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União Soviética na Segunda Guerra: e a luta de classes? Um debate com o podcast História Cabeluda [Parte 1]

Noah Brandsch

União Soviética na Segunda Guerra: e a luta de classes? Um debate com o podcast História Cabeluda [Parte 1]

Noah Brandsch

Em debate com o podcast História Cabeluda "O papel da União Soviética na Segunda Guerra", o produto final deste artigo se propõe a colocar um elemento não abordado nem pela historiografia liberal, nem pela stalinista: a luta de classes, que na Segunda Guerra protagonizou um dos maiores processos revolucionários a nível internacional da história. Neste primeiro artigo fazemos um debate sobre a caracterização da guerra, contrapondo a ideia de "democracia vs. fascismo", além do papel da III Internacional nos processos do pré-guerra que poderiam ter barrado um dos maiores morticínios da história: a ascensão de Hitler, a Revolução Espanhola e a experiência da Frente Popular na França.

No início do programa (que pode ser escutado aqui), o apresentador do podcast História Cabeluda, que entrevista o professor Rodrigo Ianhez, diz que a proposta é apresentar um ponto de vista sobre a tão famosa Segunda Guerra Mundial, ou Segunda Grande Guerra, que não seja a história “oficial” narrada nas escolas e nos grandes filmes sensacionalistas de Hollywood com um ponto de vista liberal e burguês; ou seja, pretendem apresentar o papel que a URSS cumpriu para a derrota da máquina de guerra nazista. Neste artigo, entretanto, buscamos fazer um debate, também não do ponto de vista burguês com os ianques trazendo a liberdade aos povos do mundo, mas destrinchando elementos que não foram debatidos pelo podcast, com uma análise marxista, trazendo o elemento mais ocultado tanto pelos liberais quanto pelos stalinistas (como nesse podcast): a luta de classes.

Com essa nova perspectiva histórica, tentamos também contribuir para que sejam tiradas lições estratégicas de uma das maiores ondas revolucionárias do século XX e da luta contra o fascismo, que vemos surgir em diversos cantos do mundo, fruto do aprofundamento da crise capitalista. E frente a uma constante tentativa da direita em igualar nazismo e comunismo na intenção de legitimar a hegemonia capitalista, como foi na recente polêmica no FlowPodcast com Monark e Kim Kataguiri, tentamos demonstrar com essa abordagem histórica como o nazismo é completamente oposto ao comunismo, e como o stalinismo também é oposto ao comunismo na medida em que se mostrou diversas vezes incapaz de derrotar a extrema-direita, sendo o coveiro de revoluções.

O que foi a Segunda Guerra? Uma caracterização

Para começar as pontuações mais específicas sobre esse processo, é preciso fazer um debate sobre o caráter da Segunda Guerra que, para a ampla maioria da intelectualidade e do próprio senso comum (fruto da indústria cultural e da ideologia burguesa), o período se caracterizava por um conflito entre regimes, ou por um conflito ideológico, sendo a "democracia versus fascismo”, ou "civilização versus barbárie”. Essa caracterização amplamente difundida é extremamente funcional tanto para os imperialismos e os liberais, pois os colocam como “os grandes defensores da liberdade e da democracia que derrotaram o totalitarismo”, quanto para os stalinistas, pois esconde a luta de classes, e simultaneamente, a traição feita pela burocracia no processo revolucionário a nível internacional que se abriu no pré-guerra e em 1943. Entre os próprios meios que se reivindicam marxistas ou “de esquerda”, essa bandeira é a mais levantada, principalmente pela difusão e prestígio do historiador Eric Hobsbawm em seu livro “História do século XX”, onde desenvolve esse pensamento, ou por autores liberais como Hannah Arendt.

Na análise do podcast, vemos que sua visão sobre a guerra não é muito diferente disso, pois, além de não mencionar a luta de classes e o acirramento do antagonismo entre burguesia e proletariado em tempo de “crises, guerras e revoluções” em nenhum momento do episódio, o professor ainda cita, no minuto 32min20s enquanto fala sobre a URSS na formação dos aliados após o início da guerra, que ela “não hesitou em estender a mão para americanos, ingleses e franceses… para chineses nacionalistas, enfim, para os aliados; estendeu a mão e muito bem, estamos juntos pela civilização contra a barbárie”. Além disso, quando perguntado sobre o que achava da posição dos trotskistas sobre a guerra, afirma que não sabe, mas que imagina que seja uma caracterização de “só mais uma guerra interimperialista” [1], dando a entender que ele não a considera assim.

Para uma caracterização que vá para além dos idealismos, romantizações ou análises do perfil psicológico de Hitler para justificar o acontecimento da guerra, é preciso analisar a história de uma forma materialista, dialética e marxista, como fizeram os trotskistas, principalmente Ernest Mandel em seu livro “O significado da Segunda Guerra Mundial”. Além de que, para os imperialismos “democráticos”, a sua política exterior não era muito diferente da nazista no viés ideológico e racial, caso contrário não teriam colônias na África e Ásia, e nem um regime de segregação racial que perdurou até 1964 dentro de seu próprio país, como tinha os EUA.

Com o final da Primeira Guerra, o capitalismo deixou em aberto diversas contradições que, como analisa Trotski, a longo prazo só poderiam gerar uma nova guerra imperialista (a não ser, é claro, que ela fosse barrada por uma revolução proletária). O Império Britânico e a França tinham, ao mesmo tempo, uma plena hegemonia colonial e de influências, porém com uma economia e indústria decadente, que estava sendo superada tanto pela Alemanha que já havia batalhado por uma hegemonia anos antes, [2] pelo Japão que buscava colônias na Ásia, e principalmente pelos EUA, que haviam lucrado horrores quase sem combater na Primeira Guerra, se tornando o principal produtor industrial do mundo, com o dólar ultrapassando a libra e com o domínio do capital financeiro já no início da década de 1920.

Para a burguesia alemã o sentido da guerra parece claro: completar sua perspectiva de hegemonia capitalista que não tinha sido alcançada com a derrota em 1918; e para isso, utilizou se do nazismo e de todas as suas reacionárias faces apoiadas nas classes médias arrasadas para, por um lado, desmontar as organizações proletárias que só aumentavam com a instabilidade social, e por outro, criar um complexo industrial e militar para disputar com os outros imperialismos; em outras condições, o mesmo acontecia com o Japão e com a Itália, que já invadia a Etiópia em busca por novas colônias, ambos se aliaram à Alemanha. Para os EUA, a crise de 1929 e a não retomada da economia com o New Deal, aliado à competição com a indústria alemã e à expansão japonesa no pacífico (que veio fazendo conflitos durante toda a década de 1930), gerou contradições em que parte da burguesia ianque via a necessidade de uma competição direta para a concretização de sua hegemonia mundial no capitalismo. Como analisa Trotski:

"Há dois sistemas que rivalizam no mundo para salvar o capitalismo historicamente condenado à morte: o fascismo e o New Deal. O fascismo baseia seu programa na dissolução das organizações operárias, na destruição das reformas sociais e no aniquilamento completo dos direitos democráticos, com o objetivo de prevenir o renascimento da luta de classes do proletariado… A política do New Deal, que trata de salvar a democracia imperialista por meio de presentes à aristocracia operária e camponesa só é acessível em sua grande amplitude para as nações verdadeiramente ricas, e nesse sentido é uma política norte americana por excelência." [3]

Os imperialismos francês e inglês evidentemente não queriam a guerra, pois isso significaria o fim de sua hegemonia, e não à toa a França, em junho de 1940, suplicava por um armistício com a Alemanha. A URSS também não queria a guerra, primeiro porque sabia que isso significaria uma invasão contra ela (por ser um Estado operário, ainda que deformado, e portanto um inimigo da burguesia, e por estar explícito nos escritos de Hitler seu desejo na região e na escravização dos povos eslavos), e segundo, porque uma guerra desencadearia necessariamente uma situação revolucionária que poderia incomodar a casta burocrática stalinista, o que de fato se concretizou.

Outro elemento que se adere à caracterização da guerra como imperialista é o esforço das potências que disputavam a hegemonia capitalista (seja a Inglaterra em decadência que tinha planos para uma possível invasão à URSS, a Alemanha nazista que já havia expressado seu interesse nos recursos naturais e humanos do território russo, ou os EUA que, posteriormente à guerra, entraria na chamada Guerra Fria contra a URSS) em derrotar o Estado Operário (ainda que burocratizado) que não haviam conseguido duas décadas antes. Nesse sentido, a guerra imperialista também tem uma dimensão contrarrevolucionária.

A guerra interimperialista efetivamente se materializou com a anexação de vários territórios europeus à Alemanha como uma “política por outros meios”, como analisa o general prussiano Carl von Clausewitz em sua obra “Da Guerra”, que foi apropriada, com as devidas configurações para a luta de classes, pelo pensamento militar e estratégico de Lenin, Trotski, Liebknecht, Rosa, Marx etc. Nesse sentido, da “guerra ser a política por outros meios”, pode se considerar que a guerra foi a expressão mais aguda da luta de classes e da disputa entre burguesias na época imperialista, uma época de crises, guerras e revoluções, como define Lenin.

Para tanto, façamos a reflexão: Por que que, apesar de mencionar todas as hipocrisias dos imperialismos aliados que se dizem a favor da democracia com toda a sua barbárie capitalista, e apontando inclusive os interesses da Inglaterra e EUA para invadir e enfraquecer ao máximo a URSS (como por exemplo deixando-a sem apoio no front oriental), os interlocutores do podcast não tratam do caráter interimperialista da guerra, ocultando a luta de classes, e sendo coniventes com o discurso anti marxista de “democracia versus fascismo”?

Sobre o assunto:
El trotskismo y la Segunda Guerra Mundial
La Segunda Guerra Mundial y su resultado
Considerações sobre democracia e fascismo: Trótski e a Segunda Guerra Mundial

O pré-guerra: qual o papel do stalinismo na derrota das revoluções que poderiam barrar o fascismo?

Para além da caracterização e da contextualização das disputas imperialistas que desaguam na guerra, abordadas no tópico anterior, é fundamental salientar que: as contradições do capitalismo nesse período, intensificadas pela Grande Depressão de 1929, abriu intensas convulsões sociais e movimentações da classe trabalhadora, inclusive no coração do imperialismo (Europa e EUA). Frente a isso, diversas burguesias se utilizaram do fascismo como a mais reacionária forma de desmantelar as organizações operárias e impor seus interesses, tanto sobre os trabalhadores, quanto sobre os outros imperialismos, como já foi explicado. [4]

O podcast praticamente não menciona esse período de luta de classes que, caso não houvesse a desastrosa política da III Internacional stalinizada, poderiam barrar a reação nazifascista e, consequentemente, a guerra, com revoluções operárias e socialistas no coração do imperialismo. Neste tópico, vamos nos debruçar sobre três processos: a ascensão de Hitler e a política do KPD, a revolução espanhola, e mais sucintamente o processo francês com a política das Frentes Populares, além de pontuações sobre o Brasil. E perguntamos: ao tratar da guerra, por que o podcast não fala sobre esses momentos elementares capazes de barrar a guerra e o fascismo, que tinham influência direta do Comintern, e consequentemente da URSS?

Alemanha:

A República de Weimar, que sentia as sanções do Tratado de Versalhes, após 1929 entrou em uma profunda crise econômica e social, onde em três anos a população desempregada se multiplicou por cinco. Nesse contexto, a burguesia alemã necessitava de uma saída que atacasse os direitos e organizações dos trabalhadores, procurasse novos mercados externos e expandisse o mercado interno a partir de uma massiva produção armamentícia. Tal crise gerou uma intensa polarização social e um acirramento cada vez maior da luta de classes. A saída para a burguesia (principalmente para o capital financeiro) foi o nazismo, que se apoiava sobre as classes médias arrasadas e enfurecidas pela crise e o lúmpen proletariado desmoralizado com um discurso chauvinista e de superioridade racial, em um movimento de massas para destruir a organização do proletariado. Por trás do racismo e anti semitismo, estavam os pilares da propriedade privada; o nazifascismo tem um caráter de classe muito bem definido: o do grande capital monopolista.

Desde o VI Congresso do Comintern em 1928, a linha adotada pelos PCs no mundo foi a do “terceiro período”, também conhecida como “classe contra classe”. Essa linha acreditava que o fascismo seria a última etapa de um capitalismo decadente, gerado por uma radicalização das massas que anulava os limites entre uma democracia burguesa e uma ditadura fascista, tendendo a restar apenas dois regimes que disputariam: o fascismo e o comunismo. Com essa visão completamente anti-marxista, o stalinismo igualava a Social-Democracia ao fascismo, os chamando de “Social-fascistas”. Era uma linha completamente ultraesquerdista, sectária, oportunista e aventureira.

Apesar do nazismo e da Social-Democracia, em última instância, não romperem com a propriedade privada, ambas são completamente diferentes: enquanto os sociais democratas (vamos chamar de SPD, sigla do Partido Social Democrata Alemão) se apoiam sobre os sindicatos e o movimento operário para conciliar com a burguesia e tentar fazer reformas, os nazistas se erguem justamente sobre a destruição das organizações trabalhadoras como a mais reacionária expressão da burguesia. A nível de estratégia revolucionária as diferenças são enormes também: enquanto o nazismo é a própria contrarrevolução burguesa, o SPD dirigia praticamente metade do proletariado, permitindo com que os comunistas fizessem uma Frente Única Operária para derrotar a contrarrevolução, ao mesmo tempo que exporia as contradições do SPD, levando mais trabalhadores à direção revolucionária dos comunistas.

Para saber mais sobre a Frente Única: Leon Trótski: Sobre a Frente Única (1922)

Por sua linha ultraesquerdista do terceiro período, o Partido Comunista Alemão (KPD), frente aos 6,4 milhões de votos no NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães/ Partido Nazista) em 1931 e à ascensão de Hitler em 1933, se recusou a buscar uma unidade entre os trabalhadores dirigidos pelo KPD e SPD para conformar uma Frente Única Operária com força para derrotar materialmente o nazismo que crescia a cada ano. [5] O resultado foi a divisão da classe trabalhadora, deixando o proletariado alemão impotente, desarmado e imobilizado frente aos nazistas; o fruto disso foi obviamente a ascensão nazista que destruiu, perseguiu e matou toda a vanguarda operária e suas organizações, inclusive colocando os outros partidos na ilegalidade e na repressão. Essa foi a primeira prova de fogo para que o fascismo fosse barrado, e como consequência também a guerra, se não fosse pela política stalinista da III Internacional.

No podcast, com razão, os comentadores falam sobre as atrocidades e os morticínios gerados pela máquina de guerra e pela ideologia nazista. Entretanto, não falam de sua ascensão, e muito menos do papel traidor cumprido pela burocracia stalinista, por quê?

Para se aprofundar: En torno a La lucha contra el fascismo en Alemania

Espanha:

A Guerra Civil Espanhola foi iniciada oficialmente em julho de 1936, entretanto, ela é herança da crise capitalista mundial e dos processos que ocorriam no próprio Estado Espanhol. Em 1931, a ditadura monarquista de Afonso XIII cai, dando espaço para um governo republicano que é eleito no mesmo ano. Nesse meio período ocorre um brutal acirramento da luta de classes, com diversas insurreições infelizmente derrotadas em 1934, como a Comuna das Astúrias que durou 15 dias, mas que expressavam o nível de convulsão e de luta dos trabalhadores. Um ano depois dessa derrota, o movimento operário começa a se reorganizar novamente com muita força, fazendo mobilizações pela libertação dos mais de 40 mil presos políticos das batalhas do ano anterior.

É nesse mesmo ano, em 1935, que no VII Congresso do Comintern se dá um giro de 180° na linha de atuação dos PCs, que ficou conhecido como informe Dimitrov: da política ultraesquerdista que levou à ascensão do nazismo, se desenvolveu a teoria de que o nazifascismo supera a democracia burguesa em relação à tirania capitalista e supressão das liberdades (o que é verdade), e que “Nesse período, a opção não era entre a democracia burguesa e a democracia proletária, mas entre a liberdade e a tirania contrarrevolucionária.” [6] e portanto a tática que deveria ser utilizada seria a da formação de Frentes Populares com todos os setores que se diziam antifascistas, incluindo a burguesia liberal. Nos dias de hoje, poderíamos comparar a uma frente ampla com o PSDB para tirar Bolsonaro, mas em uma situação revolucionária, literalmente de vida ou morte e com a possibilidade de frear um dos maiores morticínios da história. Essa política, além de não enxergar a luta de classes, tirava a autonomia do proletariado e o subordina à burguesia, que é completamente incapaz de barrar o avanço do fascismo; na prova concreta, ela também se mostrou um tremendo fracasso e uma traição, como veremos agora. Trotski, sobre a Frente Popular fazendo analogia com a matemática, diz em seus escritos da Revolução Espanhola:

“Essencialmente, os teóricos da Frente Popular não vão além da primeira regra da aritmética, ou seja; “comunistas” mais socialistas, mais anarquistas e mais liberais somam um total que é maior que seus respectivos números isolados. Essa é toda a sua sabedoria. No entanto, a aritmética sozinha não é suficiente aqui. Necessita-se também pelo menos da mecânica. A lei do paralelogramo de forças se aplica também à política. Nesse paralelogramo, sabemos que a resultante é mais curta, quanto mais as forças componentes divergem entre si. Quando aliados políticos tendem a seguir direções opostas, a resultante mostra-se igual a zero” [7]

Em 1936, a já formada Frente Popular vence as eleições antecipadas em fevereiro, passando a gerir o Estado republicano. Essa Frente era formada por partidos burgueses liberais e republicanos, o Partido Comunista Espanhol, o POUM (Partido Operário de Unificação Marxista, que tinha uma política centrista), e alguns setores anarquistas . Ao mesmo tempo, o acirramento da luta de classes só aumentava, com uma onda de greves pelo país inteiro, os trabalhadores invadindo prisões e libertando os presos, e camponeses fazendo a reforma agrária com suas próprias mãos. Frente a isso, a burguesia fascista e monarquista representada por Franco começa a perseguir líderes e dirigentes socialistas e anarquistas, [8] e em 17 de julho dá um golpe de Estado em Marrocos, simultaneamente com uma tentativa de golpe na Espanha, abrindo a guerra civil.

Frente ao golpe, os trabalhadores que tinham se auto organizados em conselhos e comitês exigiam armas ao governo para lutarem contra o fascismo; a Frente Popular não concedeu as armas. Entretanto, os trabalhadores saquearam lojas e quartéis e derrotaram em grande medida os fascistas, principalmente na cidade de Barcelona, que era o principal polo industrial do país e que chegou a tomar o poder na cidade. Se observava uma verdadeira situação de duplo poder, um poder burguês organizado tanto nas forças do Estado e nos fascistas, e o poder dos trabalhadores que se auto organizavam, elegiam deputados de operários, camponeses, soldados, e naquele momento tinham controle de cerca de três quartos do país.

Os comunistas/stalinistas, socialistas do POUM e anarquistas (em parte), junto à burguesia liberal, compunham o governo burguês e foram responsáveis pela reconstrução do Estado capitalista que estava sendo arrasado pelo proletariado auto organizado. Em novembro de 1936, o governo republicano forma o Exército Popular (um exército do Estado burguês), e convoca todas as milícias operárias e camponesas (que eram formadas através dos conselhos e comitês) a deporem as armas e se integrarem à esse exército, dissolvendo-as, e alegando que combateriam o fascismo. As bases das direções obviamente se opuseram a essa medida, principalmente as mulheres, que eram linha de frente e, caso integrassem o Exército Popular, não poderiam carregar fuzis, mas sim ficar subordinadas à cozinha e à enfermagem. Então, em fevereiro de 1937, a Frente Popular desarma o proletariado à força e com repressão, restituindo a polícia que havia sido dissolvida. Enquanto isso, a ofensiva franquista continuava, inclusive com a ajuda de bombardeiros enviados por Hitler e Mussolini.

Em maio do mesmo ano se iniciou uma nova onda de insurreições, em que a polícia do governo burguês (com o PCE à frente [9]) reprimiu violentamente as manifestações e greves, dando espaço para uma violenta contra ofensiva fascista. A partir daí os fascistas vão desmontando cada organização dos trabalhadores por todo o país, até derrotarem a Catalunha no começo de 1939, e desfilando por Madrid, dando fim à guerra civil, em abril do mesmo ano. [10]

Esse foi, na análise dos trotskistas, o último processo capaz de barrar a guerra, pois, apesar de não participar do conflito, uma revolução na Espanha, formando um Estado operário que expropriasse por completo os capitalistas, desencadearia uma onda revolucionária por toda a Europa! O podcast não cita esse processo que poderia ter evitado a guerra em quase nenhum momento, e muito menos o papel nefasto e traidor do PCE. A única coisa que cita é que as “democracias imperialistas não se opuseram ao golpe fascista de Franco”, o que é verdade, e também cita que “os únicos que se colocaram contra os fascistas foi a URSS, enviando armas e suporte ao governo republicano”, o que também é verdade: enviaram armas para o Exército Popular e a polícia reprimir os trabalhadores que lutavam contra o fascismo e o capitalismo, ao invés de ter uma política revolucionária com independência de classe, que se baseasse no legado dos bolcheviques em 1917.

Mais sobre a Revolução Espanhola:

A Revolução Espanhola – compilação – Iskra

França e considerações sobre o Brasil:

Exemplificaremos aqui, brevemente e sem o intuito de esgotar o debate, mais dois exemplos em que as Frentes Populares de Dimitrov foram utilizadas: a França e o Brasil. O primeiro pois foi algo sintomático para a posterior ocupação nazista, e o segundo para pensarmos na história da luta de classes de nosso próprio país; entretando, essa tática foi utilizada internacionalmente pelos PCs.

Pode interessar também:A questão negra nas internacionais operárias e comunistas

A partir de 1934, se viu na França uma articulação de diversos grupos fascistas que cresciam, e na mesma medida, a atuação cada vez maior do movimento operário com greves e manifestações antifascistas, empurrando a estrutura da burocracia sindical do Partido Socialista (SFIO) e do Partido Comunista (PCF) a se movimentarem. [11] Em 1935, como já foi dito, se organizam as Frentes Populares, [12] e na França o SFIO e o PCF se unem ao Partido Radical, um partido de direita ligado à opressão colonial francesa na África. Dessa maneira, frente ao processo cada vez maior de radicalização das massas, a política adotada pela Frente Popular era uma linha chauvinista de “defesa nacional”, inclusive desmobilizando greves e barricadas feitas por trabalhadores, como em Brest e Toulon.

Com a radicalização, os trotskistas analisaram que os trabalhadores se organizavam com uma força que poderia desmontar a Frente Popular e levantar uma política de independência de classe: os chamados Comitês de Ação, em busca de conformar uma Frente Única Operária, que Trotski desenvolve aqui.

Em 1936 a Frente Popular é eleita, e no mesmo ano se abre uma onda grevística de mais de 2 milhões de operários, porém que foi derrotada pela direção do PCF e SFIO, que desviou a mobilização para o aumento de salários e alguns direitos, no que ficou conhecido como acordos de Matignon. Nos dois anos seguintes, todos os direitos conquistados por essa mobilização foram retirados pela crise, e a repressão vai desorganizando cada foco do movimento operário, até que, em 1938, o governo caiu nas mãos do colaboracionista com Hitler e Mussolini, Édouard Daladier. Mais uma derrota da Frente Popular.

É interessante notar que, diferentemente da Espanha, a vanguarda operária e de soldados que protagonizou as lutas não foi exterminada fisicamente, tendo um forte papel na luta contra a ocupação nazista e contra o imperialismo durante a guerra. Sobre a França, é importante firmar que, durante a invasão nazista, a burguesia francesa mal se mobilizou (o que explica em grande parte a facilidade da invasão), pois temia mais o proletariado herdeiro da Revolução Francesa e da Comuna de Paris do que os nazistas.

No podcast, citam que a burguesia francesa colaborou com a invasão nazista. Entretanto, não mencionam o motivo disso, e muito menos a luta de classes que precedeu esse momento, a luta dos operários franceses contra a ocupação e a política traidora da Frente Popular.

Passando rapidamente sobre o Brasil, a política de Frente Popular também foi adotada pelo PCB. À época, o país vivia sobre a ditadura de Vargas, e com um forte crescimento do “fascismo tupiniquim" (Ação Integralista Brasileira). Da Frente Única Antifascista (FUA) criada em 1935 por pressão dos trotskistas da LCI (expulsos do PCB anos antes), que organizava os trabalhadores dirigidos por organizações e partidos anarquistas, socialistas e comunistas com independência de classe, responsável por protagonizar a vitória da “Revoada dos Galinhas Verdes” na Praça da Sé, o PCB passa a integrar a Ação Nacional Libertadora (ANL), uma frente policlassista que organizava setores da burguesia nacional que se colocavam contra Getúlio Vargas. No mesmo ano, tentou a fracassada Intentona Comunista sem quase nenhuma participação popular, que foi brutalmente reprimida pelo governo; anos depois, 1940, apoiou o governo e tentou ao máximo imobilizar qualquer ação das massas para não “desestabilizar o governo que estava na luta contra o fascismo”, nas palavras de Prestes, deveriam “apertar os cintos”. [13] A ANL, como provou a história, se mostrou incapaz de repetir a derrota aos fascistas, à Vargas e ao imperialismo, como fez e poderia fazer a curta experiência da FUA, caso tivesse sido levada à frente.

Para saber mais sobre o processo Francês:
Trótski, Gramsci e a emergência da classe trabalhadora como sujeito hegemônico
Trotski, Aonde Vai a França? - 1934
Uma breve visão sobre a Era Vargas e a ANL:
O Brasil de Getúlio Vargas

Para não ficar muito denso e longo, o artigo será dividido em três partes. Nessa primeira, o objetivo era, além de contrapor pontos que não foram abordados pelo podcast, debater sobre o caráter da guerra, contraponto a visão que oculta a luta de classes de “democracia versus fascismo” ou “civilização versus barbárie”, e pegar exemplos de como essa concepção, quando levada para o plano estratégico do movimento comunista e operário, está fadada ao fracasso. Em momentos como os atuais, de aprofundamento da crise capitalista, de surgimento da extrema direita e de organizações facistóides a plano internacional, e de boa parte da esquerda com o discurso de “fazer frente ampla até doer” contra o Bolsonaro, é fundamental pensarmos qual estratégia, tática, política e programa precisamos levantar na luta contra a extrema direita. A Frente Ampla e a estratégia stalinista de conciliação de classes se mostrou, com a prova da história, incapaz disso!

Pode interessar: Como a esquerda revolucionária deve se posicionar em 2022?


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FOOTNOTES

[11h24m40s

[2Apesar de sofrer fortes sanções pelo Tratado de Versalhes após sua derrota na Primeira Guerra, os imperialismos vencedores não desmontaram por completo o exército alemão, apenas limitaram-no, pois tinham medo que outra onda revolucionária se apossasse do forte proletariado alemão sem que a burguesia pudesse reprimir, como na derrubada da monarquia em 1918; essa onda de fato se concretizou em 1923, com a revolução alemã que foi derrotada pela linha ultraesquerdista de Bukharin adotada pela III Internacional já no início de seu processo de burocratização. Além disso, o complexo industrial da Alemanha não foi desmontado, inclusive com a Inglaterra apoiando Berlim contra Paris, para tirar a concorrência francesa da disputa por hegemonia.

[3León Trotsky, Naturaleza y Dinámica del capitalismo y la economía de transición, "El marxismo y nuestra época", C.E.I.P "León Trotsky", 1999, pág. 185. Tradução minha

[4Lembrando que, no caso dos EUA, onde explodiam greves e manifestações, para conter a classe trabalhadora a burguesia se utilizou da política do New Deal, o que também já foi explicado no tópico anterior.

[8Os anarquistas tiveram um forte papel na revolução espanhola, dirigindo a maior central sindical, a CNT; a derrota da revolução pode ser discutida também pelo papel da direção anarquista, que se negou a tomar o poder e inclusive compôs o governo frente populista em um determinado momento, porém isso é outro debate, e no presente artigo vamos nos limitar a debater o papel do stalinismo.

[9O PCE, inclusive, cumpriu o papel nefasto de reprimir e perseguir militantes trotskistas, do POUM e de esquerda.

[10Podemos pensar em uma analogia, que apesar de pecar em alguns aspectos, serve para visualizarmos a situação: frente ao governo provisório de fevereiro de 1917, suponhamos que os bolcheviques tivessem composto seus ministérios ao invés de proclamar a máxima de Lenin nas Teses de Abril de “Nenhum apoio ao governo provisório! Todo poder aos sovietes!”; e frente ao golpe de Kornilov, tivessem desarmado o soviete de Petrogrado, deixando o proletariado desamparado? Pela debilidade da burguesia liberal em combater o fascismo (na analogia representado por Kornilov), o golpe teria ocorrido e a revolução russa fracassado. Bem, foi isso que o Partido Comunista Espanhol fez ao integrar e participar ativamente do governo da Frente Popular.

[11Curiosidade: nesse período, o GBL, grupo trotskista francês que fazia entrismo no SFIO para agrupar os setores mais radicalizados da vanguarda e dar uma direção revolucionária, crescia tanto em número quanto em influência.

[12Além disso, em 1934 a URSS ingressa na Liga das Nações, se aliando aos imperialismos "democráticos em nome da luta contra o fascismo, e em 1935 firma o tratado Franco Soviético, um tratado de ajuda-mútua em que também a URSS se comprometia o PC Francês a frear a luta de classes na França.

[13Nessa época, também, o PCB estava em sua busca por uma burguesia "antifeudal" e antiimperialista, nunca encontrada.
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Noah Brandsch

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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