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SUDÃO E ARGÉLIA | Uma nova Primavera Árabe no norte da África?

Artur LinsEstudante de História/UFRJ

quinta-feira 11 de abril de 2019 | Edição do dia

Nessa terça-feira (9), nas principais cidades da Argélia e do Sudão, manifestações massivas protestando contra seus respectivos governos foram reprimidas com intensa brutalidade. Na Argélia, os cordões policiais iniciaram sua bateria de ataques contra os protestos organizados pelos estudantes, enquanto na capital sudanesa, Khartum, as forças militares, a polícia e milícias leais ao ditador Omar al-Bashir foram mais longe, matando sete pessoas nas últimas manifestações diante da sede do quartel general das Forças Armadas, contabilizando até o momento mais de uma centena de mortos desde o início das mobilizações anti-governamentais em dezembro do ano passado.

Esses processos de luta democrática possuem muitas semelhanças entre si e inevitavelmente leva à expectativa do ressurgimento da “Primavera Árabe” contra velhas ditaduras nacionalistas, inspirando o conjunto dos trabalhadores e das minorias oprimidas da região, especialmente no continente africano, colocando novamente em discussão mundial a implicação da luta de classes no cenário político, econômico e social.

Corrupção, autoritarismo e crise capitalista

Abdelaziz Bouteflika assumiu o poder na Argélia em 1999 e vem governando na base da restrição das liberdades individuais, de associação, de mobilidade e de paz, reinando, por sua vez, um ambiente de desconfiança e medo do que as autoridades da repressão política e policial possam cometer.

Em quatro mandatos presidenciais, Bouteflika cooptou a maioria dos partidos através da corrupção e fraudes eleitorais generalizadas. Oficialmente, o multipartidarismo existe, mas como se evidencia nos fatos, a FLN, onde Bouteflika ainda é presidente, continua a se comportar como partido único, com o apoio de aliados do regime, notadamente os militares e o segundo maior partido nacional, o Rassemblement National Democratique (RND), que na Assembleia Nacional detêm junto com a FLN a maioria absoluta do parlamento e do Senado.

No entanto, desde fevereiro, quando a população soube que Bouteflika concorreria a um quinto mandato consecutivo, diante de um cenário econômico devastador devido à queda internacional do preço das commodities, especialmente do petróleo e do gás, principais mercadorias de exportação argelinas, agravado pelo altíssimo número de desempregados no país, sobretudo entre a juventude, nas principais cidades da Argélia, sucessivas e massivas manifestações populares vêm ocorrendo exigindo o fim da ditadura de Bouteflika. O ditador, pressionado pela contestação popular, desistiu de disputar as eleições, entretanto, se mantinha ainda no cargo presidencial. A população reagiu e voltou às ruas, e dessa vez exigindo a saída definitiva de Bouteflika do poder.

As Forças Armadas, um dos pilares centrais do regime, e até ontem fiel aliada de Bouteflika, hoje declara seu apoio à população, reiterando que o ditador se encontra inapto para dirigir o país, no intuito de tentar salvar a própria imagem da instituição e garantir assim uma posição privilegiada na transição de regime.

No entanto, a população argelina sabe que o problema não acaba apenas com o afastamento de Bouteflika do poder, ele é só parte de todo um regime carcomido pela corrupção e autoritarismo generalizados. Poucos dias depois da notícia da saída de cena do ditador e antes mesmo de um presidente interino ser nomeado, uma nova onda de manifestações correu o país em suas principais cidades, tais como Argel (a capital), Oran, Constantine e Annaba, em que a juventude e os trabalhadores recusavam qualquer implicação política dos antigos aliados do regime na transição. Nesses protestos se vêem muitos pedidos e palavras de ordem exigindo que todo o círculo em volta de Bouteflika (conhecido popularmente como Le Pouvoir) também se distancie do poder.

O chefe das Forças Armadas, Ahmed Gaid Salah, principal aliado de Bouteflika, é considerado por muitos como o chefe da corrupção generalizada do regime. Círculos empresariais e midiáticos fiéis ao ex-ditador e muito próximos de seu filho, Said Bouteflika, também se tornaram alvo dos protestos populares. Até mesmo os chefes institucionais que substituíram Bouteflika não escaparam das denúncias populares, como o primeiro-ministro Noureddine Bedoui, o presidente do Conselho Constitucional Tayeb Belaiz, e o presidente do Conselho da Nação (espécie de Senado) Adbelkader Bensalah.

Em especial, o presidente do Senado, Adbelkader Bensalah, foi escolhido nessa terça-feira (9) pelas duas câmaras do Parlamento para pôr em marcha uma transição tutelada que busque manter de pé os principais pilares estruturais que durante décadas sustentaram o regime, o que é contestado claramente pelo povo argelino, que inclusive considera, em larga maioria, Bensalah como um dos membros da “máfia governamental”. Bensalah é membro do RND e foi um dos principais aliados do regime, tendo apoiado todas as decisões autoritárias de Bouteflika para se perpetuar no poder.

É justamente pela imposição de uma transição ordenada e sem colocar em risco os pilares estruturais do regime, que as manifestações contra os militares e ao presidente interino começam a ser reprimidas mais abertamente. Os estudantes, linha de frente desde o início das mobilizações, ao serem reprimidos gritavam a palavra de ordem que melhor define o regime autoritário que ainda se mantém de pé: “Poder assassino!”.

No Sudão, o ditador Omar al-Bashir está no cargo presidencial desde 1989, contabilizando incríveis 30 anos de mandato ditatorial. De uma forma mais explícita do que Bouteflika, al-Bashir assumiu o poder derrubando, em um golpe militar, o presidente eleito e implantando um regime autoritário que se encontra em xeque nesse momento.

Em dezembro do ano passado, o aumento triplicado do preço do pão deu impulso para que setores de trabalhadores organizados na Associação dos Profissionais do Sudão (APS), reunindo majoritariamente médicos, professores e advogados, exigissem inicialmente do governo a diminuição dos preços das mercadorias de primeira necessidade, até que o movimento se ampliou massivamente e evoluiu para algo muito maior: a demanda pela renúncia de Omar al-Bashir e a transformação radical e democrática do regime. Não à toa, nesses últimos quatro dias, os quartéis principais das Forças Armadas viraram alvo dos protestos anti-governamentais.

Assim como na Argélia, o quadro econômico de desvalorização dos preços das commodities também afetou em cheio a economia do país, propiciando o caldo político de contestação que se desenvolve há meses. Desde o início das mobilizações nas principais regiões urbanas e rurais do Sudão, milícias leais ao regime junto às forças policiais e militares de repressão, vêm assassinando os manifestantes, usando desde gases lacrimogêneos até armas letais de fogo. No entanto, os protestos populares ganharam mais fôlego há cinco dias, justamente quando o número de mortos também aumentou exponencialmente, contabilizando até o momento um total de centenas de manifestantes assassinados pela repressão.

Em resposta a essa barbárie, muitos protestantes, influenciados pelo principal partido de oposição, o Partido do Congresso Sudanês (SCP), vêm clamando às Forças Armadas que abandonem al-Bashir, já que a instituição é o principal pilar de sustentação do regime. Por outro lado, essa mesma oposição insiste em não defender um golpe de Estado pelos militares, defendendo que as Forças Armadas devem participar do processo de transição democrática do regime.

Contudo, apesar dos pedidos de aliança, o ministro da Defesa fez uma declaração hoje que “entende as razões para as demonstrações populares”, mas por enquanto não está nos planos das Forças Armadas abandonarem o ditador, alegando que isso levaria o país ao “caos” e a segurança nacional estaria “comprometida”. Enquanto isso, potências imperialistas como os EUA, Grã-Bretanha e Noruega, assim como a França em relação à Argélia, começam a pressionar os líderes militares a abandonarem al-Bashir e iniciarem uma transição política que favoreça os imperialismos.

Os desafios de uma transição realmente democrática

Diante desse cenário de intensas lutas por uma transformação realmente democrática da sociedade e do regime político, não podemos deixar de alertar sobre os riscos que há nesse duro caminho. Como já foi colocado, na Argélia, o mesmo bloco de poder que até ontem estava com o ditador enfrenta a resistência das ruas, dos estudantes, da juventude sem perspectiva de futuro e de uma classe trabalhadora que não agüenta mais os problemas sociais derivados de uma economia frágil controlada por um poder endemicamente corrupto. Diferente do que ocorria no início das manifestações, agora a repressão se amplia. É preciso que as manifestações evoluam ao questionamento do regime de conjunto, buscando conquistar a independência de classe dos trabalhadores contra todas as variantes patronais, com suas denúncias aos empresários e demais envolvidos organicamente com o regime, sem confiar nas alternativas “democráticas” representadas pelos capitalistas através de Gaid Salah ou Bensalah.

No Sudão, Omar al-Bashir ainda não caiu, apesar que sua hora pode chegar a qualquer momento, tanto pela violência revolucionária das ruas quanto por algum tipo de golpe palaciano que tente evitar a escalada da luta de classes. Em qualquer um dos casos, é preciso a mesma energia que a população argelina está tomando nesse momento para expulsar da vida política as últimas reminiscências carcomidas e corruptas da ditadura, sem confiar nas saídas “conciliadoras” com os militares.

Depois das experiências derrotadas da Primavera Árabe, surge novamente no horizonte a possibilidade da queda de antigos governos autoritários. Isto, entretanto, não significa o desaparecimento do autoritarismo encarnado em "oposições" burguesas que são tão submissas ao imperialismo como seus antigos aliados despóticos. Não há solução democrática para os países do norte da África sem que a classe trabalhadora assuma o papel de sujeito político independente, que hegemoniza os anseios mais profundos das massas exploradas, e batalhe por resolver as tarefas democráticas estruturais, como a emancipação do imperialismo e a reforma agrária radical, na perspectiva de um governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo.

Medidas anticapitalistas como o controle dos preços, o fim da subordinação nacional ao imperialismo, controlando a produção das poderosas multinacionais ocidentais e bloqueando a fuga de capitais ao estrangeiro, além da reforma agrária radical: medidas tais são a única maneira de enfrentar as crueldades derivadas da desigualdade social e dos interesses imperialistas no continente africano.

É bom lembrar que na Tunísia, os antigos aliados do ditador Ben Ali escreveram uma nova Constituição, chegaram até a serem premiados pelo Nobel da Paz e hoje se enfrentam com uma crise estrutural que só pode ser resolvida enfrentando duramente o capitalismo (inflação, altíssimo desemprego entre os jovens e sucateamento extremo dos serviços públicos, e um longo etc.). No Egito, ao se tentar governar junto com os militares, na primeira crise, estes voltaram ao poder, mandando executar mais gente de qualquer tipo de oposição do que todo o período de 30 anos da ditadura de Hosni Mubarak.
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