complexos cálculos e métodos numéricos para resolução desses problemas, verdadeiros computadores humanos eram destinados a realizar esta árdua tarefa, desempenhada no filme pelas protagonistas.

O filme mostra um verdadeiro exército de cientistas, das mais diversas áreas, envolvidos no programa espacial e como os grandes avanços foram resultados do esforço colaborativo dessas pessoas. É importante ressaltar, que embora as Ciências Exatas estejam permeadas de figuras geniais, o avanço é conquistado pela cooperação de milhões de pessoas comuns que dedicam sua vida ao entendimento da natureza. Assim, embora o filme mostre de forma um pouco romantizada o insight de Katherine ao utilizar o método de Euler para resolver o problema de cálculo da entrada de volta da nave na Terra, este só foi possível porque a mesma e outras dezenas de colegas, já haviam se debruçado meses sobre o problema e tinham uma vasta experiência com a técnica utilizada. No dia-a-dia da Ciência não existem eurekas! mágicos e sim um esforço de análise, aprendizado e discussões cooperativas.

Negras computadores

Os setor dos computadores humanos da NASA, era composto em sua maioria, por mulheres matemáticas, chegando a empregar centenas de mulheres negras. O filme mostra que embora fosse de extrema necessidade e complexidade o trabalho era bastante precário. A Ala Oeste de Computadores, do Centro de Pesquisa Langley em Hampton, era destinada somente a mulheres evidenciando a separação por gênero e dentro desta, havia ainda uma separação racial, mostrada pela sala de Computadores Negras. Fica evidente que o setor onde ficam as negras é o mais subjugado, com uma aparência de galpão e faltando suplementos higiênicos numa instituição em que bilhões de dólares eram investidos em pesquisa.

A discriminação é mostrada sutilmente na intervenção policial que sofrem ao estar paradas enguiçadas na estrada, na dificuldade de promoção para supervisão do setor por Dorothy, na segregação legalmente permitida em espaços públicos (bibliotecas, banheiros, ônibus, bebedouros, restaurantes) e nas dificuldades burocráticas impostas a Mary para que esta aplique a vaga de engenheira. Mas ela é escancarada quando Katherine é transferida para “ala dos homens brancos” e é obrigada a caminhar por 1,6 km para chegar ao banheiro destinado a sua cor de pele.

Porém, para além da capacidade intelectual e da perseverança diante desses obstáculos, havia um companheirismo, um senso de comunidade e extrema solidariedade entre elas. As qualidades humanas que vão desde a amizade entre elas (Friendship também é o nome dado a missão espacial), passa pelos harmoniosos ambientes familiares e chega a comunidade local negra organizada em torno da igreja. Momentos em que Dorothy se recusa a ir sozinha para um cargo mais privilegiado ou diz que o avanço de uma deve ser um avanço de todas, mostra o quanto a união entre elas e a consciência da dificuldade que compartilhavam foi essencial a superar as dificuldades impostas pela realidade.

Um mundo dividido em trincheiras, uma humanidade dividida em classes e raças

Os trabalhadores, por mais escolarizados que sejam, veêm dentro de seus locais de trabalho a divisão racial que impõe que mulheres negras recebam quase 1/5 do salário de um homem branco, muitas vezes exercendo a mesma função. A situação retratada ali é ainda mais cruel, com segregacionismo legalizado e racismo descriminalizado.

Os anos durante os quais Dorothy, Mary e Katherine traçam essa luta silenciosa pelo reconhecimento que tinham direito foram também anos de duríssimas e violentas batalhas pelos direitos civis, que são timidamente exibidas durante a primeira parte do filme. Dentre as duas estratégias apresentadas, a sensação construída pelo argumento do roteirista caminha no sentido de defender a batalha do mérito levada adiante por essas três mulheres, uma batalha que incorpora o problemático discurso do "fazer duas vezes melhor" que persegue cotidianamente cada negro que ocupa o espaço dedicado aos trabalhadores brancos mais qualificados.

Lentamente, a luta pelos direitos civis vai sumindo das cenas de televisão e sendo substituída pela acirrada corrida espacial, ao passo que Kennedy começa, em lugar de Martin L. King, a ser o porta-voz das inúmeras lutas por igualdade. Entretanto, o recorte é cinematográfico e bem pouco real.

O ano final do filme, 1962, quando John Gleen torna-se o primeiro americano a orbitar a Terra a bordo do Friendship 7, é justamente um dos anos de maior acirramento da luta por direitos civis que começava na década de 1950. As jornadas que ficaram conhecidas como Freedom Rides, nas quais jovens negros ocupavam lugares dedicados a brancos no sul, haviam chegado ao seu ápice no ano imediatamente anterior, evento que é inclusive mencionado no filme com o escandaloso incêndio de um desses ônibus no estado sulista do Alabama. Após intensas tentativas de manifestações pacíficas, é no ano de 1962 que a autodefesa armada aparece como programa pela primeira vez. Apenas 3 anos depois, começam as jornadas da cidade de Selma, que resultam no assassinato de King em 1968, apenas 6 anos após a "vitória" dessas mulheres.

O cenário da guerra fria que permeia o filme também dá frutos a contradições intensas para o argumento do diretor. A corrida espacial norte-americana era uma competição justamente contra a União Soviética, que apesar das contradições imensas que surgiram da reação stalinista, era a única sociedade, junto a cubana, capaz de questionar os elementos mais profundos do capitalismo que geram e alimentam o racismo.

Em lugar da confiança que o argumento do filme tenta criar em figuras democratas como o militar espacial John Gleen - posteriormente senador pelo Partido Democrata - ou no chefe branco que parece "salvar" essas mulheres do anonimato, confiamos não apenas na força que vem de nós mulheres negras, mas principalmente da solidariedade de nossas comunidades e da comunidade que se cria entre os trabalhadores quando percebem que o racismo é inimigo de suas condições de vida e, do ponto de vista dos avanços científicos mais estruturais, inimigo do pensamento comunitário e do progresso tecnológico e produtivo. Nos dias de hoje, a mesma NASA que é a vanguarda na tecnologia espacial continua discriminando seus funcionários. Para ter acesso a todos os dados obtidos por suas a missões e satélites é preciso ser cidadão americano, impedindo que pesquisadores estrangeiros utilizem suas informações mesmo estando vinculado a programas de pesquisa dentro da instituição.

Seria absurdo olhar para a América pós Obama, vê-la tingida de Trump, e seguir acreditando na promessa libertadora da verborragia capitalista. Ainda é preciso exigir direitos civis, ainda é preciso dizer que #AsVidasNegrasImportam (#BlackLivesMatter) contra o gatilho fácil da polícia.

As mulheres ainda são as mais precarizadas, apartadas do direito ao estudo, ao aborto e a maternidade. Por isso saudamos a chegada de um 8 de março em chave de luta, com uma convocação de um novo ato de mulheres nos EUA e com uma maré feminista que atinge todo o mundo, inclusive o Brasil.

Que filmes como esse nos ajudem a dar confiança em nossas forças, mas que também nos lembrem que a grande América continuará sendo muito pequena para os negros e para as mulheres enquanto for a gigante capitalista.

 
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