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Uma história de revolta e pandemia

"- Não sei até onde a desgraça pode ir. Mas ficar com medo não ajuda. Temos bocas para falar, corações para ajudar e braços para lutar."

segunda-feira 23 de março de 2020 | Edição do dia

No interior de uma casa escura ouvem-se preces e gritos.

- A desgraça é vontade de Deus! É castigo: pecamos muito, muito. Eu vi a morte montada a cavalo. Ela tirou o capacete, gargalhou com seu rosto de caveira e leu as palavras do Apocalipse. É o fim dos tempos! Rezem pelas suas almas!

Os outros três rostos em volta da mesa, mal iluminados pelo toco da vela acesa, cuja chama requebrava com o vento da alta madrugada, olhavam aterrorizados para o nada. Eram moços preocupados com o futuro. Arthur se levantou, ergueu o rosto colérico e discordou das palavras do avô:

- Castigo ou não, a questão é que não podemos mais passar fome. Olhem para as nossas mãos: os machucados, os dedos tortos. São mãos de homens que trabalham. Trabalhamos na terra para servir aos que oram e guerreiam. Mas será que Deus deseja aumentar os impostos? Não podemos aceitar isso. Será que a peste vai matar a todos? Não saberemos se não lutarmos para ficarmos vivos.

França, idos do século XIV. A pulga e o rato, o rato e o bacilo, a pulga e o bacilo. A pandemia mais conhecida como Peste Bubônica deixa corpos estendidos pelas estradas dos campos, pelas vilas. Desemprego e miséria nas cidades medievais, crianças com os rostos devorados por ratos, senhoras com febre tendo visões apocalípticas nos leitos de morte. Um terço da população europeia seria dizimada. Mas nos castelos, os nobres comiam bem. Os gritos de terror estavam do lado de fora. Príncipes e marqueses saboreavam faisões , frutas frescas, vinhos deliciosos. Um marquês exclama em um banquete:

- Se é vontade de Deus que todos morram, nós pelo menos morreremos após um bom cálice de vinho!

As condições de vida dos camponeses pioravam a cada dia. Péssimas colheitas, chuvas impiedosas, safras ao vento. O ano de 1348 é o auge da peste. Um burguês que se comporta como vidente lança um sorriso discreto para as estrelas do céu apodrecido. Ele sente que os tempos estavam mudando: em breve, a nobreza precisaria dele e quando ele não precisar mais dos nobres, tomará o poder. Porém, ainda faltava muito tempo para isso acontecer.

Os senhores feudais não queriam perder os seus privilégios. Mas não eram apenas os corpos dos enfermos que encontravam-se retorcidos com a peste. Suseranos e vassalos estavam perdendo a coloração azul do seu sangue. A classe guerreira agonizava aos poucos: ela seria desarmada pela história. O feudalismo perderia espaço para as nascentes relações pré capitalistas. Numa centenária guerra entre França e Inglaterra, as crises aumentavam o seu vulto. Camponeses percebem que antes das preces existe o estômago: Jacquerie ! As revoltas camponesas transformam instrumentos agrícolas em armas. Palavras de revolta rasgam e jogam fora o discurso do teocentrismo medieval. Arthur, que contestou o avô, fazia agora um discurso para o grupo de camponeses revoltosos que ele integrava:

- Não sei até onde a desgraça pode ir. Mas ficar com medo não ajuda. Temos bocas para falar, corações para ajudar e braços para lutar. Precisamos cuidar dos nossos velhos porque eles cuidaram de nós. Precisamos cuidar das nossas crianças porque elas irão cuidar de nós no futuro. A nobreza diz que queremos destruir tudo. Não é verdade: queremos terra para sermos felizes. Queremos comida, vida e o fim de todas as pestes. O mundo não vai acabar: sem esperança não venceremos os ratos, os reis, as pulgas e todos os vassalos. Uma nova humanidade poderá nascer a partir do amor, da nossa união. Se trabalhamos juntos, se lutamos juntos, então precisamos sonhar juntos com o amanhã. Sim, eu também tenho medo. Mas se ficarmos juntos espantaremos a morte.




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