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SEMANÁRIO

Xi Jinping, “senhor da guerra” na celebração dos 70 anos da República Popular da China

André Barbieri

Xi Jinping, “senhor da guerra” na celebração dos 70 anos da República Popular da China

André Barbieri

A República Popular da China, sob a batuta do seu strongman Xi Jinping, celebrou os 70 anos de sua fundação e do controle político do Partido Comunista Chinês, que em 1949 assumiu o poder sob a liderança de Mao Tsé-Tung, fruto da revolução chinesa. Algumas reflexões sobre este marco merecem ser feitas diante das contradições da ascensão mundial do dragão chinês.

A celebração da data de fundação da República Popular da China reuniu grande parte dos símbolos de poder chinês, um esforço por retratar o desenvolvimento tecnológico, industrial e bélico da segunda maior potência econômica mundial. Simbolicamente, o presidente Xi Jinping – que coordenou em detalhe o itinerário da festa – levou pela primeira vez anos oito de seus altos funcionários para visitar o mausoléu de Mao no coração da Praça Tiananmen, e culminou a data com a maior parada militar da história da China, arrancando elogios de ninguém menos que Donald Trump, seu arquirrival na guerra comercial.

Segundo o cânon oficial de Pequim, este aniversário não é nada mais que um ponto de passagem no caminho de sua “meta gloriosa” a ser atingida em 2049 (centésimo aniversário da Revolução chinesa); nesse ano, o “Grande Rejuvenescimento da Nação Chinesa” estaria concluído, o que significa que a China estaria “completamente desenvolvida” economicamente e “completamente unificada” territorialmente.

Esta confissão é a um só tempo uma constatação das debilidades do gigante asiático para ascender aos mais elevados poderes mundiais. Segundo anúncio de Xi em 2017, faltariam ainda 30 anos (duas gerações) para que a China obtenha um exército à altura das grandes potências, para não mencionar outros indicadores sociais como a renda per capita, o desenvolvimento tecnológico, indispensáveis para que a China comece a se situar no patamar dos maiores potentados mundiais.

A retórica do “Grande Rejuvenescimento” para apenas 2049 revela que a tradução de seu poderio econômico em capacidade político-militar ainda está em longo curso.

Ademais, outras questões atormentam o dragão asiático. O momento é paradigmático, e apresenta um cenário algo distinto daquele em que o presidente Xi Jinping anunciou seu pensamento acerca do “socialismo com características chinesas para uma nova era", no 19º Congresso do PCCh, celebrado em outubro de 2017. A economia chinesa está desacelerando, crescendo no ritmo mais lento desde o início da década de 1990. Essa desaceleração tem um componente estrutural, que obedece às conseqüências da crise econômica mundial: a necessidade de se alterar o fundamento do crescimento chinês, abandonando um padrão de acumulação baseado na exportação de manufaturas com baixo valor agregado, e construindo uma economia fundada na expansão do mercado interno e na exportação de alta tecnologia. Mas a desaceleração chinesa – que envolve dados preocupantes sobre a retração industrial – atende às novas dificuldades oriundas da guerra comercial travada contra os Estados Unidos de Donald Trump, um conflito que também parece se desenhar no horizonte como um “novo normal”.

Da mesma forma, Pequim encontra dificuldades políticas em seu território, com os já quatro meses de protestos da juventude e dos trabalhadores de Hong Kong contra o autoritarismo do governo central, protestos que foram desencadeados contra a Lei de Extradição imposta pela governadora Carrie Lam, mas que agora questionam não apenas a ausência do sufrágio universal (o cargo de governador é indicado por magnatas chineses, e precisa receber o aval de Pequim), mas o próprio pertencimento de Hong Kong ao país. Taiwan, território dirigido pelo velho partido nacionalista (Kuomintang) separado da China desde 1949, e que busca ser reincorporado pelo Partido Comunista, terá candidatos pró-independência nas próximas eleições, que repudiam a idéia. Além disso, os conflitos incessantes contra a minoria muçulmana Uighur, residente na província de Xinjiang (noroeste), também coloca preocupações sobre a unidade territorial da China.

Este cenário marcou o pano de fundo de uma celebração que, diante das dificuldades apresentadas ao mandarinato chinês, quis enviar o sinal de uma grande demonstração de forças, política e especialmente militar.

Uma demonstração de forças oriunda de um regime político que, ao contrário da confusão generalizada criada pela grande mídia (e por algumas correntes que exibem tudo, menos consistência teórica), não tem nada a ver com o socialismo. O Partido Comunista Chinês é uma maquinaria burocrática que, com seus próprios interesses em vista, administra há décadas a restauração capitalista no país, a ponto de ter vários grandes multimilionários em seus órgãos centrais de direção, conhecidos como os "empresários vermelhos" do PCCh. Burocracia esta que arquitetou as melhores leis para que os monopólios estrangeiros superexplorassem a classe trabalhadora chinesa, tornando suas fábricas, nos dizeres de Marx, “lugares que fazem Dante ver superadas suas fantasias mais cruéis sobre o inferno”; nisso, não muito distinto das velhas oficinas inglesas do século XIX...

Os sinais de dificuldade foram disfarçados atrás do culto à tradição. Na recepção de gala no Grande Palácio do Povo, diante da Praça da Paz Celestial, o presidente Xi Jinping apareceu vestido com o casaco cinza de Mao, no mesmo lugar em que o antigo líder do Partido Comunista esteve ao anunciar o estabelecimento da República Popular da China, a 1º de outubro de 1949. Em seu sucinto discurso oficial, que levou apenas 10 minutos, enfatizou o “estreito vínculo” do povo chinês ao redor do Partido Comunista para criar “uma força sem paralelo” que possa superar os desafios do país. Assegurou que “não há nenhuma força na terra capaz de abalar as fundações dessa grande nação, nenhuma força pode impedir o desenvolvimento da nação chinesa e do povo chinês”.

Esta espécie de estímulo de ordem populista precedeu o momento em que Xi garantiu que a China continuará aplicando o princípio de “um país, dois sistemas” a Hong Kong e Macau, com ambas gozando de “amplo grau de autonomia”; com respeito a Taiwan, afirmou que “a completa unificação da pátria é uma tendência imparável”, ao mesmo tempo em que convocou todos os grupos étnicos do país a “cimentar uma grande unidade nacional”.

Assim, os objetivos centrais marcados no discurso político de Xi retomam as linhas mestras delineadas no 19º Congresso. A estratégia exportadora agressiva que permitiu décadas de crescimento extraordinário e elevou a China ao status de segunda economia mundial se esgotou. Agora se abriu uma nova era que deveria conduzir à restauração da grandeza da China como uma potência mundial. Esta estratégia, que tem objetivos de médio prazo (uma sociedade "modestamente próspera" para 2020) e de longo prazo (status de grande potência), se sustenta por três pilares que foram novamente demarcados na celebração do 70º aniversário da RPC: o aprofundamento das reformas econômicas; o desenvolvimento da capacidade militar e a consolidação do regime de partido único.

Ao contrário de 2017, entretanto, a China está sendo hoje obrigada pela pressão de atores internos e externos, em especial os Estados Unidos, a ver mais comprimidos os tempos para as reformas estruturais em todas as dimensões sócio-econômicas, incontornáveis para estar à altura do desafio posto pelo imperialismo norte-americano que o considera seu principal competidor estratégico – e que, com Trump, mostrou que fará o necessário (por ora, dentro de uma estratégia de contenção) para frear sua ascensão.

Não é um acaso que a comemoração desse relevo a um aspecto particular, que ficou ressaltado acima dos demais: a exposição da nova tecnologia militar chinesa. A advertência aos adversários não deu lugar a ambivalências.

Exibicionismo de forças: Giovanni Arrighi de cabeça para baixo?

A parada militar em Pequim, que reuniu 15 mil soldados, centenas de tanques e de aeronaves, exibiu um verdadeiro arsenal bélico de alta tecnologia, especialmente quatro sistemas de mísseis que jamais haviam sido expostos, incluindo dois sistemas de mísseis balísticos intercontinentais (Intercontinental Ballistic Missiles - ICBMs, na sigla em inglês).

A jóia da coroa foi o Dongfeng-41, um míssil balístico intercontinental com alcance entre 13 mil e 15 mil quilômetros (deixando, portanto, os Estados Unidos dentro do seu alcance de fogo), capaz de carregar consigo até 10 bombas em sua ogiva, e que pode também disparar “chamarizes”, projéteis designados para enganar sistemas de defesa aérea, que atacariam essas iscas ao invés das ogivas reais. Os departamentos de defesa ocidentais acreditavam, até hoje, que estes aparelhos ainda estavam em fase inicial de desenvolvimento.

Outro dispositivo militar exibido pela primeira vez é o Dongfeng-17, um míssil balístico que ao ser disparado pode lançar, de dentro de sua cápsula, um drone hipersônico para o ataque final. Esse drone pode voar a uma velocidade hipersônica com proximidade maior à terra (maior que a do próprio míssil balístico), tornando muito mais difícil uma reação defensiva para interceptá-lo.

Desfile militar em Pequim

Outros mecanismos que conformam o novo aparato bélico do Exército de Libertação Popular são o Dongfeng-100 (míssil de cruzeiro hipersônico) e o Dongfeng-31, outro míssil balístico, atrelado a um veículo off-road que dificulta ser destruído por ataques inimigos. O DF-100, ou “hiper matador” segundo os entusiastas militares, tem alcance de 3 mil quilômetros, e teria como alvo grandes navios de guerra, como os que navegam na costa do Mar do Sul da China. Pelo ar, o ELP apresentou o caça bombardeiro H6, e os drones não tripulados Li Jian (“Espada Afiada”) e o WZ-8, aeronaves de reconhecimento hipersônico.

Esse novo aparato bélico roubou a cena da celebração, e a própria transformação da parada militar num acontecimento festivo, com balões e música, converteu o evento numa verdadeira comemoração militar. Muito diferente da última parada militar em Pequim, em 2015, que celebrava a vitória sobre o Japão na Segunda Guerra Mundial, e que se reduziu a uma solene cerimônia formal.

Personalidades militares chinesas, da ativa e da reserva, notaram com ufanismo as conquistas. Yue Gang, coronel da reserva do ELP, indicou o sentido das inovações, com sobriedade: “Embora não haja nenhuma chance de competirmos num mesmo nível que o exército norte-americano, estamos desenvolvendo equipamentos sofisticados e únicos para que os EUA não se atreva da dar o primeiro passo contra nós”. O general Cai Zhijun descreveu a celebração militar como a primeira demonstração da “reconstrução de um forte exército” – um objetivo central para Xi, que ordenou um expurgo no Exército no melhor estilo Deng Xiaoping com a meta de compor um exército de primeira linha, que esteja absolutamente subordinado a si. O orçamento militar crescerá 7,5% em 2019 para US$180 bilhões.

É sabido que a China não pode desafiar os Estados Unidos a nível global – as forças armadas estadunidenses são incomparavelmente superiores às chinesas em capacidade técnica, arsenal acumulado e pessoal treinado. Tomados em si mesmos, as inovações militares chinesas empalidecem diante do desenvolvimento de instrumentos de guerra no Ocidente. Entretanto, dentro de certos limites, Pequim já começou a desafiar o domínio norte-americano na Ásia na última década, para o qual se mostram úteis as novas conquistas técnicas. A construção de navios de guerra e submarinos nucleares, assim como a colonização do Mar do Sul da China através da construção de ilhas artificiais, já alteraram a balança de forças numa região que, desde 1945, é de domínio inconteste de Washington. O primeiro objetivo político-militar do Partido Comunista Chinês é remover a hegemonia dos Estados Unidos sobre a Ásia, e colocar seus aliados históricos (como o Japão e a Coréia do Sul) na mira de suas inovações bélicas.

Isso não significa que possa, ou queira, usá-las no curto prazo. Durante as últimas quatro décadas a política exterior da China e sua ascensão mundial foram regidas pela chamada "estratégia de 24 caracteres" de Deng Xiaoping, formulada em 1990 logo após os traumáticos acontecimentos da Praça Tiananmen, e no marco da derrubada da União Soviética e dos regimes stalinistas do leste europeu. Tratava-se de uma estratégia de cautela geopolítica sintetizada em consignas como "esconder nossas capacidades, esperar a nossa vez"; "não liderar as reivindicações", "exercer oposições moderadas", ou seja, não disputar a hegemonia dos Estados Unidos nem das potências estabelecidas, salvo em aspectos parciais.

Não obstante, o que vai dito acima desautoriza uma visão “harmonicista” do desenvolvimento dos acontecimentos no Oriente. Xi Jinping renovou os votos de que o crescimento chinês será “pacífico”. Especialmente em momentos de turbulência política e econômica, as pressões para fazer movimentos calculados serão maiores. Mas, seria mesmo possível o surgimento de um novo hegemon por vias pacíficas?

Giovanni Arrighi, em sua última obra Adam Smith em Pequim – Origens e Fundamentos do Século XXI, de 2008, desenvolve a tese da falência do projeto neoconservador de George W. Bush como um acelerador da decadência da hegemonia norte-americana, levando a conseqüente noção sobre a necessidade de reconstituir uma nova arquitetura nas relações de forças internacionais. Para Arrighi, o fortalecimento chinês combinado ao enfraquecimento norte-americano faria com que o mundo rumasse a um novo concerto, tendo agora a Ásia e, sobretudo a China, como epicentro. Esta possibilidade de instauração de uma era marcada pela hegemonia asiática foi saudada entusiasticamente pelo autor, que coloca como possível conseqüência de tais transformações a inauguração de um maior equilíbrio entre as potências, ou seja, um mundo mais harmonioso, ordenado a partir de então por um equilíbrio multilateral de forças.

A idéia de um desenvolvimento pacífico da China, justificado pela formação distinta de seu Estado, introvertida e não beligerante, abrange um rol de autores além de Arrighi, como Rafael Poch-de-Feliu (na instigante obra La actualidad de China), David Harvey, entre outros que, observando sagazmente as diferenças históricas na formação estatal do Oriente em relação ao Ocidente, terminam absolutizando esse aspecto e separando-o do conjunto de determinações mundiais que regem a nossa época imperialista.

De fato, as relações mais agressivas que a China estabelece em sua zona costeira, o tratamento da dissidência interna (como o show midiático da concentração de tropas na fronteira com Hong Kong), os projetos da Nova Rota da Seda e o Made in China 2025 (que envolvem um volume contundente de exportação de capitais) e a parada militar comemorativa dos 70 anos de fundação da RPC parecem colocar a teoria de Arrighi de cabeça para baixo, e indicam que Xi Jinping considera propício o momento de deixar para trás o período de emergência a passos de tartaruga e que, para continuar avançando até o "sonho" de "grande potência", seria necessário adotar uma política mais agressiva no cenário mundial.

A noção de uma renovação cíclica do capital, com a continuidade do continuum de declínio-ascensão de novas potências hegemônicas, que cumpririam seu ciclo secular, empurrando adiante o modo de produção capitalista, não atende aos condicionantes mais prementes de uma época de crises, guerras e revoluções em que, como dizia Lênin, no terreno da economia mundial, os resultados da luta de classes e dos conflitos interestatais são os que definem as novas relações de forças, e que não permite o surgimento de novos hegemons sem rupturas violentas no cenário mundial. Assim como a emergência de uma nova potência traz abalos sísmicos na situação mundial, com mais razão ainda o traz a decadência hegemônica de um titã imperialista como os EUA.

Nesse quadro é que Xi, sem abandonar a tradição militar milenar chinesa – que atende aos princípios de Sun Tzu, que tinha como máxima “Derrotar o inimigo em cem batalhas não é a excelência suprema; a excelência suprema consiste em vencer o inimigo sem ser preciso lutar” – começa a agregar algo de Carl von Clausewitz, velho general prussiano da era napoleônica, para quem os mais diversos objetivos, por diferentes que sejam, exigem um só método: o combate.

Isso coloca em um novo plano as contradições internas e externas que envolvem a transformação da China em uma superpotência.

Hong Kong e o verdadeiro xadrez político de Xi

Uma das principais contradições internas se localiza em Hong Kong. No dia das celebrações em Pequim, novas manifestações contra o Partido Comunista Chinês explodiram no território regido pelo princípio de “um país, dois sistemas”.

A revogação da Lei de Extradição, por Carrie Lam, representou uma grande derrota para a China, que teve de ceder aos protestos da juventude que agora vão além e querem a cabeça da governadora de Hong Kong, e o direito ao sufrágio universal (além da punição dos policiais envolvidos nas inúmeras repressões). Os mais de quatro meses de manifestações e enfrentamentos – que incluem uma greve geral dos trabalhadores do transporte que paralisou a cidade – são um golpe no autoritarismo de Xi Jinping, que não conseguiu desativar os protestos com o recurso de sucessivas represálias, e que incluiu a ameaça de invadir Hong Kong com seu exército. Os protestos já saíram do controle de Pequim, ainda que não cheguem a ameaçar o regime de dominação dos grandes magnatas chineses.

O principal elo débil das manifestações é a ausência de uma política de independência de classe que, ao mesmo tempo em que combata o autoritarismo do Partido Comunista Chinês, oponha-se decididamente à influência imperialista de potências como os Estados Unidos (há setores nas manifestações que carregam bandeiras dos EUA e rogam que Trump “liberte Hong Kong”) e a Inglaterra, que até 1997 mantinha Hong Kong como sua colônia. Uma política anti-imperialista e independente, que reúna a criatividade combativa da juventude aos métodos de luta da classe trabalhadora, pode dar contornos muito profundos. Se o movimento se acentua até a possibilidade de queda de Lam, seria um golpe de grandes proporções à figura de “homem forte” de Xi Jinping, acostumado a desativar com mão de ferro qualquer manifestação em território chinês, e especialmente perseguir jovens estudantes que, em nome de uma aproximação com as ideias do marxismo, buscam auxiliar trabalhadores chineses a se sindicalizar.

Ver também: Um espectro ronda a China: a avidez herética da juventude pelo marxismo

Do resultado da contumaz contenda com Hong Kong dependerá também a capacidade de Xi e do Partido Comunista Chinês controlarem os exacerbados ânimos anti-Pequim exibidos por Taiwan e pela comunidade muçulmana Uighur. O pesadelo chinês seria ver-se engolfado em disputas que ameaçassem a unidade nacional (ou mesmo apresentassem inimigos independentistas em locais fora de suas fronteiras, como Taiwan) no marco das disputas geopolíticas e econômicas com Trump e os Estados Unidos.

A China e a revolução permanente

Uma reflexão inescapável nesse aniversário de 70 anos da fundação da RPC, aqui colocada apenas em sobrevôo, nos remete a que situação nos levou a orientação estratégica da direção maoísta do Partido Comunista Chinês.

A direção burocrática de Mao e do PCCh levou a que o Estado operário chinês já surgisse deformado em 1949. Com a classe trabalhadora recompondo-se da enorme derrota sofrida na segunda revolução chinesa (1925-27), tragédia promovida e organizada pela política oportunista de Stálin de entregar os comunistas chineses às mãos dos verdugos nacionalistas burgueses de Chiang Kai-shek, a República Popular da China se originava sem qualquer vestígio de democracia soviética. Rompia-se taxativamente com o legado da III Internacional de Lênin e Trotsky: já não seria a classe trabalhadora organizada em conselhos, cuja vanguarda organizava sua influência através de um partido revolucionário, que levaria adiante a revolução; e sim uma revolta generalizada de camponeses dirigida por um partido-exército sob a estratégia da guerra popular prolongada de Mao. Esse campesinato, heróico em sua revolução contra a opressão colonial e imperialista, ao não ser dirigido pela classe trabalhadora organizada em partido revolucionário não pôde desenvolver uma ferramenta que substituísse a III Internacional stalinizada. A burocracia maoísta, desde o início, usurpava o poder político da classe trabalhadora, impedia que esta hegemonizasse o campesinato pobre, e bloqueava a dinâmica expansiva da revolução internacional, sem o qual é impossível vislumbrar a destruição do imperialismo e a construção de uma sociedade de produtores livremente associados, como dizia Marx, o comunismo.

Inclusive depois da ruptura de Mao com Stálin, aquele seguiu seu apoio à burocracia stalinista, tanto na URSS quanto no interior da própria China que comandava com mãos de ferro, como vimos durante as catástrofes do “Grande Salto Adiante” (1958-60) e da Revolução Cultural (1966-76). O destino da burocracia do PCCh, cuja estratégia circunscrevia as conquistas da revolução ao território chinês (e, por esse mesmo fator, as degradava), foi encabeçar o processo de restauração capitalista na China, cujo símbolo foi Deng Xiaoping, com reformas pró-mercado, na década de 1980 e especialmente a partir de 1993-1994, que colocaram dezenas de milhões de trabalhadores no desemprego, de um lado, e nas garras da superexploração das multinacionais estrangeiras, de outro (algo descrito com detalhes por Julian Gewirtz em “Parceiros improváveis: reformistas chineses, economistas ocidentais e a formação da China global”). Xi Jinping é o continuador dessa obra de destruição das conquistas da Revolução chinesa.

Os 70 anos da República Popular da China ocorrem sobre um estado que tem escassa relação com as heróicas gestas da classe trabalhadora. Celebra-se sobre o trabalho de uma tradição que promoveu a derrota. A tradição maoísta merece ser superada pela nova geração de lutadores que emerge na China. Grandes tarefas sociais e democráticas se interpõem diante dos trabalhadores, dos camponeses e da juventude chinesa. Na integração orgânica entre a resolução das tarefas democrático-estruturais na China e as tarefas socialistas, abre-se um novo caminho para que a nova geração se apodere da riqueza teórico-estratégia da revolução permanente de Trotsky.

A fusão entre a jovem classe trabalhadora chinesa e essa tradição revolucionária seria um acontecimento de importância histórico mundial, indispensável para o marxismo em nossa época.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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