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MULHERES E UNIVERSIDADE
Quem são as mulheres da USP?
Diana Assunção
São Paulo | @dianaassuncaoED

Não há absolutamente nenhum motivo evidente para trazer a público um artigo de contraponto sobre o livro “As mulheres na USP – Horizontes que se abrem”, de Eva Blay e Alice Beatriz da Silva Gordo Lang. Não está em voga, não é relevante na área, foi lançado há anos. O único motivo é não deixar para Eva Blay e outras feministas burguesas o legado das “mulheres na USP”. Afinal, quem são as mulheres que colocam de pé esta universidade? Este artigo se propõe a desvendar este mistério, oculto no livro de Eva Blay, mas também nos currículos, nas salas de aula, nos rankings internacionais.

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Universidade de São Paulo: horizontes que se fecham

Eva Blay é uma das feministas burguesas que ajudaram a fundar o PSDB – não à toa foi braço direito de Fernando Henrique Cardoso em seu governo. Seu livro se propõe a explicitar a história de algumas “mulheres da USP” sendo elas professoras que se formaram na universidade como historiadoras, geógrafas, químicas, relatando as dificuldades machistas próprias da academia universitária.

Para iniciar qualquer contraponto é preciso partir de uma visão completamente oposta à da autora: consideramos a USP uma universidade de classe. Eva Blay reivindica o legado de mulheres que se formaram na Universidade pra ressaltar a importância da USP enquanto universidade de excelência e mostrar que mulheres podem ascender a cargos e profissões conquistando igualdade com os homens. Entretanto, a USP é hoje uma das universidades mais elitistas de todo o país, contando com um filtro social chamado vestibular – que deixa de fora milhares de jovens – escancarando uma triste realidade: com muros fechados, não há horizontes para a maioria da população.

Feminismo burguês e academia uspiana

O livro encara a questão da mulher por fora de uma perspectiva de classe. Nós consideramos que a opressão as mulheres perpassa todas as classes sociais, entretanto a defesa de que um suposto “empoderamento feminimo” (que as mulheres conquistem cargos de poder) paulatinamente vá fortalecer a luta das mulheres é um enorme engano, ou melhor, é uma estratégia para misturar a bandeira de luta de libertação das mulheres com as bandeiras da burguesia. Se partimos de que existem duas classes sociais fundamentais, a burguesia e o proletariado, então só podemos concluir que os interesses das mulheres burguesas e das mulheres proletárias, ainda que se identificando pelo gênero, são inconciliáveis. O livro de Eva Blay busca passar a ideia de que não há esta divisão de classes na luta de gênero, reivindicando um avanço feminino por fora de definir os contornos da combinação entre exploração e opressão.

É por isso que o feminismo burguês não pode reivindicar mais nada que não seja a igualdade para poder explorar como os homens, ou seja, a igualdade e a possibilidade de estar em cargos, dirigir empresas, ser professora apenas pra produzir conhecimento pra uma classe – a dominante, e por fim, ser presidente da república. Esta igualdade é baseada na enorme desigualdade da sociedade: a exploração capitalista. A academia uspiana tem sido um celeiro de quadros da burguesia nacional – com gente como Fernando Henrique Cardoso e tantos outros saindo de suas salas de aula – e nada melhor para fortalecer suas ideias do que ter grandes figuras mulheres defendendo o feminismo burguês e sua “igualdade de direitos”.

A verdadeira face do trabalho feminino uspiano

Mas eis que este livro, das mulheres na USP que supostamente abrem horizontes (para quem?) passa longe de falar da maioria das mulheres desta universidade. Além das estudantes e professoras combativas da USP, que lutam por democracia e estiveram ao lado das trabalhadoras, queriamos dar um destaque para o fato de que a categoria de trabalhadores da USP hoje conta com quase 50% de mulheres segundo o Anuário Estatístico da USP. É uma enorme força feminina explorada dentro da universidade, seja nas unidades de ensino, seja nas unidades de serviço onde são ampla maioria. Estamos falando das creches e dos restaurantes. Por trás de cada prato de comida há uma trabalhadora da USP que dedicou anos de sua vida à esta universidade e hoje sofre os efeitos em seu corpo da superexploração nesta “universidade de excelência”. Muitas mulheres dos conhecidos “bandejões” não conseguem mais fazer o movimento de levantar um prato, pelo desgastante esforço físico que seu serviço impõe, mas principalmente pelo desumano trato das chefias, nutricionistas e superintendentes da conhecida Superintendência de Assistência Social da USP, a SAS ou antiga COSEAS.

Depressão, tentativas de suicídio, restrições médicas, assédio moral. Essa é a verdadeira face do trabalho feminino na USP, dos quais o livro de Eva Blay não trata. E neste ano de 2014, essa voz embargada, de um exército de mulheres trabalhadoras, se fez ouvir na maior greve que a Universidade de São Paulo já viu: a greve dos 118 dias. Nesta greve, que contou com um Sindicato combativo como o Sintusp, pudemos ver a força de tantas mulheres trabalhadoras na linha de frente da greve. Seja nos piquetes, no carro de som, organizando suas unidades de trabalho, no Comando de Greve, nas tarefas de organização e políticas, muitas mulheres trabalhadoras se destacaram nesta greve. E mais do que isso, começaram a se organizar e também levantar as demandas das mulheres como parte da luta de classes.

Este é um contraponto gráfico: a luta das mulheres como parte da luta de classes, e não como fortalecimento de uma classe. O livro de Eva Blay pelo seu enfoque burguês, mesmo que reivindique direitos democráticos, não pode responder ao conjunto das mulheres da USP. Isso porque trata o conhecimento e a ascensão feminina não como caminho para a emancipação feminina nesta sociedade capitalista, mas como caminho para a perpetuação desta ordem. Ao mesmo tempo, este contraponto traz a tona a história destas outras mulheres da USP porque acreditamos que realmente elas são pilares fundamentais desta universidade.

Mulheres sem arrego, patrões sem sossego

A greve de 118 dias da Universidade de São Paulo, e a atuação do Sintusp, no que diz respeito a luta das mulheres pode ser um exemplo que contribua para este debate e ajude a avançar a luta das mulheres trabalhadoras. Isso porque para além do notável papel das mulheres na greve, ressaltamos as medidas levadas adiante pela Secretaria de Mulheres do Sintusp para organizar as mulheres trabalhadoras em reuniões próprias onde pudessem expressar os avanços da greve, mas também as dificuldades. A dupla jornada de trabalho como entrave concreto para a organização das mulheres – seja no nível sindical ou político – certamente é a mais citada, bem como a necessidade de luta por mais vagas nas creches para atender a toda a demanda. Mas o machismo descarado – que já é parte integrante do regime universitário – se expressa também em ações escandalosas de diretores de unidade agredindo mulheres grevistas. É o ódio de classe em especial contra os setores mais oprimidos.

Quando as mulheres soltam suas vozes, se organizam, não há quem segure. Já dizia um grande revolucionário russo que aqueles que mais sofrem com o velho são os que mais lutam pelo novo. Em meio a estes 4 meses de greve, ouvimos relatos estarrecedores de mulheres trabalhadoras contando suas tentativas de suicídio decorrentes de assédio moral e péssimas condições de trabalho. Relatos de mulheres terceirizadas que são tratadas como “ninguéns” na universidade – não constam no Anuário. Relatos também de estudantes, que estiveram junto com os trabalhadores na greve e têm uma grande história de luta que mereceria um artigo próprio, explicitando os casos de opressão que vivem nos cursos, inclusive de professores.

Essa greve foi, portanto, um grande grito das mulheres trabalhadoras da USP com um enorme destaque para as mulheres do Hospital Universitário que depois de 19 anos se levantou como uma força potente dentro da universidade. Os trancaços organizados pelo Comando de Greve foram expressões emblemáticas da força destas mulheres. Me lembro de uma trabalhadora do Hospital Universitário que pela primeira vez fazia uma greve, pela primeira vez participava de um piquete e, junto com as outras trabalhadoras, frente à repressão policial, em um cordão de mulheres e também de homens, gritavam “Fora PM!” que avançava, avançava, e então ela soltou em meio estes gritos um lamento “Que medo!!” mas em seguida continuou firme gritando junto a todas as trabalhadoras. Só a unidade da classe pode transformar o medo em luta, em garra.

Como essa, tantas outras mulheres se enfrentaram contra o medo da repressão – há uma foto emblemática de uma companheira sozinha empurrando uma dezena de policiais da Tropa de Choque – mas também se enfrentaram contra o senso comum de que as mulheres não participam de política. Destas mulheres da USP, muitas lições ficam. O que está por trás disso não é uma força feminina em si mesma. É a possibilidade de uma organização democrática de uma greve, com um Comando de Greve eleito e revogável, que permitiu colocar na linha de frente da direção da greve a força dos trabalhadores e das trabalhadoras. A isto se combinou a grande ação de estudantes com o “Cantinho das Crianças” que esteve presente na maioria das assembleias e Comandos de Greve, cuidando das filhas e filhos das trabalhadoras e trabalhadores para que o fato de ser mãe ou pai não fosse um impeditivo pra lutar. Uma trabalhadora, agradecendo as estes estudantes, disse “A voz deles completou a minha fala quando minha voz sumiu, e seus pés estiveram ao lado dos meus em todas as caminhadas. Eu não desanimei, apenas porque a determinação deles me deu força sempre que pensava em desistir”. A aliança entre mulheres estudantes e trabalhadoras é explosiva.

Como parte disso, alentar a organização das mulheres trabalhadoras e mais que isso, levar este debate para o conjunto dos trabalhadores é uma tarefa classista de primeira ordem. O debate realizado em meio a greve da USP contra o machismo, a homofobia e a transfobia, que reuniu algumas dezenas de trabalhadores homens e mulheres é um exemplo a ser seguido por todos os sindicatos que se reivindicam de esquerda. Com uma série de relatos sobre o machismo, ali em pequeno se gestava a ideia de que a classe operária pode discutir e rediscutir os aspectos mais profundos da desigualdade humana e da opressão e juntos combater a divisão que a classe dominante nos impõe. Foram relatos sinceros de trabalhadoras e trabalhadores pensando e repensando sobre suas ações no cotidiano, dentro de suas casas, falando sobre sexualidade – que a burguesia também quer expropriar de nós – e tratando todos estes temas de forma natural, não como “tabus”. É preciso avançar nesta direção.

Na USP branca, ecoa o grito das mulheres negras

E para fazer jus ao legado das mulheres da USP, estas mulheres invisíveis e também ocultas no livro de Eva Blay, não poderíamos deixar de citar os importantes embates femininos e negros das mulheres terceirizadas da USP. Este grito teve uma das expressões mais emblemáticas com a greve de 2011 das trabalhadoras terceirizadas da limpeza da empresa União, mas já havia um grande “ensaio” em 2005 com a greve das trabalhadoras da Dima, que teve Silvana Ramos como uma de suas “linhas de frente” – na época o nome dado para os “delegados por local de trabalho”. Em 2013 foi a vez das trabalhadoras da Higilimp soltarem seu grito.

Na época organizei um livro chamado “A precarização tem rosto de mulher”, que teve reedição em 2013. Uma das frases mais emblemáticas que citei tem tudo a ver (ou não) com o título do livro de Eva Blay. Uma trabalhadora falava sobre horizonte, ela dizia “Muitos achavam que a gente tinha que estar de cabeça baixa, que não podia ter amizades, pois era isso o que colocavam pra gente, pra gente não ter entendimento das coisas, pra gente ser analfabeto. Afinal, olhando pra baixo o que podemos enxergar? Mas eu aprendi a lutar com o Sintusp. Não devemos ter medo. Estamos nesta luta pra vencer”.

Estamos falando aqui de milhares de mulheres negras, um batalhão silencioso dentro da USP, que explodiu em revoltas – em 2011 a greve ficou conhecida como “a revolta da vassoura” – no que um professor da USP descreveu como “a luta de classes, expulsa das salas de aula, retornou à USP pelo banheiro”. Era o momento em que os canteiros de obras do Norte e Nordeste do país estavam “incendiados” pelas greves operárias.

A tradição de luta do Sintusp e estas greves somente reforçaram a necessidade de levantar com toda a força a bandeira da efetivação de todos os trabalhadores e trabalhadoras terceirizadas, sem necessidade de concurso público, uma vez que já comprovam diariamente sua capacidade de exercer o serviço.

Pela memória de luta das mulheres da USP

A luta das mulheres da USP passa por estas greves. Mas passam também pela história de mulheres que homenageamos ao fim de nossa greve quando os jovens ativistas do Comando de Greve leram um poema de autoria de Patrícia Galvão, trabalhadora, chamado “Aos mestres com carinho”. Para elas, às mestras com carinho, Neli, Solange, Dinizete, Marlene e tantas outras, nos ensinaram, independente das diferenças, um legado. A esta tradição, se somam as novas experiências das trabalhadoras da USP.

Esta memória viva passa também pela importante e fundamental luta de mulheres estudantes, moradoras do CRUSP e também de professoras que escolheram um lado para lutar. É preciso lutar para que o conhecimento esteja a serviço da maioria da população e não dos empresários e patrões. E que nos currículos não esteja apagada e oculta a importante história das mulheres rebeldes e revolucionárias, que podem ser um exemplo subversivo pra enfrentar esta ordem patriarcal e opressora que a cada momento se reproduz seja nas propagandas de televisão, seja nos cartazes de festas da USP.

Nos organizar é a primeira saída para enfrentar os grandes problemas das mulheres na USP, desde os problemas nos locais de trabalho, até os casos de estupro. Nós do grupo de mulheres Pão e Rosas a partir da Secretaria de Mulheres do Sintusp e também da incansável contribuição das estudantes desta agrupação, buscamos contribuir nesta perspectiva.

Para abrir horizontes é preciso enfrentar a dominação de classe. A luta das mulheres deve estar inserida neste enfoque. Como dizia Louise Kneeland, os que são socialistas e não são feministas carecem de amplitude, mas os que são feministas e não são socialistas carecem de estratégia. As mulheres precisam de uma estratégia de luta contra a sua opressão que só pode ser a estratégia da luta revolucionária contra este sistema capitalista e por uma sociedade livre de toda a opressão e exploração.

Texto publicado originalmente no site Palavra Operária - 17/04/2014

 
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