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CULTURA
Torquato Neto: Loucura e Morte no III Mundo.
Fábio Nunes
Vale do Paraíba

Alguns trabalhos do poeta, compositor e jornalista Torquato Neto (1944-1972).

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Meu objetivo aqui é apresentar alguns trabalhos do Anjo Torto do Piauí que pensou a Geléia Geral brasileira e provocou alguns curto- circuito na cabeça oca do pedantismo e do conservadorismo que ainda teima reinar em berço esplêndido.

Em maio de 1968, a gravadora Philips lançou o álbum Gilberto Gil, o segundo de estúdio do cantor e compositor baiano, tido como um dos álbuns fundamentais da Tropicália (ou tropicalismo). Torquato Neto assina junto com Gil as canções Domingou e Marginália II.

Marginalia II
(Gilberto Gil e Torquato Neto)

Eu, brasileiro, confesso Minha culpa Meu pecado Meu sonho desesperado Meu bem guardado segredo Minha aflição

Eu, brasileiro, confesso Minha culpa, meu degredo Pão seco de cada dia Tropical melancolia Negra solidão

Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo

Aqui, o terceiro mundo Pede a benção e vai dormir Entre cascatas, palmeiras Araçás e bananeiras Ao canto da juriti

Aqui, meu pânico e glória Aqui, meu laço e cadeia Conheço bem minha história Começa na lua cheia E termina antes do fim

Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo

Minha terra tem palmeiras Onde sopra o vento forte da fome, do medo e muito Principalmente da morte

A bomba explode lá fora E agora, o que vou temer? Oh, yes, nós temos banana Até pra dar e vender

Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo Aqui é o fim do mundo

Em Marginália II, hoje, uma canção tropicalista pouco divulgada pelos grandes meios de comunicação, Gil e Torquato apresentam uma crônica antropofágica das condições de vida no cotidiano violento das grandes cidades. Cantam a aflição de um povo sob as botas dos "milicos". Cantam o pão seco de cada dia no Brasil da fome e do medo. País fundo do poço. Yes, nós temos banana e a bomba explode lá fora. Aqui é o Terceiro Mundo. Aqui é o fim do mundo.

Em julho de 1968, a Philips lança o álbum-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis, obra coletiva de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes, Tom Zé, José Carlos Capinam, Torquato Neto e o maestro Rogério Duprat. Torquato assina com Gil as músicas Mamãe Coragem e Geléia Geral.

Geléia Geral
(Gilberto Gil e Torquato Neto)

Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplendente, cadente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geléia geral brasileiraQue o Jornal do Brasil anuncia

E bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi E bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi

E bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi E bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi

"A alegria é a prova dos nove" E a tristeza é o teu porto seguro Minha terra é onde o Sol é mais limpo Em Mangueira é onde o Samba é mais puro Tumbadora na selva-selvagem Pindorama, país do futuro

E bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi E bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança na sala No Canecão, na TV E quem dança não fala Assiste a tudo e se cala As relíquias do Brasil Doce mulata malvada Um LP de Sinatra Maracujá, mês de abril Santo barroco baiano Super poder de paisano Formiplac e céu de anil Três destaques da Portela Carne seca na janela Alguém que chora por mim Um carnaval de verdade Brutalidade, jardim

E bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi E bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi

E bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi E bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi

Plurialva, contente e brejeira Miss linda Brasil diz: "Bom dia" E outra moça também, Carolina Da janela examina a folia Salve o lindo pendão dos seus olhosE a saúde que o olhar irradia

E bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi E bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi

E bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi E bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi

Um poeta desfolha a bandeira E eu me sinto melhor colorido Pego um jato, viajo, arrebento Com o roteiro do sexto sentidoFaz do morro, pilão de concretoTropicália, bananas ao vento

E bumba iê iê boi Ano que vem, mês que foi E bumba iê iê iê É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança meu boi É a mesma dança meu boi

Geléia Geral, canção-manifesto do Tropicalismo, expressa, assim como Alegria, Alegria de Caetano Veloso, as propostas, o espírito e as contradições deste movimento, ou momento artístico que, segundo os seus criadores é uma forma antropofágica de relação com a cultura. A Geléia de Gil e Torquato é uma superposição de bumba meu boi, Jovem Guarda, Oswald de Andrade, Frank Sinatra, Jornal do Brasil, carnaval, TV, cinema, candomblé, bossa nova e carne seca. Um caldeirão-caleidoscópio psicodélico. Bananas em Transe. Le Soliel Tropical. Pow! Singela explosão.

Em agosto de 1971, Torquato começa a assinar a coluna diária Geléia Geral no caderno de cultura do jornal Última Hora. Geléia Geral, nos seus oito meses de existência, de agosto de 1971 até março de 1972. Assim como a coluna Underground do Pasquim, assinada pelo escritor Luiz Carlos Maciel, a Geléia Geral do Torquato foi uma plataforma para a contracultura no país dos generais.

Pessoal e Intransferível

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada nos bolsos e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino e maravilhoso. Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo dos braços. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair sua poesia, que, pensando bem, não é nada se você está sempre pronto a temer tudo, menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias herdeiro da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus. E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusao.

Uma coluna polêmica e iconoclasta que abordava questões do dia a dia, eventos culturais, considerações sobre música, televisão, cinema e teatro. Torquato criticou a censura, o moralismo tedioso das classes médias, a indústria fonográfica, os festivais da moda e aproveitou este espaço para denunciar a adaptação do cinema novo às verbas governamentais para a produção de filmes históricos, particularmente os produzidos pelos cineastas Gustavo Dahl e Cacá Diegues.

Ainda em 1971, Torquato reuniu um grupo de artistas da pesada na revista experimental Navilouca ou Almanaque dos Aqualoucos. Assim como as revistas Flor do Mal e Presença, a Navilouca faz parte das publicações que divulgavam a produção contracultural ou "marginal" dos anos 1970.

Concebida e organizada por Torquato e pelo poeta baiano Waly Salomão, com inspiração na Stultifera Navis, embarcação que na Idade Média circundava a costa européia recolhendo os loucos, os vagabundos e outros desajustados, Navilouca reuniu os loucos desajustados dos anos 1970, os "marginais" de novas sensibilidades empenhados num trabalho coletivo de experimentação radical de linguagens. Só os incomunicáveis que se comunicam.

A revista contou com trabalhos de Décio Pignatari, Rogério Duarte, Augusto e Haroldo de Campos, Jorge Salomão, Duda Machado, Hélio Oiticica, Caetano Veloso, Chacal, Lígia Clark, Stephen Berg, Luís Otávio Pimentel, Oscar Ramos, Luciano Figueiredo e Ivan Cardoso.

Monumento à Vaia. Viva Vaia Vaia Viva. Riso clandestino. O sangue da boca do lixo. O reflexo do mendigo num edifício em Manhattan. Environumental. Alfavela. Alfaville. Estraçalhar as neuras pelas vontades do corpo. Casa Vodum. Aqui e Ali. Ossadas. O corpo é cicratiz da mente. O teu cabelo tem cheiro de avião. Colapso. Enigmático. Fim da Febre de Prêmios & Pensões dum Poeta sem LLAAUURREEAASS.

A barra pesou com o decreto do AI-5 em dezembro de 1968. Emílio Garrastazu Médici assume o poder em 1969 e o terror é instalado no começo dos anos 1970. Torquato não quis ver o desfecho de tudo isso e na madrugada de 10 de novembro de 1972 cometeu suicídio em um apartamento no bairro da Tijuca no Rio de Janeiro, onde vivia com Ana Maria Silva e o filho Thiago de três anos.

 
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