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Um operário que lê: história dos estudantes-operários na ditadura militar

Bianca Coelho - Estudante de Letras USP

Imagem: Alexandre Alvez Miguez

Um operário que lê: história dos estudantes-operários na ditadura militar

Bianca Coelho - Estudante de Letras USP

Parte 1

Publicamos aqui a primeira parte parte, de duas, de artigo dedicado à reflexão sobre os estudantes-operários na ditadura civil-empresarial-militar brasileira.

A reivindicação por educação, uma luta incondicional por tomar em nossas mãos todo o conhecimento produzido pela humanidade, sempre foi uma das pautas mais centrais da classe trabalhadora. A história da humanidade é a história da luta de classes, e não seria diferente com a história da educação e do movimento estudantil, que se confunde com a história do movimento operário. Buscaremos evidenciar essa relação, contando um pouco da história dos estudantes-operários de Osasco que construíram a Oposição Sindical Metalúrgica contra a ditadura militar. Pretende-se aqui fazer um chamado a que resgatemos as grandes lições que a classe trabalhadora brasileira deixou em seus combates, com o objetivo de nos armarmos pelo fim dos ataques à educação e aos direitos dos trabalhadores, unificando as fileiras do movimento operário com o movimento estudantil na construção do futuro que os capitalistas buscam nos roubar.

Os operários-estudantes de Osasco na luta contra a ditadura militar

Na década de 60, muitos estudantes secundaristas de Osasco eram também operários da Cobrasma, complexo que protagonizou, no estado de São Paulo, as greves de 68. Nessa época, grande parte desses operários estudavam no colégio Ceneart (Escola Estadual “Antônio Raposo Tavares”), junto com adultos, pois a empresa admitia funcionários a partir dos 14 anos. Segundo relato disponível no site Memórias Operárias de Antonio Roberto Espinosa, que foi um desses estudantes-operários:

o número de ginásios estava se multiplicando no Brasil inteiro, antes da ditadura, e a ditadura continuou esse processo, porque precisava de uma força de trabalho mais qualificada com maior nível de escolaridade, e, na década de 1950, o cara terminava o primário e abandonava a escola, então muita gente já estava com 30 anos de idade (...). Então, numa mesma classe, você tinha o molequinho, o barbeiro que já era um adulto, um alfaiate, um cara que era chefe de seção na Cobrasma, um outro que era Sargento (...) Entrar no colégio era se tornar adulto antes da hora, claro que você continuava sendo moleque, não deixava de ser, mas acabava participando dos assuntos adultos.

Em meio a esse grupo tão heterogêneo de estudantes, os jovens eram submetidos a todo tipo de discussão política. Com o aprofundamento da ditadura, Espinosa diz que começam a se interessar por marxismo e “a brigar com os caras do Partidão [PCB] dizendo que eles não entendiam o Marx”. Afirma então que a ditadura foi uma das principais responsáveis pelo surgimento do “Grupo de Osasco”, que concorreu às eleições de 1966 da Associação dos Estudantes do Curso Clássico do Ceneart contra o Partidão (PCB), que estava com uma orientação contra revolucionária vinda do stalinismo que defendia a “revolução num só país”. O grupo de Osasco ganhou e começou a liderar os movimentos, mesmo fora do Ceneart, substituindo a antiga UEO (União dos Estudantes de Osasco). Ele relata como exemplo o movimento que realizaram contra o uniforme, que começou a estruturar uma greve em quase todos os colégios da região, apesar da ditadura. “’Bom, então diz que é de uniforme, tá bom, vamos usar o nosso uniforme’. Aí decidiu... todo mundo... era época de junho, ’todo mundo em trajes juninos’. Calça remendada, vestido de caipira…”, conta.

Esses estudantes-operários tinham então essas experiências a partir das escolas e as levavam para dentro da fábrica onde, para burlar a repressão da ditadura, começavam a surgir comissões de fábrica, espaços de organização dos trabalhadores pela base através dos quais discutiam suas reivindicações e organizavam paralisações, greves etc. Sobre estas, Moura (2015) relata que surgem na Cobrasma duas comissões: uma clandestina composta por operários de esquerda independentes, outra era a “Comissão dos 10”, organizada por militantes da Ação Católica Operária (ACO) e da Juventude Operária Católica (JOC) que impulsionavam a FNT (Força Nacional do Trabalho). Essa entidade catolica tinha uma atuação marcadamente anti-comunista, com uma estratégia baseada em buscar acordos entre a patronal e os trabalhadores.

A comissão católica tinha aceitação da patronal. Os militantes de esquerda da comissão clandestina da Cobrasma buscaram aproximar-se dela e formaram uma comissão unificada, eleita pelos operários da fábrica e legalizada em 1965. O grupo de esquerda era minoritário e a única condição colocada para a unificação foi que Ibrahim (que se torna depois uma grande liderança desse movimento) ficasse com o cargo da presidência. Interessante notar que, nessa primeira experiência ainda muito rudimentar de comissão, um dos elementos que pesava para a questão da escolha do representante foi menos um programa e mais a escolaridade, como relata:

Então, o Ibrahim tinha sido eleito pelo controle de qualidade, estava fazendo já o primeiro ou segundo Científico, então ele foi escolhido como presidente porque era o que tinha maior escolaridade, o cara mais capaz de escrever a Ata. Foi essa razão... Claro que a liderança vem depois, tá certo? A liderança vem depois. Num primeiro momento, se reúnem os operários, simples, quer dizer... aquela coisa, meio que caiu do céu, proposta pelo patrão... Então escolhe um cara com maior escolaridade.

Em 1966, na segunda eleição para essa comissão, o grupo de esquerda se fortalece dentro da fábrica e assim consegue ganhar a maioria dos cargos da comissão, ultrapassando os católicos. Em 1967, conseguem ganhar com essa composição as eleições do sindicato. Espinosa conta que esse fortalecimento só foi possível por causa da criação da Vanguarda de Fábrica, que organizava cursos de formação sobre marxismo:

Essa Vanguarda de Fábrica, era uma espécie de Grupo de Frente, politizado, que era o grupo que liderava os esforços para construção de comissões de fábrica, etc, e que eram operários que se destacavam dentro dos movimentos em cada seção, com que a gente fazia um trabalho político mais aprofundado. (...) Você forjava algumas lideranças, quatro ou cinco, pegava esses quatro ou cinco, marcava reuniões clandestinas no bairro, e esse pessoal recebia um curso de formação rápida em marxismo. Então, um curso muito rápido com base no Manifesto comunista e Salário, preço e lucro, para explicar o que era mais-valia e revolução e ditadura do proletariado. Quem dava esse curso éramos eu e o Barreto. Também por critério escolaridade, não por sabedoria.

É assim que esses estudantes estavam fundidos aos trabalhadores, não apenas os estudantes secundaristas inclusive. Espinosa se torna, no ano de 1967, estudante de filosofia da USP, mas segue participando do movimento em Osasco desde a universidade. Em 1968 organiza, junto com estudantes da Maria Antônia que estava ocupada desde abril, um curso de reforço em Osasco que contou com 700 inscritos, como relata:

[...] Então nós bolamos um Curso de recuperação estudantil, com alunos de todos os colégios, e com professores que eram militantes do movimento estudantil que eu recrutava na filosofia, física (...). Então, com estudantes de todas as tendências, trotskistas, stalinistas, o MCI, de todas elas, todos voluntários. Nós montamos a reprodução de um curso ginasial com todas as matérias, Curso clássico, Científico e Normal, todas as matérias.

Entre as ações que organizaram se destaca o ato realizado no 1º de Maio na Praça da Sé, em 1968. Levado adiante pelas oposições sindicais, chamaram os trabalhadores a se mobilizarem contra o ato oficial do governador interventor da ditadura, apoiado pelos pelegos, que terminou com enfrentamentos violentos com a polícia e com o governador e os pelegos tendo que sair fugidos do palanque. Estas ações, ao mesmo tempo em que ajudaram a desprestigiar a ditadura, fortaleceram as oposições sindicais, que mesmo após a derrota das greves em Osasco (que foi sitiado pelos militares em 68) se mantiveram ativas na clandestinidade construindo as bases para as lutas que reapareceram nos anos 70. O movimento estudantil, que havia participado da convocatória do 1º de Maio na Praça da Sé, sob a consigna de “somente a luta armada derrubará a ditadura”, foi duramente reprimido e a partir deste momento a ação repressiva do estado foi cada vez maior sobre todos os setores de oposição ao regime.

A resposta das recentes lideranças surgidas a partir desses movimentos foi ambígua. Marcelo Ridenti e Ricardo Antunes discutem sobre isso no texto “Operários e estudantes contra a ditadura: 1968 no Brasil”, apontando que:

Os movimentos de 1968 prometiam construir um novo mundo, mas os grilhões do passado viriam a mostrar-se muito mais pesados do que os militantes de 1968 supunham – a ponto de vários ativistas da época passarem para o campo conservador vitorioso, chegando a ocupar cargos importantes em governos que adotam medidas neoliberais em várias partes do mundo e também no Brasil.

A trajetória de José Ibrahim e de várias lideranças deste movimento é exemplo disso. Ibrahim vai dizer que, com o fechamento do regime, só resta a luta armada. Muitos, se não saíram da fábrica direto para o Araguaia, passaram a defender a guerrilha enquanto estratégia e entraram para organizações guerrilheiras como a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e a VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares) das quais Espinosa e Ibrahim participam. Em setembro de 69, Ibrahim foi um dos presos políticos trocados pelo embaixador Charles Burke Elbrick, dos Estados Unidos, que fora sequestrado pelos guerrilheiros. Passa 10 anos no exílio e quando retorna ao país ajuda a fundar o PT, em 1980, com quem rompe mais tarde e em 1991 torna-se um dos fundadores da Força Sindical. Posteriormente, vincula-se à UGT, uma das burocracias sindicais mais patronais e degeneradas.

Qual a principal tarefa de um jovem que se propõe a ser um revolucionário?

Sem estudar e participar da história da luta de classes, das vitórias e derrotas da classe trabalhadora e os ensinamentos e diretrizes que deixam para o futuro, é impossível uma prática revolucionária (e ainda mais fácil incorrer em desvios como o exemplo do qual tratamos). Lenin discursa sobre isso em congresso da união da juventude comunista russa em 1920, dizendo que:

[...] a nossa escola deve dar aos jovens os fundamentos da ciência, a arte de forjarem por si mesmos uma mentalidade comunista, deve fazer deles homens cultos. No tempo que os jovens passam na escola, esta tem que fazer deles participantes na luta para se libertarem dos exploradores. A União da Juventude Comunista só será digna deste nome, de ser a União da jovem geração comunista, se vincular cada passo da sua instrução, educação e formação à participação na luta comum de todos os trabalhadores contra os exploradores. Porque sabeis perfeitamente que enquanto a Rússia for a única república operária, e no resto do mundo subsistir o antigo regime burguês, seremos mais débeis que eles, que nos ameaçam constantemente novos ataques, e que só aprendendo a manter entre nós a coesão e a unidade triunfaremos na luta ulterior e, uma vez fortalecidos, tornar-nos-emos verdadeiramente invencíveis.

A tarefa da juventude, portanto, é a de aprender e ensinar. Aprender com os trabalhadores mais velhos e suas lutas, e também aprender com a escola todo o conhecimento científico já produzido pela humanidade. Ao mesmo tempo, não guardar esse conhecimento para si: engajá-lo com a luta por expandir internacionalmente o comunismo, ou seja, transmitir esse conhecimento pode ser decisivo para este combate. Lenin chega a dizer que será "impossível edificar a sociedade comunista num país de analfabetos" e que, por isso, uma das missões daquela juventude é liquidar o analfabetismo.

Mesmo que de forma rudimentar e distantes da tradição de um partido revolucionário que pudesse transmitir o legado de um programa proletário (papel que deveria ter sido o do PCB), os estudantes-trabalhadores dos quais tratamos aqui buscavam cumprir esse papel de ensinar, aprender e contagiar para a luta os operários mais velhos. Isso era essencial pois, no geral, os mais velhos estavam em cargos mais estratégicos que os jovens para atingir a produção em uma greve, ocupação, etc., mas ao mesmo tempo carregavam nas costas o peso de derrotas anteriores e, por isso, precisavam dos jovens para renovar suas energias.

Estudantes como Espinosa, que na época mesmo passando na USP não abandona sua origem proletária para virar um intelectual burguês, pelo contrário, segue organizando a luta em Osasco; também como Olavo Hansen, militante trotskista que era estudante de engenharia nesta universidade e decide ir trabalhar como operário para construir a luta contra a ditadura, sendo por isso morto pelos militares; e até mesmo a artista Pagu, que num período anterior, na década de 30 quis revolucionar não só a arte mas também a vida, indo trabalhar como operária em Santos enquanto estava no PCB (com quem mais tarde romperá, criticando o burocratismo). Histórias como essas devem servir como inspiração e exemplo para as novas gerações hoje pensarem os próximos passos de suas lutas. E deixam também importantes balanços a partir das debilidades com as quais se embateram, tema da segunda parte deste artigo a ser publicada na próxima edição deste suplemento.


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[Teoria]

Bianca Coelho - Estudante de Letras USP

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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