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CINEMA | Um lugar ao sol: um filme sobre "coisas positivas"

No documentário “Um Lugar ao Sol”, de 2009, o diretor Gabriel Mascaro entrevista moradores de coberturas e expõe suas opiniões aos espectadores. O resultado é um retrato impressionante e cru da mentalidade da classe dominante no país.

sábado 8 de agosto de 2015 | 00:00

“Acho interessante a questão do documentário, você fazer uma coisa positiva, porque as pessoas só fazem documentários sobre coisas negativas. (…) As pessoas que vão fazer documentário só vão falar sobre a miséria, a matança do Carandiru. (…) Bacana a sua iniciativa.” Assim fala um dos entrevistados de “Um Lugar ao Sol” a seu diretor sobre a realização do filme. Para ele, bem como para os demais entrevistados, é uma coisa “bacana” uma cobertura. Nas entrevistas, isso é bastante remarcado pelos entrevistados, que reafirmam diversas vezes seu privilégio de “olhar tudo por cima”, como diz uma das moradoras. A vantagem material de ter uma cobertura parece ficar muito atrás do privilégio social de ser um “morador de cobertura”, um tipo diferente de ser humano, acima dos “pobres mortais”.

Mascaro não insere em seu filme a voz dos pobres, dos miseráveis, dos trabalhadores, dos excluídos, dos que, enfim, não moram nas coberturas. Nesse filme, ele dá livre expressão aos milionários, deixa que o espectador veja o absurdo de suas falas se mostrar por si mesmo. A fina ironia que emerge através do tom alegre e despreocupado das falas, o diretor a constrói apenas por meio de imagens, e sempre do ponto de vista de seus entrevistados. Vistas de cima, do olhar da cobertura, Mascaro mostra a vida dos “comuns”: pescadores, trabalhadores, gente que toma sol na praia, na laje ou num cantinho qualquer, não dispondo das piscinas privativas das quais se orgulham os entrevistados.

A sutileza de “Um Lugar ao Sol” é seu trunfo. O diretor pode abrir mão de um forte discurso sobre a miséria ou da exploração dos contrastes, pois a realidade desses milionários e o modo como enxergam o mundo, por si mesmas, destoam tanto da forma como qualquer trabalhador comum vive a vida, que tudo o que o diretor precisa para mostrar esse abismo é estar aberto a mostrar essa “coisa positiva” que é a existência de gente tão obscenamente rica. E podemos pensar, após assistir o desfile de opiniões absurdas que saem da boca desses privilegiados, como é tamanha a sua falta de noção da vida “ordinária”, pelo simples fato de terem concedido seus depoimentos, suas opiniões, tão francamente, sem perceber que o que faz o documentário é desmascarar o seu ridículo. A ironia, que é o “tapa com luva de pelica” na cara dessa gente, deriva da condução de Mascaro por seu próprio discurso, quando colocado diante da vida normal de um trabalhador.

Assim, podemos ouvir “inocentemente” opiniões como a de uma “distinta senhora” que, morando ao lado do morro Dona Marta, no Rio, afirma ser um verdadeiro “espetáculo de fogos de artifício” a troca de tiros entre traficantes e polícia. A vida do outro, do “pobre”, para ela é ficção, é espetáculo. Ela assiste a tudo “sem fazer parte”, como ela mesma afirma. Ouvimos também a caricata posição de um burguês do calibre do dono do Bahamas clube, um prostíbulo de luxo localizado em São Paulo, e que afirma ser “geneticamente” escolhido para ser um líder, e que a culpa da pobreza não é dos ricos. Acompanha a tradicional ladainha sobre gerar empregos e dar oportunidades, uma verdadeira inversão ideológica do fato de viver da exploração do trabalho alheio. Também uma senhora estrangeira, vendedora de artesanato e que percorre as áreas interioranas do país atrás da cultura popular para transformá-la em artigo de consumo de outras madames como ela. Segundo sua teoria nada original, o problema da pobreza está na “falta de educação” das camadas populares. Procurando justificar sua ridícula teoria, diz que o problema é que os pobres “não sabem plantar” sua comida. A esses três pequenos exemplos, poderíamos ainda somar uma dezena, pelo menos, que ilustram o quão absurdas são as criações, as ideias que derivam na cabeça da burguesia como obra da ideologia de sua classe. Um misto de hipocrisia e uma autêntica ignorância quanto à vida dos trabalhadores e explorados se combina para criar o mundinho à parte dessa elite, que se vangloria de em suas coberturas não precisar “ouvir o barulho da criadagem conversando” ou se misturar com as pessoas que vão à praia logo abaixo de seu prédio.

O filme mostra de maneira cristalina, como não é dado ouvir em nosso cotidiano com frequência, como a mentalidade senhorial dessa gente se diferencia muito pouco da de seus antepassados senhores de escravos. A vida do outro, do trabalhador, do negro, da empregada doméstica, é por eles avaliada com uma medida distinta; são um outro tipo de gente, e por isso é natural que tenham um outro tipo de vida. Um ou outro discurso “caridoso”, quando colocados nesse contexto, apenas tornam mais evidente o quanto é naturalizado por essa ideologia os imensos privilégios dos quais essas pessoas disfrutam.

Mascaro, assim, com essa obra bastante simples, e uma linda fotografia que mostra cenas de um mundo distante, o “mundo real”, mas tal qual visto das luxuosas sacadas de seus entrevistados, consegue criar um documento de valor inestimável. O espanto que nos causa ouvir tais absurdos verbalizados – por mais que saibamos que existem – será pequeno, talvez, diante do espanto com que um dia, as futuras gerações poderão ouvir de fonte primária como pensavam alguns dos representantes da chamada “elite” brasileira nesse início de século.

Confira entrevista com Gabriel Mascaro no site Palavra Operária em novembro de 2014.


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