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ARTE
A força política da arte
Afonso Machado
Campinas
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Não é mero capricho intelectual insistir na influência que a arte possui sobre o destino da sociedade. Aos olhos de cínicos e pessimistas, a insistência sobre os profundos laços que unem arte e política não passaria de um esforço deslocado no tempo e no espaço: é como se artistas e críticos de esquerda tentassem reviver imagens de épocas passadas. Tá na cara que ninguém aqui está a fim de bancar Dom Quixote. Não estamos sentados em volta de uma mesa, de mãos dadas, para tentar nos comunicar com ideias mortas: por maiores que sejam as reviravoltas em torno do conceito de arte, é este exercício de liberdade que pode denunciar e invalidar o sentido do formigueiro capitalista .

Tem gente que fala em uma integração social profunda do sistema, como se nos últimos 30 anos estética e política tornassem-se ideologicamente irrelevantes, incapazes de impedir a reprodução do capital. É fácil, ainda mais na atual conjuntura política, embarcar neste tipo de navio melancólico, olhando amargamente para a história com meia garrafa de whisky na mão. Mas para desespero dos conservadores, os fatos apontam para outras evidências. Se a arte realmente não causasse mais impacto social, como explicar a interrupção policial da peça teatral Blitz- O Império que Nunca Dorme, numa praça em Santos, no último dia 30? Este fato polêmico envolvendo a Trupe Olho da Rua, é um exemplo atual (junto a muitos outros, seja no teatro, seja em outras artes) que comprova a perturbação da comunicação artística. É inquestionável que a manifestação artística é algo que não passa batido na realidade.

A arte, mesmo quando não está colorida por ideias políticas revolucionárias, é uma força que pode incomodar a classe dominante. O tipo de experiência que a arte estabelece com o mundo é de choque, de estranhamento, visto que cria-se no plano de uma obra/manifestação uma outra realidade, que não obedece em muitos casos as leis que regem a realidade estabelecida pela sociedade capitalista. Ressignificar o mundo por meio da arte é um grande atrevimento: já que o homem é um bicho simbólico, a arte pode invalidar valores e tornar legitimo(visível, atraente e verdadeiro) tudo aquilo que está reprimido em nós. A possibilidade de uma outra ordem política, em que o humano se realiza(e portanto não é mutilado pela divisão social do trabalho) é escancarada pela arte. Não é uma mera guerra fantasmagórica com a ideologia burguesa, um conflito entre ilusões: na ficção, na mentira da arte, surge uma nova dimensão: é a possibilidade histórica de libertação. Esta evidência subversiva da arte, defendida e interpretada de diferentes maneiras por autores marxistas, deixa o Estado com a pulga atrás da orelha.

A substância “ mentirosa “ da arte diante de um mundo em que a verdade da burguesia deve ser a verdade de todos, é um desaforo político. Revelando o desejo de emancipação humana, a arte só pode ser revolta. Aproximando-se do real(na denúncia das contradições sociais produzidas pelo sistema) ou se distanciando da dinâmica ideológica estabelecida(criando um mundo fantasioso que se choca violentamente com a moral dominante) a criação artística é umas das coisas mais perigosas atualmente. É óbvio que o sistema não pode deixar o artista assumir sua missão revolucionária: o encontro entre arte e revolução é adiado por muita gente medrosa.

A conversinha de que não haveria mais proletariado( aquele blá blá blá de que a classe trabalhadora não seria mais revolucionária), bebe na mesma fonte que duvida do potencial político da arte. Existem aparentes pretextos históricos para intelectuais de classe média assumirem uma posição reformista e até mesmo conservadora: do colapso da União Soviética em 1991 até o presente momento, o capitalismo demonstra ser uma eterna linha reta em que caberia somente conservadorismo/fanatismo religioso, engenhocas digitais, consumismo desenfreado, guerras, tribos urbanas, crime, individualismo e um jogo de cartas marcadas na vida política. A ordem capitalista seria a palavra final da história: aos artistas caberia a pequena missão de enfeitar, decorar um mundo que já vem prontinho, aonde tudo(inclusive a arte) surge como produto carimbado. Teatro? Uma distração inofensiva das noites de sábado. Música? No seu celular, no seu fone e com mais ninguém. Literatura? Coisa de especialista! Cinema? Só se for filme de Hollywood(ou pelo menos algo parecido). Pintura: quanto custa? E neste vai e vem previamente calculado, a economia capitalista seguiria normalmente(será?).

As contradições inerentes ao próprio capitalismo geram manifestações, atitudes e comportamentos que o negam: greves, protestos, lutas das minorias, rebeliões, etc. O sonho furado da civilização burguesa alastra-se como pesadelo sobre a terra. É por isso que muitos artistas, mesmo sem posição política definida mas fieis às suas exigências interiores, perturbam os valores que fundamentam a presente sociedade: a expressão artística, que potencialmente subverte os códigos de linguagem, torna-se uma lente de aumento que expõe/revela o tecido morto da cultura.

É verdade que uma sensibilidade de tipo liberal afasta muitos artistas do campo da esquerda. Narcisismo e juízos relativistas sobre o mundo, ainda trazem prejuízos para o trabalho de gente interessante. Mas, como já foi dito inúmeras vezes nesta coluna, a esquerda está muito longe de saber lidar com a natureza específica da arte. Os mecanismos de criação e atuação do artista não podem estar subordinados ao imediatismo asfixiante da lógica partidária. Se o artista deve necessariamente tomar partido pela classe operária, sua contribuição parte do material sensível da obra de arte. Isto faz lembrar inclusive, as reflexões que Patrícia Galvão realizava nos anos 40: parafraseando Antônio Candido, a escritora fazia questão de dizer que é preciso mostrar aos jovens que existe tanta dignidade em perder as noites se dedicando ao estudo ou à elaboração de uma obra de arte, quanto entregar boletins.

A arte ainda é uma arma a serviço da emancipação humana. A esquerda deve estimular seu caráter revolucionário, propiciando o debate e a circulação de projetos artísticos. Não podemos mais levar um baile da burguesia no campo da cultura.

 
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