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Zizek e o otimismo e pessimismo em tempos de Covid

Simone IshibashiRio de Janeiro

terça-feira 9 de fevereiro de 2021 | Edição do dia

A era da Covid-19 despertou muitos debates, não apenas sanitários, como políticos, sociais e teóricos. Não é para menos. Trata-se da primeira chaga verdadeiramente global da história recente. Isso não quer dizer, é claro, que já não estávamos diante de uma crise de proporções internacionais. A economia já apresentava prognósticos bastante negativos em praticamente todos os continentes. Mas a pandemia nos colocou em face de uma situação nova, ameaçadora e desconhecida, que escancarou de maneira ainda mais evidente e violenta as mazelas e decadência do capitalismo.

Rapidamente intelectuais das mais diversas vertentes elaboraram suas impressões sobre o significado da pandemia. Giorgio Agamben seria o primeiro a colocar toda a ênfase no aprofundamento do controle social operado pelos Estados, cada vez mais autoritários, em nome do controle da Covid. Vigilância em escala jamais vista e direitos violados seriam as vias primordiais. As teses do filósofo camaronês Achille Mbembe sobre a “necropolítica” também emergiram fortalecidas neste contexto. Em especial em um país como o Brasil que combina Bolsonaro, como uma espécie de “tipo ideal de reacionarismo negacionista”, com um desmonte histórico da Saúde protagonizado pelas instâncias degradadas do regime, como o Congresso e os governos dos estados, que nos legaram mortes irreparáveis e cenas das mais terríveis, como as ocorridas recentemente em Manaus.

Destoando dessas perspectivas, que apesar de se apoiarem em elementos inegáveis da realidade, trazem em si algo de distopia, Zizek tem apontado como a pandemia vem abrindo caminho a uma “nova solidariedade”. Mesclando ações de apoio tipicamente estruturadas a partir das convivências pessoais do cotidiano, com posicionamentos que englobam grandes monopólios, o filósofo esloveno diz: “É uma lógica estúpida, em um mundo globalizado, todos nós precisamos estar a salvo. Não sou idiota ―não digo que a covid-19 trará o comunismo―, mas também não sou pessimista: acredito nas possibilidades dessa nova solidariedade. Um detalhe insignificante e maravilhoso: em uma entrevista o fundador turco da BioNtech [o médico Ugur Sahin, com sua esposa, Özlem Türeci] disse: “Nós não podemos fazer tudo, precisamos de outras vacinas”. Um empresário perguntando “onde está a concorrência”! Que beleza! O trabalho desse casal fez mais contra o racismo do que todas as bobagens politicamente corretas”.

Se por um lado Zizek aponta um fator interessante, porque sim, durante a pandemia se mostrou que houve ações de solidariedade importantes, como as que foram vistas recorrentemente frente à crise de Manaus, por outro se torna cada vez mais patente que isso segue tendo a ver, de forma ainda mais dramática, com as classes. Porque enquanto correntes se criaram para ajudar os que mais sofreram com a precarização do trabalho, e os ataques por parte dos governos que vieram se acumulando durante todo o último período, igualmente pudemos ver demonstrações absurdas de individualismo e ganância capitalista. Como por exemplo, no casal de milionários canadenses que fretou um avião para viajarem ao interior do país, se passar por funcionários de um motel local para serem vacinados, já que toda a população do remoto local seria vacinada por conta do isolamento e da possibilidade de contaminação generalizada.

Mas este é apenas um exemplo individual. Zizek erra mais ainda quando considera que o dono de um enorme monopólio, como a BioNtech, teria feito “mais contra o racismo” que muitos outros setores. O que vemos na atual situação é uma demonstração ampla da ganância capitalista, na qual as patentes das vacinas se mantêm intactas, e a exortação à “concorrência” na sua produção por parte justamente dos que mais lucram com elas, é mera demagogia. Se as patentes fossem quebradas, e houvesse intervenção estatal de todas as empresas farmacêuticas e laboratórios, para colocá-los sob o controle dos profissionais de Saúde e servir a planos racionais de produção e distribuição de vacinas e testes, abrindo caminho para a nacionalização dessas empresas sob controle operário, não seria necessário competição para garantir à vida para todos. Isso o fundador da BioNtech, ou de qualquer outro monopólio, jamais consentiria em fazer.

Por isso, se por um lado as pitadas de otimismo de Zizek são uma contra tendência ao horizonte sombrio traçado por diversos intelectuais frente à pandemia, por outro há que notar que sua esperança se dirige ao sujeito errado. O entusiasmo não pode se dirigir aos representantes da classe capitalista, sobretudo da Big Pharma, mas dos que tudo criam e tudo podem subverter para disso salvar vidas e fazer emergir uma nova ordem: os trabalhadores e o povo. Que, aliás, tampouco estiveram paralisados, mesmo em meio à pandemia. O potente movimento negro estadunidense deu mostras de que a solidariedade que efetivamente pode nos oferecer uma saída não raro vem imbuída de revolta contra a atual ordem de coisas. É por aí que nossas esperanças devem caminhar.




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