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SEMANÁRIO

Um retrato da uberização: novos “contratos sem romantismo”, velha exploração

Bianca Rozalia Junius

Um retrato da uberização: novos “contratos sem romantismo”, velha exploração

Bianca Rozalia Junius

Como iremos abordar na 3ª edição do livro “A precarização tem rosto de mulher”, prevista para março, esse fenômeno recente no mundo do trabalho representa para muitos uma dupla, tripla, jornada de trabalho, sem nenhum direito, predominando a indistinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho. São esses elementos, velhos conhecidos da classe trabalhadora brasileira (em especial das mulheres e negros), que a tela do smartphone busca esconder.

A imagem do entregador da Ifood em meio ao mar de enchentes que acometeu Minas Gerais rodou as redes nessa última semana. Na mesma semana, a juíza Shirley Aparecida de Souza Lobo Escobar, da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, determinou ser improcedente uma ação civil pública do MPT-SP (Ministério Público do Trabalho) que pedia o reconhecimento da existência de vínculo de emprego entre entregadores do iFood e da Rapiddo, empresa do mesmo grupo.

Ao defender “contratos sem romantismo”, a juíza afirmou que

“é de se esperar que haja uma parcela significativa da população com habilidades, capacidades e ânimo para o trabalho de outra forma que não em contrato de emprego e, existindo mecanismos capazes de gerar tais oportunidades de trabalho, devem ser regulados com o objetivo de cumprirem sua função social”.

A afirmação ficaria mais honesta substituindo “habilidades, capacidades e ânimo” por “desemprego, subutilização e pobreza”. Afinal é isso o que está jogando milhares de jovens no campo da informalidade dos aplicativos. Falar de “ânimo” para oportunidades de trabalho precárias sem vínculo empregatício é uma piada de mau gosto em um país com 7 milhões de jovens de 18 a 24 anos que se encontram desempregados, ou que desistiram de procurar emprego ou que necessitariam trabalhar mais horas para seu sustento.

Além da ausência de quaisquer direitos da CLT ou compromissos por parte das grandes donas da rede de aplicativos e do Estado, os entregadores passam por situações extremas todos os dias, com o objetivo de formar um salário ao final do mês. Sobre duas rodas, muitos desses jovens não têm condições financeiras de ter uma motocicleta como instrumento de trabalho e recorrem às bikes. Passam cerca de 10 horas ou mais em regiões ricas da cidade, onde a demanda pelo serviço é maior. Isso significa que muitos precisam pedalar até 30 km para ir e 30 km para voltar às regiões periféricas onde moram, o que, somado à quilometragem pedalada durante as entregas, chega a totalizar 80 km rodados de bike por dia, de acordo com reportagem da BBC news. É comum dormirem nas ruas, em parques ou praças, durante curtos intervalos, para conseguirem cumprir com os horários específicos nos quais têm mais demanda pelas entregas. Também é comum receberem em horários menos movimentados cerca de R$1,50 por entrega, não importando o quanto tenham que pedalar ou em quais condições. É assim que muitos se arriscam em meio a chuvas e enchentes, que é quando os aplicativos acionam a “tarifa dinâmica”, aumentando um pouco o ganho para esses trabalhadores.

Ser seu próprio patrão?

Como iremos abordar na terceira edição do livro “A precarização tem rosto de mulher”, com lançamento previsto para março, esse fenômeno recente no mundo do trabalho, que vem sendo chamado de “uberização”, não tem muito de novo. Sua novidade está no fato de tudo ser mediado por aplicativos de celular, que alegam não se responsabilizar pelo trabalhador ou pelo trabalho em si, mas apenas pela "conexão entre pessoas". Para refletir isso, nos apropriamos das reflexões de Nicolas del Caño, ex-candidato pela Frente de Izquierda argentina, que em seu livro Rebelde ou Precarizada”, chama esse processo de “ocultamento da relação laboral”, no qual desenvolvimento tecnológico no capitalismo e trabalho degradado mostram, assim, que não são antagônicos: o smartphone esconde as relações entre patrão e empregado.

“Ainda que falem de ‘colaboradores ou de ‘trabalhadores independentes’, o que há por trás é o ocultamento de uma relação laboral. Por que? Por que as plataformas decidem absolutamente tudo: os preços, os pedidos que te tocam, quem pode trabalhar para eles e quem é bloqueado.

Por sua tarefa de ‘conexão’, a empresa fica com uma comissão de 17% ou mais. Além do mais, depositam o que seus ‘colaboradores’ ganharam com cada envio duas ou três semanas depois de realizados. Por que? Porque aproveitam esses dias para investir o dinheiro na bicicleta financeira.

A “jornada infinita” não é novidade para as mulheres

Essa novidade dos aplicativos e todo o discurso de “ser seu próprio patrão” disfarça, portanto, sua essência, que não passa da antiga receita do trabalho precário e informal sendo aplicada para amplos setores: sem garantia de direitos, não há nada assegurado, nem o salário, nem jornada definida, nem as férias, feriados, afastamentos por questões de saúde, seguridade contra acidentes de trabalho... É para muitos uma dupla, tripla, jornada de trabalho para complementar renda e predomina a indistinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho. Assim, apesar de se mostrar com uma nova configuração a cada momento histórico, a precarização e a dupla jornada são velhas conhecidas da classe trabalhadora brasileira, em especial das mulheres e negros. A pesquisadora Ludmila Abílio Costhek analisa inclusive que os postos tipicamente “femininos” anteciparam essas novas tendências no mercado de trabalho, ao analisar o trabalho das revendedoras da Natura e das manicures.

Essa “jornada infinita” se dá não só no trabalho remunerado, mas também no trabalho gratuito de reprodução social, feito majoritariamente por mulheres no âmbito doméstico. A crise e o avanço de medidas neoliberais privatizantes agrava a falta de recursos estatais destinados ao cuidado de crianças (gerando falta de creches e escolas públicas) e de enfermos e idosos (que contam com um lastimável sistema de saúde público). O resultado disso é que esse cuidado cai nas costas das mulheres, cada vez mais jovens.

É deste ano o estudo que diz que as mulheres realizam 75% de todo o trabalho de cuidados não remunerado do mundo Dados de 2018 do IBGE apontam que a média de horas semanais dedicadas às atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos das mulheres brasileiras é de 21,3, ou seja, quase um dia inteiro dedicado a estas tarefas. A análise por cor é gritante: a taxa de realização de cuidados de pessoas era maior entre aqueles que se declararam pardos (33,7%), seguida pelos pretos (32,4%) e brancos (29,7%), tendência que se mantém para homens e mulheres. Com relação à idade, apesar da realização de afazeres domésticos continuar maior entre os adultos de 25 e 49 anos, houve significativo aumento de 2016 para 2018 entre jovens de 14 a 24 anos que realizam estes afazeres (de 71,3% em 2016, passou para 76,4%). Tudo isso para que o Estado e os empresários não arquem com os custos desse trabalho que representam 10 trilhões de dólares não pagos anualmente às mulheres.

Com as mulheres jovens e negras dedicando, em média, mais horas a afazeres e/ou cuidados de pessoas, sua jornada de trabalho é afetada no sentido de terem menos tempo disponível para realizarem trabalhos remunerados fora do âmbito doméstico. É assim que muitas acabam sendo relegadas a empregos informais de tipo “home office” ou com horários flexíveis através dos aplicativos dos quais tratamos, para que possam conciliar com o cuidado da casa, dos filhos e parentes. Nesse trabalho sem forma de trabalho, ficam borradas as fronteiras entre tempo trabalhado e tempo de descanso. O trabalho permeia tudo.

Aumento de vagas tipicamente feminizadas: mais precarização

Não sendo a informalidade uma novidade para a classe trabalhadora feminina brasileira, que novidade então podemos encontrar na uberização? É interessante notar que, dentre os trabalhadores das maiores plataformas desses “aplicativos de precarização”, a maioria não são as mulheres, que, conforme estamos abordando, são aquelas que sempre foram relegadas a ocupações sem contratação. O que isso significa?

De acordo com análise de pesquisadoras sobre o mercado de trabalho brasileiro depois da reforma trabalhista, as atividades que tiveram maior queda de ocupados no período de 2014 a 2018 são as que têm uma maior presença de homens (agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura, administração pública, defesa e seguridade social, indústria geral e construção). Por sua vez, as ocupações cresceram nas atividades em que as mulheres são tradicionalmente maioria (educação, saúde, serviços etc., atividades não por acaso mais precárias). Elas seguem ocupando a maioria desses postos de trabalho, embora, recentemente, venha aumentando a participação dos homens. Mais homens entrando nestas ocupações precárias e na informalidade dos aplicativos é sintoma que a crise vem chegando a setores mais amplos do que aqueles que eram tipicamente precarizados.

Verifica-se também que, enquanto entre as mulheres e homens brancos o emprego recuou (respectivamente - 2,6% e 5,2%), entre as mulheres e homens negros o emprego cresceu (respectivamente 11,7% e +4,3%). Isso significa uma coisa: setores mais precários vêm sendo incorporados ao “mercado de trabalho”. Mas isso que poderia ser uma ótima notícia mostra, na verdade, a sua contra cara, que é o fato de serem empregos cada vez mais precários, com menos direitos, mais horas de trabalho, menos remuneração, aos moldes de novas formas de contratação legalizadas pela reforma trabalhista.

Os precários se insurgem e “chacoalham” toda a classe

Entretanto, como não podia deixar de ser, aqueles que mais sofrem com o velho são os que lutarão com mais energia pelo novo. Além de terem sido as primeiras a se colocarem frontalmente contra a eleição de Bolsonaro com o movimento #EleNão, a luta contra a precarização do trabalho também vem sendo protagonizada por elas: as categorias majoritariamente femininas foram responsáveis por organizar a maior parte das greves contra medidas da reforma trabalhista nos últimos anos.

Dados de 2017 e 2018 mostram que, no setor público, que concentra 54,4% das greves do período, destaca-se o protagonismo dos professores e profissionais de saúde das redes municipais. No setor privado, 74,8% das paralisações se ocorreram no setor de serviços, enquanto 23,7% se deram na indústria. As ocupações que mais deflagraram greves foram as do setor de transportes (35%), trabalhadores de turismo e hospitalidade (26%), saúde (20%) e vigilantes (6%); ou seja, à exceção de transportes e vigilantes, são todas “categorias femininas".

Isso ocorre enquanto setores formalizados tradicionais, sendo segurados pelas carcomidas burocracias sindicais, mantêm-se inertes. Mas não significa que não possam ser chacoalhados pelos novos setores que se insurgem contra essa condição. Essa força dos setores mais precários, jovens, mulheres, negros, filhos da crise que não têm “nada a perder”, irrompeu em violentas revoltas em 2019, como pudemos ver no Chile e na França. No exemplo francês, a radicalidade dos Coletes Amarelos precedeu as impressionantes greves dos operários ao final do ano, causando a paralisação dos transportes, o corte de luz a prédios públicos - redistribuído aos mais pobres - e ameaçando desabastecer o país.

A necessária unidade das fileiras operárias
Esses operários franceses (majoritariamente trabalhadores de menos de 40 anos, muitos de origem imigrante), em especial dos transportes, não aceitaram mais de forma passiva as negociatas e a fragmentação dos diversos setores em luta (sindicalizados ou não, formais ou não, de diferentes categorias) promovidas por suas direções sindicais burocráticas. Colocaram como seu lema "a greve é dos grevistas", e criaram a Coordenadora SNCF-RATP, organismo de autoorganização desde a base, gerando a coordenação de ações entre distintas categorias e estudantes (enviando delegações para conversar com trabalhadores de outros setores, fazendo mobilizações em comum etc.).

Da mesma forma, relatamos no livro “A precarização tem rosto de mulher” a história de uma pequena mas exemplar luta operária contra as péssimas condições de trabalho das terceirizadas da limpeza da USP, que nos traz grandes ensinamentos sobre a necessidade dessa unidade e da autoorganização. Fomentada pelos militantes trotskistas do MRT, puderam romper o cerco das direções sindicais dos terceirizados (diretamente patronais e mafiosas), e conseguiram unificar estudantes, trabalhadores efetivos e terceirizados da universidade para transformar essa luta numa batalha de classe.

Esses exemplos são ilustrativos para refletirmos como organizar uma classe trabalhadora tão fragmentada, cada vez mais terceirizada, uberizada, “flexibilizada” como a brasileira. É preciso romper com essa fragmentação promovida pela precarização do trabalho e endossada pelas centrais sindicais, que mantêm essa divisão e fingem-se de mortas vendo os ataques de Bolsonaro enquanto aguardam as próximas eleições.

É nesse sentido que se fazem cada vez mais necessárias correntes militantes que fomentem iniciativas de unidade das fileiras operárias e autoorganização, a exemplo dessa Coordenadora endossada pela CCR (organização irmã do MRT na França), e defendam a construção de um partido revolucionário de trabalhadores. Tudo isso se faz fundamental para derrubar esse sistema de exploração, e instituir uma nova sociedade em que aplicativos, smartphones e toda a tecnologia criada pela humanidade possa ser usada para que se reduza ao mínimo o tempo dedicado ao trabalho necessário, canalizando nossas energias a uma lógica de trabalho não alienada e ao ócio criativo da ciência, da arte e da cultura, exercitando assim todas as capacidades humanas.


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Bianca Rozalia Junius

Equipe do podcast Peão 4.0 e militante do MRT
Equipe do podcast Peão 4.0 e militante do MRT
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