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TRIBUNA ABERTA
Os Cartões inteligentes e os Burgueses estúpidos
Orlando Pimentel
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Ao pensarmos na forma como se desenvolvem as relações de exploração do trabalho em setores de intensa complexidade tecnológica de nossos dias, não é raro encontrarmos análises que acreditam que vivemos uma espécie de período em que a centralidade do capital produtivo, como pivô das contradições e fonte última mesmo das mais astronômicas perspectivas de lucro nas bolsas de valores, estaria em jogo.

Segundo tais análises, não se trataria mais de enfrentarmos contradições inerentes ao sistema capitalista, mas investirmos nosso tempo para resolver problemas de mau gerenciamento e de logística de recursos. A hipótese seria a de que nossa capacidade de nos livramos dos grilhões do pouco desenvolvimento econômico seria progressivamente otimizada, graças ao avanço tecnológico, com a ajuda de uma rede articulada, tanto informacional quanto econômica, que auxiliaria na calibragem dos descompassos do sistema capitalista, principalmente quando em crise.

Não espanta que um dos cargos chefes do marketing de campanha de pelo menos dois candidatos burgueses à cidade de São Paulo – João Dória e Celso Russumano -, tenha sido a proposta de unificação informatizada do sistema único de saúde, com chips, cartões e dados de toda sorte. A pretensão é melhorar a circulação das informações através da rede de internet, e otimizar a gestão pública dos recursos, desperdícios, filas de espera atuais do sistema de saúde pública – e, a melhor parte, sem ampliar a estrutura e rede física do SUS! Nada mais atual e irônico que a combinação de política de austeridade, diminuição das estruturas públicas e tecnologia eficaz de gestão!

A falácia não é de hoje, no entanto. Os avanços da técnica e das possibilidades de intercomunicabilidade global, garantida por estruturas midiáticas transatlânticas, construídas ao longo do século XIX e XX, retroalimentaram os mais requentados dos discursos salvacionistas do desenvolvimento tecnológico e não é diferente com as áreas mais High-Tech do momento, nem com as propostas que criam promessas de eficácia de gerenciamento e boa planificação da coisa pública, através do emprego de tecnologias informacionais, centralizadas pelo estado.

Ora, primeiramente, devemos atacar tal discurso pelo mais óbvio: a gestão informacional, que candidatos como Dória pretendem implantar, está muito longe de ser feita por uma empresa pública de informática, gerida pelos próprios trabalhadores, utilizando máquinas de computação igualmente construídas por empresas que não exploram a mão de obra. Trata-se antes de um dos setores de maior exploração da mão de obra e, contraditoriamente, mais camuflado com relação às suas contradições, em escala global [1]. Para além disso, as propostas dos cartões inteligentes para os usuários do SUS abrirão, na verdade, caminho para futuros processos licitatórios que nada mais serão do que a velha forma requentada de diminuir as responsabilidades públicas que deveriam ser exercidas por empreendimentos igualmente públicos. Resumindo: Não serão um “software e hardware livre” (respectivamente os programas e as estruturas físicas da computação) que unificarão tecnologicamente o SUS, mas sim empresas capitalistas ávidas por um bom cliente, que lhes garantam os lucros que almejam.

Em segundo lugar, devemos nos lembrar um pouco da própria história e materialidade da computação, a fim de evitarmos a opinião simples de que estamos em um momento econômico pós-contradições, que se daria a partir de outros marcos econômicos, muito mais flutuantes, dinâmicos, fictícios e pós-modernos, próprios de um capitalismo mais acelerado e interconectado. Nick Dyer-Whiteford, estudioso canadense da materialidade da indústria da comunicação, em seu artigo “Capital Cognitivo Contestado: A composição de classe da Indústria de Vídeo Games”, na contramão das análises pós-modernas, lembra-nos como os mais fantasiosos e acelerados processamentos de informação, mesmo de algo tão pretensamente inocente quanto a indústria dos games, se dá sob os marcos de velhas formas de exploração da mão de obra.

A esta altura o leitor pode se perguntar: O que diabo videogames tem a ver com o cartão unificado do SUS? Não há Pokémon Go, não há inovação de software ou hardware, não há inteligência artificial ou programas que decidem por você qual será a melhor ação para comprar na bolsa de valores e, igualmente, não há proposta salvacionista para o SUS, através do uso da informática, sem uma extensa rede de exploração da mão de obra da indústria de eletroeletrônicos, que acontece desde a extração de Coltan no Congo, até as horas não dormidas de programadores sedentários, trabalhando sob regime completamente flexível e sem estabilidade trabalhista.

Se nos voltarmos ainda mais para o passado, na primeira metade do séc XIX, em que a primeira forma de máquina de computação, ainda literalmente à manivela e mecânica, foi proposta pelo então engenheiro, matemático e economista, Charles Babbage (1791-1871), veremos que o projeto se justificava através de um discurso de rebaixamento dos trabalhadores. Na época, a criação de tal máquina viria a substituir o trabalho “intelectual” humano em empreendimentos como censos, construção de tabelas de cálculos astronômicos e outros tantos que exigiam um incessante processamento de operações matemáticas, nos mais diversos setores.

Babbage se vangloria, em seu tratado de economia “On the Economy of Machinery and Manufacture” (Sobre a Economia da Maquinaria e da Manufatura), do fato de que, no futuro, seu invento poderia trazer uma pretensa melhor organicidade da divisão social do trabalho e, portanto, seguindo de perto os conselhos de Adam Smith, gerir melhor os talentos, economizar tempo, desperdícios e aumentar o lucro dos empresários. O que, já sabemos, não implica aumentar a renda do trabalhador ou mantê-lo nos postos de trabalho...

Ora, nada se mostrou mais contraditório na época e ainda o é. Ao desenvolver um novo instrumento e empregá-lo a fim de substituir a mão de obra que processava dados na ponta do lápis por máquinas de computação, iniciava-se o fetiche salvacionista da inteligência artificial e da possibilidade de otimização tecnológica da gestão e processamento de dados privados e/ou públicos, ainda que isso custasse o emprego e os meios de subsistência de milhares de trabalhadores.

Seja no passado ou nos nossos dias, portanto, o papel daqueles que lutam por uma sociedade sem patrões e almejam desmascarar a falácia econômica e eleitoreira, falácia “versão 2.0” da Burguesia, passa pelo projeto de concebermos uma estrutura integrada e informacional socialista, em que não apenas softwares e hardwares sejam livres, mas também a classe trabalhadora como um todo, sem distinção de trabalhos mais ou menos intelectualizados [2].

[1] As manifestações de operários de empresas como a Foxconn, prestadora de serviços da Apple, Sony, Nintendo entre outras companhias, são sintomas de tal exploração global, omitidos pelo ofuscante entretenimento dos produtos finais de tais companhias: smartphones, tablets e videogames de toda sorte, por mais inocentes que pareçam, são mercadorias e carregam a contradição que toda e qualquer mercadoria possui.

[2] Um belo exemplar desse tipo de mentalidade socialista para a computação de dados não é, em nada, uma idéia nova. No governo de Salvador Allende, com a ajuda de gurus da cibernética e da logística do calibre de Anthony Stafford Beer, os chilenos, em plena luta de ruptura contra o modelo capitalista, ousaram projetar um sistema de comunicação interligado ainda com a tecnologia do teletipo (https://pt.wikipedia.org/wiki/Teletipo) com as diversas empresas sob controle operário (http://www.esquerdadiario.com.br/Unidade-Popular-Cordoes-Industriais-e-o-golpe-de-Estado). O projeto, chamado de Synco ou Cybersyn colaborou na organização da classe trabalhadora contra as greves patronais (os lockouts). – Para mais informações sobre o projeto Cybersyn ver: https://www.youtube.com/watch?v=9a2R2dxlHVY.

 
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