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TEORIA
As questões da insurreição: 1905
Santiago Marimbondo
São Paulo

"Mas a insurreição armada é uma forma especial de política, submetida a leis especiais, nas quais é preciso refletir atentamente. Karl Marx exprimiu essa verdade com notável relevo ao escrever que ’a insurreição’ armada é, como a guerra, uma arte’’. (grifos de Lenin, ‘Conselhos de um ausente’, setembro de 1917)

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No ano do centenário da revolução russa uma série de artigos, debates, revistas, livros, serão dedicados certamente àquela que foi a mais importante revolução da história da humanidade; esses debates que se levantarão sobre a revolução russa não devem ter caráter meramente comemorativo, contudo, como se essa fosse uma questão puramente histórica, relegada a um passado irremediavelmente superado, sem reflexos concretos no presente; a revolução russa está longe de ser algo morto, mera memória, mas é algo presente, vivo, que deve ser o marco estratégico de onde parte o proletariado e todos os demais setores subalternos para pensar sua atuação transformadora nas lutas que se aprofundam nesse começo de novo século; a revolução russa vive em suas lições!!!

As novas lutas que se desenvolvem nessa etapa de fim da restauração burguesa, em que a ideia de revolução passa novamente a ser algo presente no imaginário popular, não podem começar do zero, como se todos os debates estratégicos sobre as formas concretas que assumirá a luta contra os opressores, quais os sujeitos sociais centrais, as formas organizativas desses sujeitos, não tivessem existido ou não fizessem qualquer sentido hoje.

Se é evidente que a sociedade capitalista em sua época imperialista, marco comum à luta tanto na Rússia a cem anos como hoje, assumiu novas configurações é evidente também que existem vários e fundamentais elementos de continuidade. Qualquer formulação de novas perspectivas de luta deve, portanto, partir das lições das lutas do passado para, com uma apreensão crítica dessas lições, formular a estratégica e as táticas, o programa e formas organizativas, correspondentes as maneiras concretas como se expressa a luta entre as classes no presente.

Uma das questões chave e ensinamentos que nos legou a revolução russa e suas experiências foi a questão das formas de combate concretas que deve assumir o proletariado, hegemonizando os demais grupos subalternos, na luta de classes quando essa rompe seu caráter pacífico e ‘’normal’’ e assume formas físicas mais agudas, que tem como primeiro momento a insurreição e a posterior guerra civil. Os mais de 30 anos sem revoluções em sociedades ocidentais praticamente apagaram esses debates na esquerda, inclusive em setores que se reivindicam revolucionários; contudo, se queremos nos preparar para momentos mais convulsivos na luta de classes (e para aqueles que se reivindicam revolucionários não é mais possível observar a realidade de olhos abertos e sem ilusões sem ver a necessidade dessa preparação)temos que começar a debater seriamente essas questões, que tendem a se colocar novamente num futuro imprevisível, mas que cada vez mais parece menos distante.

No entanto, assim como o estudo da guerra não é uma simples abstração, mas parte do estudo das guerras concretas, de suas principais batalhas, de seu contexto histórico concreto, etc, o estudo dos problemas da insurreição e da guerra civil não parte também de abstrações, mas dos exemplos concretos das grandes lutas de nossa classe, de suas principais batalhas, de seus acertos e de uma visão crítica de seus limites.

Esse pequeno artigo, que se pretende uma inicial contribuição ao estudo dos problemas da insurreição, será dividido em duas partes, uma dedicada a questões centrais colocadas na insurreição de 1905 e um sobre a insurreição de 1917 na Rússia. Essas duas insurreições são centrais para qualquer estudo crítico dos problemas da luta do proletariado, do momento chave em que a luta política assume uma forma física e guerreira, pois são aquelas que colocaram de maneira mais profunda o problema da luta real contra as forças repressivas do estado num teatro de operações urbano, tendo como centralidade a classe operária hegemonizando um amplo processo revolucionário em que se levantavam todos os setores oprimidos da sociedade. Se é evidente que o teatro de operações urbano onde se desenvolverão possíveis insurreições hoje passou por importantes transformações, é claro também que um estudo crítico das lições das lutas do passado é elemento chave para se pensar qualquer movimento presente.

O estudo particular da insurreição de 1905, apesar da derrota sofrida, é de extrema importância (talvez a derrota seja um fator que aumente em muito inclusive a importância do estudo da insurreição de dezembro de 1905, pois como dizia um importante teórico militar ‘’a vitória confunde, enquanto a derrota ensina’’) pois vários dos problemas que se colocam para a insurreição urbana, enfrentados e discutidos no seio da social-democracia russa, ficaram sem resolução pela forma específica com que se deu a insurreição em Petrogrado em outubro de 1917 (a insurreição mais estudada e documentada, a insurreição em Moscou em outubro de 1917, é menos estudada e documentada). Qual a relação com o exército? Como armar o proletariado? A luta se dá através de enfrentamentos diretos ou indiretos? Barricadas ou pequenos destacamentos guerrilheiros? O partido deve treinar destacamentos militares antes da insurreição? Como realizar um trabalho clandestino nas fileiras do exército? Qual a relação da insurreição urbana com as revoltas camponesas?

Esses problemas todos, que foram enfrentados e que depois levaram a debates acalorados entre as frações bolchevique e menchevique da social-democracia russa em congressos posteriores a revolução de 1905 se colocaram de forma bastante distinta na insurreição de 1917; a guerra imperialista tinha se encarregado de armar grande parte das classes subalternas da população, camponeses e operários, a revolução de fevereiro tinha garantido tão amplas liberdades democráticas ao partido bolchevique que esse podia fazer um trabalho praticamente aberto e legal nas fileiras do exercito, existiam inclusive sovietes de soldados, a própria guerra tinha criado uma grande propensão à ruptura entre o exercito e o governo que levava a frente a carnificina.

Assim, vários dos problemas centrais para uma insurreição urbana em condições ‘’normais’’ (apesar do adjetivo ser bastante contraditório a uma situação revolucionária), ou seja, sem a existência de uma guerra imperialista que tende a ser um grande acelerador de todas as contradições, ficaram sem resolução. O estudo da insurreição de 1905 em Moscou, portanto, ganha grande importância e relevo. Passemos a ele, portanto.

A INSURREIÇÃO COMO CONTINUAÇÃO DA POLÍTICA REVOLUCIONÁRIA POR OUTROS MEIOS

A insurreição na Rússia durante a revolução de 1905 acontece em Moscou no mês de dezembro; é expressão política de todo o processo revolucionário que se desenvolve durante aquele ano, com suas muitas greves, manifestações, greve geral, a formação do soviete em São Petesburgo, a partir de outubro, etc. A luta naquele mês de dezembro chega a um impasse, com a autocracia czarista tentando sufocar a mobilização, proibindo e prendendo os membros do soviete em novembro, mas não conseguindo estancar a luta do proletariado e setores oprimidos na Rússia. Esse momento de impasse leva a fração bolchevique da social-democracia russa a organizar a insurreição em Moscou como forma de tentar superar o impasse estratégico em que se encontrava a revolução russa.

Após a insurreição de Moscou o setor mais a direita entre os mencheviques, dirigidos naquele momento por Plekhanov, criticará a luta dos bolcheviques defendendo que foi um erro o proletariado pegar em armas contra a autocracia. Fruto de sua política de submeter o proletariado a direção da burguesia os mencheviques viam como saída para o impasse da revolução formas que pressionassem o czar a aceitar a ‘’imposição’’ de organismos de democracia que levassem a reformas liberais no regime, mas não viam a necessidade imperiosa de uma insurreição e instauração de um governo provisório revolucionário como única forma de garantir uma efetiva e profunda vitória da revolução e derrota do czarismo.

Assim, vemos que as diferenças entre bolcheviques e mencheviques no balanço da insurreição de Moscou tem uma base mais profunda, que é a estratégia que levavam a frente as duas frações em relação ao sujeito revolucionário e as tarefas da revolução russa. Enquanto os mencheviques viam possibilidades de conciliação com as classes dominantes os bolcheviques defendiam que a relação do proletariado revolucionário e os outros setores oprimidos e grupos subalternos com as classes dominantes era de uma contradição irreconciliável.

É o entendimento dessa relação irreconciliável entre dominados e dominantes, entre burgueses e proletários na sociedade capitalista, que leva ao entendimento da necessidade insuperável de uma insurreição para realizar o programa e estratégia proletários que supere sua exploração na sociedade capitalista. A compreensão da contradição estrutural e dos interesses antagônicos entre burgueses e proletários, da impossibilidade de uma conciliação de seus interesses de classe, mas antes que esses interesses tendem a se desenvolver de forma cada vez mais antagônica leva à necessidade dos representantes do proletariado que organizem uma ruptura radical com a sociedade capitalista e com os organismos que expressam super-estruturalmente seus interesses políticos.

A necessidade da insurreição é expressão, assim, não da vontade de uma direção, vontade subjetiva e ideal, mas das contradições concretas do capitalismo e dos interesses estruturalmente antagônicos entre burgueses e proletários. O reconhecimento dessas contradições objetivas levou a direção bolchevique, naquele momento, a preparar de forma consciente a luta que era expressão objetiva dos interesses do proletariado.

Assim como a guerra é continuação da política por outros meios, a insurreição é a continuação da luta política do proletariado revolucionário por outros meios, portanto. Uma política revolucionária do proletariado é aquela que reconhece os interesses inconciliáveis entre burgueses e proletários.

As guerras acontecem porque em um determinado momento os interesses dos estados que formam um determinado sistema de alianças, ou uma determinada balança de poderes, que até aquele momento conseguiam competir de forma pacífica se desenvolveram de forma tão antagônica e contraditória que os meios diplomáticos, de negociação, que antes conseguiam mediar seus conflitos não mais são capazes de representar uma resolução dessas contradições; como nenhum dos contendores abdica de seus interesses, não mais passiveis de serem resolvidos de forma pacífica (ou seja, os conflitos não mais são passíveis de resolução através dos antigos mecanismos de negociação, posto que política é conflito) é necessário que o conflito seja resolvido de forma física, concreta, por meio do enfretamento de suas forças.

Essa impossibilidade de os conflitos entre os países serem resolvidos através das antigas mediações que mantinham uma relativa balança entre os poderes contendores se dá ou porque um dos contendores, antes de menos ‘’status’’, conquistou uma nova força (ou avalia que conquistou) e quer garantir uma nova posição dentro de sistema estabelecido de estados, algo que o poder dominante vê como inaceitável, ou o poder dominante vê aumentar sua supremacia a tal ponto que quer impor uma dominação ainda mais unilateral sobre seus competidores e adversários e as muitas combinações possíveis entre esses dois fatores extremos.

A insurreição, como começo da guerra aberta entre as classes, segue uma lógica análoga. A partir de um determinado momento o equilíbrio entre as classes, sua ‘’balança de poder’’, que tinha se constituído no momento anterior, se rompe, fruto de um grande acontecimento, uma grave crise econômica, um grande fator político, etc, e os interesses contraditórios das classes que compõe a sociedade não mais podem ser resolvidos através das mediações políticas que tinham se constituído até ali. Os organismos construídos pelas classes dominantes para garantir o consentimento das classes dominadas à sua dominação perdem sua legitimidade, sua capacidade de construir esse consentimento ativo dos dominados; se abre assim um período de crise orgânica da dominação, de conflito aberto entre as classes, que só pode se resolver por uma vitória contundente de uma das classes, pela esquerda com uma revolução vitoriosa ou pela direita, pela repressão brutal dos organismos constituídos pelas classes dominadas para representar seus interesses políticos e a constituição de organismos que representem um novo equilíbrio favorável à classe dominante, até um novo momento de ruptura do equilíbrio.

A luta tem que assumir um caráter violento pois fruto das contradições estruturais e dos antagonismos objetivos das classes fundamentais que compõe a sociedade burguesa o estado, organismo legal de exercício de poder na sociedade capitalista, representa os interesses da classe dominante e busca reproduzir as relações sociais que representam esses interesses. Se o estado capitalista busca produzir uma série de mecanismo e organismos de construção de consentimento das classes dominadas à sua dominação (aparelhos ideológicos e aparatos hegemônicos) seu poder se baseia em última instância sempre em sua capacidade de repressão, no “monopólio do uso legítimo da força”, em sua capacidade de reprimir e desorganizar os aparatos hegemônicos próprios às classes subalternas.

Assim, se o proletariado busca expressar de forma organizada seus interesses, contrapostos pelo vértice aos interesses da burguesia, tem que num momento ou outro conseguir defender seus próprios organismos de poder e reprimir a resistência e contra-ataque do poder inimigo. Os momentos de insurreição, e a guerra civil que a segue, são esses momentos.

A DIFERENCIAÇÃO ENTRE OS APARATOS REPRESSIVOS BURGUESES: POLÍCIA E EXÉRCITO

A luta contra os aparatos repressivos da burguesia, contudo, nunca é uma luta predominantemente militar, mesmo nos momentos mais agudos da insurreição ou guerra civil a luta é predominantemente política. O objetivo do confronto não é eliminar fisicamente os combatentes do campo inimigo, mas desorganizar sua capacidade de lutar de forma organizada. A vitória no caso pressupõe a dissolução da polícia e divisão do exército e passagem de parte dos seus efetivos para o campo da revolução.

Isso leva a uma questão que contraditoriamente era uma evidencia para os bolcheviques mas que se levanta sempre como polêmica na esquerda brasileira: o papel da polícia. Se para os bolcheviques e para os operários revolucionários russos era uma evidencia que a polícia era uma inimiga inconciliável da revolução, não podendo ser ganha ou dividida da mesma forma que o exercito, posto seus papeis sociais distintos, para setores importantes da esquerda brasileira essa instituição, esse aparato repressivo burguês é algo a ser conquistado e dividido, partindo de uma visão mecânica de que a polícia como instituição é algo imediatamente igual ao exército.

Nesse debate temos que ir para além da questão se o policial é “sociologicamente” proletário ou não. Setores importantes da esquerda no Brasil defendem que o policial é proletário a partir da perspectiva de que ele ganha um salário e supostamente vende sua força de trabalho. Essa é uma frágil perspectiva e um mau entendimento do que representa o pertencimento ao proletariado e a polícia. O proletário além de receber um salário se caracteriza também por ser um sujeito livre, tanto no sentido de não ser propriedade de nenhum senhor em particular, o proletariado "pertence’’ como classe a toda classe burguesa, por assim dizer, quanto por seu trabalho não ter nenhuma determinação específica; o proletário não é metalúrgico, ou pedreiro, ou professor, ou bancário, etc, mas ele está em uma determinada condição e num determinado posto hoje, para assumir outra função e outro posto amanhã, dependendo da conjuntura econômica e das necessidades e demanda dos capitalistas pela mercadoria força de trabalho. Esse é um dos elementos objetivos que faz com que exista uma tendência no proletariado para a ruptura com um espírito de corporação e construção de uma efetiva consciência classista, pois cada proletário particular tende a ver em sua vida objetiva seu pertencimento não a esse ou aquele ramo da produção, mas a classe específica que é explorada pelos patrões.

O policial, diferentemente, não tem essa relação “livre” com a determinação específica de seu “trabalho”, mas ao ingressar no aparato repressivo entra numa efetiva corporação, destacada e em oposição ao conjunto da classe operária, com suas próprias regras de conduta, sua própria moral, suas próprias tradições e hierarquias, construídas de forma consciente para o contrapor ao conjunto da classe operária e dos oprimidos. A classe dominante, tendo que recrutar evidentemente os membros das camadas mais baixas de seu aparato repressivo do proletariado e demais grupos subalternos, cria esse espaço social artificial e destacado que é a policia, como forma de fazer romper os membros de seu destacamento repressivo das influencias potencialmente “perniciosas” para sua dominação da classe operária. Não enxergar essa verdade tão clara e evidente é o cúmulo da cegueira política e numa insurreição (ou mesmo em qualquer luta real mais séria) pode ter conseqüências catastróficas.

Mas para além do debate “sociológico” sobre se o policial é proletário ou não como determinação “puramente econômica’’ (algo que parece muito evidente ao autor dessas linhas ser falso, como expresso acima) a questão central é que mesmo que fossem proletários numa definição ‘’puramente econômica” os policiais seriam inimigos da classe de conjunto, pois a função social que cumprem os coloca numa relação de embate e em contradição com o conjunto do proletariado. A realidade é concreta, e por sua posição material e objetiva na sociedade a policia se coloca como organização eminentemente repressora, independente de uma determinação “puramente econômica” (ainda que, repito, mesmo de um ponto de vista econômico o policial não seja membro da classe operária, como expresso acima). Também uma parte dos capatazes e capitães do mato eram escravos no Brasil colonial e nem por isso esses deixavam de ser inimigos dos escravos rebelados.

Alguém poderia perguntar, contudo: "mas e quanto ao exercito, não são eles também uma corporação, porque a diferença política entre ambos, então?". Pelo papel social distinto que cumprem ambas as corporações, ambos os instrumentos repressivos; é essa a realidade concreta e objetiva que diferencia a política dos revolucionários para ambas as instituições.

Enquanto a polícia é construída como organismo que tem papel central a repressão de sua própria população, e a partir disso evidentemente os principais grupos reprimidos são as classes subalternas dentro de um determinado país, o exercito tem como função a defesa do país do inimigo externo, a defesa das fronteiras, etc, o que produz uma profunda diferenciação ideológica, "cultural", de tradição, entre ambos os organismo.

A partir da construção da ideologia da criminalidade, forma construída pela burguesia para justificar a repressão as classes subalternas quando a luta de classes esta em ‘’baixa intensidade”, o policial é educado a tratar como anti-sociais, como inimigos, todos aqueles que não se adaptam as regras e normas necessárias à reprodução ampliada da sociedade capitalista. Disso para tratar grevistas ou operários insurretos, que por definição são os menos adaptados as regras impostas pelas classes dominantes, como anti-sociais é um pequeno passo. Por isso nossa política para a polícia só pode ser sua dissolução e que a segurança dos grupos subalternos seja feita por eles mesmo através de milícias auto-organizadas.

Outro papel é ocupado e cumprido pelo exército; sua função de supostamente “defender o país” incuti em seus membros uma ideologia de comunidade e nacionalidade que não necessariamente vê os que lutam por uma transformação de suas instituições políticas como inimigos. Essa função e a ideologia que dela decorre permite também uma maior divisão entre os militares de patentes inferiores e superiores, e também a partir da origem de classe de seus integrantes. Assim, nossa política para o exército deve ser sua divisão, a capacidade de a partir da luta impactar um setor de seus integrantes e atraí-los para as fileiras dos insurretos. A resistência e luta dos sublevados deve ser forte o suficiente para ser capaz de impor a necessidade de que a classe dominante tenha que utilizar o exército para além da polícia, como organismo mais passível de ser influenciado pelas idéias revolucionárias.

É claro que aqui se colocam uma série de problemas concretos sobre as formas determinadas que se organiza o aparato repressivo em cada formação econômico-social particular. Já no século XIX, momento da formação dos grandes exércitos nacionais, a burguesia ascendente se colocava o problema de como construir um exército forte o suficiente para garantir a defesa do país num ambiente cada vez mais instável após a revolução francesa, mas que ao mesmo tempo não significasse o armamento massivo da população, continuando o exército a ser funcional como instrumento para sua dominação. Engels analisa esse problema no bojo de seus debates sobre a guerra Franco-Prussiana, por exemplo.

No Brasil, por exemplo, o problema se coloca de forma particularmente aguda tanto pelo caráter militar que assume a polícia, estando na prática em guerra semi-declarada aos setores subalternos da população civil, quanto ao caráter do exército, que pouco se constituiu como instrumento de defesa nacional e muito mais como instrumento de luta contra as revoltas dos setores oprimidos da população, principalmente a população escrava negra e posteriormente o próprio proletariado. Esse caráter particular do exercito brasileiro cria uma série de dificuldades adicionais para a política dos revolucionários em relação aos aparatos repressivos no país, que terão que ser resolvidos concretamente nas futuras lutas.

A CRÍTICA DE ENGELS A TÁTICA DAS BARRICADAS: QUE FORMA DEVE ASSUMIR A LUTA?

Mas se mesmo nos momento mais encarniçados da insurreição a luta ainda é predominantemente política é evidente também que nesse momento a luta política ganha outro conteúdo e significado; a capacidade de a partir da força impor medo aos inimigos, insuflar a coragem e confiança em suas fileiras e nas fileiras aliadas, dividir os setores intermediários, atraindo sua parte mais progressiva para o campo da revolução e mantendo sua parte mais conservadora passiva e paralisada, é tarefa fundamental. A única forma, por exemplo, de ganhar os setores vacilantes e potencialmente simpáticos nas fileiras do exercito para a causa dos insurretos é mostrando sua vontade e capacidade de se embater por suas idéias, mostrando a possibilidade de que esses rompam com a hierarquia a que estão ligados e se juntem a uma nova perspectiva que aponta uma possibilidade de vitória. Sem esse embate efetivo mesmo esses setores vacilantes no exército inimigo se veriam empurrados tanto ideologicamente quanto na prática concreta a continuar a reproduzir a hierarquia a que estão acostumados pela submissão.

Mas como garantir uma força militar efetiva e operante, capaz de opor uma resistência ativa aos ataques das tropas estatais certamente melhor treinadas e armadas? A primeira coisa a se ter claro nessa questão específica, para não tornar o problema algo abstrato e na prática impossível de ser resolvido é que não é necessário aos insurretos construir um exercito com uma capacidade técnica igual ou mesmo comparável a do exercito oficial do estado, algo que seria evidentemente impraticável no calor do processo e com a muito maior capacidade guerreira inicial do inimigo, ou seja, mesmo que se começasse a construir tal exercito combatente ele seria facilmente dispersado ainda no começo de sua preparação por um inimigo melhor treinado, armado e preparado.

Apesar da assimetria das forças militares ser um elemento estrutural da luta insurrecional os insurretos tendem a contar com grande superioridade moral no campo de batalha, posto a justeza de sua luta, o apoio popular (caso o momento de conflagrar a insurreição seja escolhido corretamente), sua muito maior capacidade de influenciar as tropas inimigas. Contudo, não se pode iludir-se ao mesmo tempo e pensar que a força moral dos insurretos substitua uma capacidade militar efetiva de resistir aos primeiros ataques das tropas. Como resolver então essa questão?

No final do século XIX essa questão tinha sido colocada novamente para os revolucionários (depois de décadas sem insurreições desde a Comuna de Paris) no ocidente quando Friedrich Engels escreveu um último prefácio para a publicação de ‘’Luta de Classes na França’’ de Marx. Para além do amplo debate sobre a falsificação que fizeram os dirigentes da social-democracia alemã naquele momento do texto de Engles, tentando torná-lo um defensor da tática meramente eleitoral e contrário as insurreições dos trabalhadores no final da vida, Engels, com seu amplo conhecimento militar (que lhe valia a alcunha de General dentro da I internacional) irá mostrar como a tática das barricadas na luta contra os aparatos repressivos estatais estava insuprimivelmente ultrapassada. A nova organização dos centros urbanos, com suas largas avenidas (que dificultavam a defesa das barricadas) e grandes prédios (que poderiam ser redutos das forças repressivas) assim como as novas armas, principalmente as metralhadoras, assim como a maior organização técnica e dos meios de comunicação do aparato repressivo tornavam inviável uma resistência efetiva por meio de barricadas.

Esse problema se colocará na prática para os revolucionários russos na organização da insurreição de Moscou em dezembro de 1905. Como discutido anteriormente o processo revolucionário tinha chegado a um impasse estratégico, com a revolução contando com amplo apoio popular mas com o czarismo buscando reprimir o movimento e prendendo suas direções. Era o momento ideal para a radicalização do processo e a passagem para uma nova etapa, a etapa de conflagração do conflito militar aberto entre os campos inimigos. Mas como organizar uma resistência ativa ao exército czarista, melhor preparado e armado?

A tática utilizada pelos bolcheviques será a da guerrilha urbana, com pequenos destacamentos, de 10, 5 ou até dois homens, que contando com ampla simpatia popular atacavam e desapareciam, sendo destacamentos extremamente ágeis e flexíveis. Nos panfletos e cartazes distribuídos por toda Moscou em dezembro, instruindo os lutadores sobre como se organizar a insurreição, insistia-se na necessidade desses grupos flexíveis, que eles não buscassem defender posições, ocupar prédios, etc, de onde poderiam ser facilmente desalojados pelas tropas czaristas.

Trotsky, em sua história da revolução de 1905 dirá que não mais que 800 pessoas participaram diretamente dos combates da insurreição de Moscou, por volta de 500 bolcheviques e 200 ou 300 socialistas revolucionários, mas que com o apoio ativo da população, com sua abnegação na luta e com as vacilações que conseguiram produzir dentro do exército esse pequeno contingente conseguiu resistir por mais de uma semana as tropas melhor preparadas e armadas.

As lições da insurreição de Moscou ainda estão a serem estudadas de forma mais profunda pelos revolucionários como base para futuros embates.

DEBATES POSTERIORES NA SOCIAL-DEMOCRACIA RUSSA: ORGANIZAÇÃO MILITAR PARTIDÁRIA E TRABALHO CLANDESTINO NO EXÉRCITO

Nos dois congressos posteriores unificados entre as frações bolchevique e menchevique da social-democracia russa, realizados em 1906 e 1907, se expressaram os balanços distintos das duas frações em relação a insurreição de dezembro em Moscou. Os mencheviques expressarão uma tendência a fazer um balanço negativo da insurreição enquanto os bolcheviques, a partir do balanço positivo tentarão tirar lições e expressar elas politicamente nos congressos.

Do reconhecimento da correção da forma de guerrilha urbana que assumiu a insurreição moscovita os bolcheviques defenderão a necessidade da organização de destacamentos especialmente treinados do partido para a luta, que em um momento de insurreição possam cumprir um papel de vanguarda na luta contra as forças repressivas, o que certamente garantiria ao partido grande influência moral e política sobre os setores sublevados.

Também defenderá a necessidade da organização de um estoque de armas, munições, etc, de forma clandestina que num momento de insurreição pudesse garantir aos destacamentos guerrilheiros ligados ao partido um primeiro armamento que lhes permitisse resistir aos primeiros ataques das tropas governamentais. Medidas como essa permitiriam ao partido social-democrata grande vantagem sobre os demais grupos na direção de uma possível insurreição que tomasse a forma de guerrilha urbana como aconteceu em dezembro de 1905. Seriam medidas essenciais para garantir ao partido operatividade e capacidade de atuação mais efetiva na luta contra as forças czaristas.

Outra medida defendida pelos bolcheviques, a partir do reconhecimento da necessidade de dividir as tropas do exército czarista, será a construção de um trabalho político prévio nas fileiras do exército, que dadas às condições objetivas deveria ser um trabalho clandestino. Esse trabalho político clandestino prévio permitiria ao partido atuar de forma mais efetiva nos momentos de embate entre as tropas e os insurretos para produzir de forma mais rápida e mais profunda fissuras no exército. O trabalho político prepararia as tropas e construiria potenciais figuras políticas que pudessem dirigir as rupturas nos momentos de maior tensão e vacilação.

A geração que nasceu após os anos 80 do século passado não viveu processos revolucionários, insurreições em nenhum país ocidental. Isso muitas vezes nos acostuma a pensar que as formas que tendem a assumir as lutas em que nos envolveremos continuarão a ser pacíficas e a se desenvolverem de forma gradual. O fim da etapa da restauração burguesa, contudo, mostra que não é assim e novos embates profundos da luta de classes se anunciam. É para eles que devemos nos preparar, e estudar os principais exemplos de luta do passado é tarefa fundamental. O autor dessas linhas espera que esse pequeno estudo seja uma contribuição, ainda que inicial e parcial, a tal empreitada.

 
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