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RESENHA DO LIVRO “A FAMÍLIA E O COMUNISMO”
O estado operário e a libertação das mulheres
Diana Assunção
São Paulo | @dianaassuncaoED
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Este ano veio a público a edição do livro “A família e o comunismo” com texto da revolucionária russa Alexandra Kollontai. Organizado pelas Edições Centelha Cultural e pelas Edições ISKRA, o livro traz introdução de Gilson Dantas, médico e militante setentista, além de anexo com o discurso de Vladimir Lenin em 1920 chamado “Às operárias”. Alexandra Kollontai escreveu este texto em 1917, em meio à primeira revolução operária da história, na Rússia czarista. Foi a única mulher a integrar o Comitê Central do partido bolchevique no ano da tomada do poder, 1917 e a primeira mulher do mundo a assumir o cargo de embaixatriz e dirigir a seção feminina da III Internacional com Lenin em vida.

Nos primeiros parágrafos do texto nos deparamos com uma interrogante que adianta o objetivo de Kollontai: “Como será a família no estado comunista? Ela persistirá da mesma forma que a atual família? São questões como estas que atormentam nesse momento à mulher trabalhadora e a seus companheiros, os homens”. Ainda que presa a certa heteronormatividade típica da época, Kollontai traz um debate vivo e necessário no seio de um processo histórico de luta de classes onde os trabalhadores e trabalhadoras estavam com o poder em mãos para reorganizar a sociedade em todos os níveis, incluindo as questões do modo de vida, do amor, da família.

Esta possibilidade de “tomar o poder” e reordenar a sociedade foi colocada em pé por uma poderosa classe operária dirigida pelo partido bolchevique que tinha à frente dirigentes revolucionários – ou “as expressões mais avançadas da classe operária russa” – como Lenin. Uma revolução que expropriou a propriedade privada, a burguesia e seus meios de produção, em aliança com o campesinato pobre de toda a Rússia e apontando que a Rússia era apenas uma expressão do que deveria ser uma revolução a nível internacional completada mundialmente.

Foi esta a revolução que permitiu o que nem mesmo as “mais avançadas” democracias burguesas conseguem proporcionar para as mulheres, como o direito ao divórcio – em países como o Chile tal direito foi concedido apenas em 2004, mais de 80 anos depois da revolução na Rússia -, o direito ao aborto hoje legal – embora cercado de burocracia - em apenas um punhado depaíses e mais que tudo a socialização das tarefas domésticas, libertando as mulheres da escravidão do “lar”. Estas eram medidas “elementares”, o mais mínimo do que se poderia conceder para alcançar a igualdade perante a lei, num momento de transição da sociedade capitalista ao comunismo. Mas como dizia o grande revolucionário russo Lenin, era necessárioalcançar a igualdade perante a vida.

Então este texto de Kollontai é uma contribuição a quem deseja conhecer os aspectos talvez mais difíceis de uma revolução, naquele momento pós-tomada do poder onde, como dizia o revolucionário russo Leon Trotski, colocava-se em curso um verdadeiro processo de metamorfose interno, culminando em uma “revolução dentro da revolução”, recolocando – agora com bases materiais e econômicas socializadas e planificadas – a possibilidade de reorganização das formas de relação sociais entre os seres-humanos. O tema da família não é, portanto, algo de menor importância.

Ao longo do texto Kollontai busca dialogar diretamente com a mulher operária que não apenas se encontrava imersa no maior processo revolucionário da história, como também se colocava milhares de interrogantes sobre como seria daqui pra frente a organização da sociedade. “Seja por erro ou ignorância, estamos dispostos a crer que tudo o que nos rodeia deve permanecer imutável, enquanto tudo o mais muda. Ou que sempre foi assim e sempre será. Esta afirmação é um erro profundo. Para nos dar conta de sua falsidade, não precisamos mais do que observar como viviam os povos do passado e imediatamente, vemos como tudo está sujeito à mudança e como não há costumes, nem organizações políticas, nem moral que permaneçam fixas e invioláveis”, dizia Kollontai para demonstrar às trabalhadoras que as mudanças nas relações familiares também eram expressão da própria história, e de seu motor, a luta de classes.

Isso porque sua tese principal é demonstrar que, justamente, a forma de organização familiar atual – naquele momento e ainda hoje – é funcional ao modo de produção no qual vivemos, no caso, o capitalismo. Trotski definia que a família era uma “pequena empresa”, pois partindo da mesma premissa demonstrava que todos os afazeres domésticos eram na verdade parte da exploração da classe trabalhadora, pois sem eles era impossível o operário ou a operária continuarem trabalhando no dia seguinte. No ambiente “reprodutivo” também se produzia então parte da mais-valia, só que desta vez gratuitamente, garantindo assim a exploração da classe trabalhadora sem aumentar os salários ou então sem aumentar os custos do Estado com tais serviços – o que poderia se dar diante da garantia de creches, lavanderias e restaurantes públicos, tal como se avançou na Rússia de 1917.

Este profundo questionamento que os marxistas revolucionários fazem da família tal como ela é hoje atribuiu sempre ao marxismo o papel daquele que “quer destruir a família”. Ora, a família proletária é destruída pelo próprio capitalismo, que impõe extenuantes jornadas de trabalho, dupla jornada, opressão, desemprego, salários de miséria e permanente situação de privação material, o que muitas vezes impede que as famílias possam desenvolver plenamente laços de amor e ternura entre si. Ao contrário, o marxismo revolucionário é uma teoria para buscar criar as bases materiais e econômicas que permitam libertar as relações pessoais e afetivas do jugo capitalista, e de todas as marcas deixadas pelas diferentes sociedades de classes em que a humanidade se dividiu até hoje, naquilo que Marx chamava de sua "pré-história".

Por isso o texto de Kollontai é um importante material para conhecer os direitos das mulheres que a Revolução Russa abriu espaço para levar adiante, bem como refletir sobre os passos ainda necessários a serem dados hoje, ainda mais depois de décadas de uma verdadeira “restauração burguesa”que trouxe uma série de retrocessos com relação às conquistas de gerações passadas. É um legado, como revolucionária russa, dirigente mulher do partido bolchevique que devemos relembrar e reivindicar, nunca nos esquecendo das décadas seguintes, em que Kollontai– ela mesma em franco retrocesso moral e político - esteve ao lado do processo de burocratização da União Soviética, desta vez tristemente fazendo parte de todo o retrocesso inclusive no âmbito da luta das mulheres que o stalinismo impôs contra a Revolução Russa.

Conhecer o que há mais de 90 anos atrás fizeram os revolucionários e revolucionárias russas, aprender dos debates apaixonados sobre o modo de vida, sobre a socialização da criação infantil, a reorganização familiar, o amor livre, são temas extremamente atuais em tempos de crise capitalista onde este sistema degradado e miserável vem mostrando cada vez mais sua incapacidade de permitir que as atuais e novas gerações desfrutem da vida, que é bela. Como termina Kollontai em seu texto naquele apaixonante ano de 1917 “A bandeira vermelha da revolução social que tremulará, depois da Rússia, em outros países do mundo proclama que não está longe o momento em que poderemos gozar do céu na terra, aspiração da humanidade desde há séculos”.

 
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