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DEBATE COM ZIZEK | Uma reversão materialista do próprio Marx? Um curto circuito perigoso entre Hegel e Lacan

Uma reversão materialista do próprio Marx? Um curto circuito perigoso entre Hegel e Lacan

quinta-feira 13 de agosto de 2015 | 16:25

É no livro “Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético” que Zizek expõem sua filosofia de forma mais sistemática. O objetivo da obra é uma espécie de “volta a Hegel” (repetir Hegel) que busca reestabelecer o pensamento hegeliano dentro do marxismo contemporâneo. Audaciosamente, o Hegel nesta obra é bastante particular e muito distinto das interpretações comuns do pensamento do filósofo alemão. A volta a Hegel, segundo Zizek, é possível e necessária pois a superação de sua filosofia foi feita de forma equivocada. Os filósofos que buscaram ir além de Hegel (Schopenhauer-Kierkegaard-Marx) haveriam iniciado uma “ridícula caricatura de Hegel como o ‘idealista absoluto’ que ‘ possuía o conhecimento absoluto’.” (Menos que nada, pp 35)

O Hegel de Zizek é mais materialista e menos teleológico. Não por acaso a expressão usada por Zizek sobre o movimento de volta a Hegel é uma “reversão materialista do próprio Marx”. Nesta obra, todas as visões comuns sobre Hegel são recusadas: a centralidade da essência é substituída por uma centralidade do devir; a noção de necessidade perde força enquanto a de contingência ganha destaque; a ideia de espírito absoluto que perpassa e se realiza na história através de eternas lutas entre opostos quase desaparece; a ideia de superação se combina com uma noção de derrota (“a ‘verdade’ da luta surge só na derrota e pela derrota”); e a noção de desenvolvimento de formas futuras a partir de uma essência a priori é invertida para uma noção de a posteriori que produz a necessidade que pode ser vista na forma anterior; inclusive as acusações de Marx onde este afirma que a reconciliação em Hegel só ocorre apenas no mundo das ideias são rejeitadas.

O sistema hegeliano, segundo Zizek, é radicalmente aberto e não teleológico. O que permite uma reivindicação hegeliana para o marxismo atual que supere tanto a recusa imediata (Althusser), quanto às teses mais comuns sobre as continuidades do pensamento de Hegel em Marx. Estas se dividem em duas: as que procuram encontrar o vocabulário e as operações de Hegel na explicação do funcionamento do Capital e as que, seguindo a esteira de Lukács, compreende a auto realização histórica do proletariado enquanto sujeito revolucionário, análoga a noção hegeliana. O Hegel de Zizek é tão materialista que o permite não só concordar que a leitura lukacsiana seria idealista, como acusa-la de pré-hegeliana.(Menos que nada, pp 61 e pp 101)

Para essa leitura de Hegel fazer sentido o conceito transversal utilizado em “Menos que nada” é o de retroatividade. Esta noção é bastante conhecida na psicanálise quando, por exemplo, um paciente, frente a um novo acontecimento de importância em sua vida, reconstrói uma narrativa de si próprio dando novas ênfases, reconfigurando sua própria memória, às vezes até apagando algumas lembranças e destacando outras. Essa noção presente em Hegel foi, segundo Zizek, praticamente ignorada e sua ausência permite a leitura caricaturada do filósofo alemão. O conceito de retroatividade defende Hegel de teleologismo absoluto, pois:

“Para nós hegelianos (...) O processo dialético não é o desdobramento temporal de um eterno conjunto de potencialidades, motivo pelo qual o Sistema hegeliano em si mesmo de passagens necessárias? Essa miragem de uma evidência esmagadora se desfaz, no entanto, no momento em que levamos em conta a retroatividade radical do processo dialético: o processo do devir não é em si necessário, mas é o devir (surgimento contingente gradual) da necessidade em si.”(Menos que nada, pp73)

Pensando em uma filosofia da História o que Zizek está afirmando é que em Hegel o sentido histórico não é dado “a priori”, mas “a posteriori”. É após um evento de importância histórica ocorrer que se produz um sentido histórico, na medida em que esse evento não só abre portas ao futuro como reconstrói o passado. É interessante perceber que este Hegel para os tempos atuais de Zizek é profundamente próximo das problemáticas estruturalistas.

Para o estruturalismo, uma de suas grandes questões não está na relação “mundo exterior” e a “consciência em si” (famosa disjuntiva entre idealismo e materialismo), mas no interstício nebuloso entre o mundo orgânico e a forma de perceber e se relacionar com ele. Em âmbito orgânico-biológico esta questão estruturalista seria: se entendemos o homem e a consciência humana como fruto de um desenvolvimento natural-orgânico, precisamos reconhecer que esta naturalidade impõem a mente humana leis-especificas (formas de perceber o mundo que direcionam nossa relação com ele). Pensando no âmbito de estrutura social, como pensar a relação homem e natureza uma vez que a estrutura social do presente media nossa percepção da natureza? A mesma problemática pode se encontrar na dimensão histórica, pois nossa percepção do passado é sempre uma narrativa, mediada pela estrutura social do presente. Logo não temos em nossa mente o reflexo imediato da realidade orgânica, mas uma realidade produzida por uma mediação entre nossa percepção (direcionada por leis e limites biológicos, sociais e históricos) e a realidade orgânica exterior. Em certo sentido a fundação do marxismo já foi um reconhecimento desta problemática tanto na relação presente-passado quanto na relação inversa: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”(O 18 Brumário de Luis Bonaparte, pp 17)

Zizek destaca esta preocupação em Hegel ao acusar Marx de não ir ao centro da questão ao não perceber que a preocupação de Hegel não era uma “nova interpretação do mundo”, mas: “(...)para Hegel, para passarmos da alienação para reconciliação, não devemos mudar a realidade, mas o modo como a percebemos e nos relacionamos com ela.”(Menos que nada, PP.42)

A objeção que poderia ser feito a Zizek é de que talvez, seja realmente isto que Marx apontou na crítica a Hegel. A noção sintética de “nova interpretação do mundo” não significa que Marx compreendia que Hegel ignorava por completo uma relação entre percepção (ideia) e realidade. Mas que uma nova percepção da realidade só pode ser produzida em processo radical de mudança da própria realidade. Esta mudança já envolve as mediações entre mundo real e mundo percebido. Parece que é fundamental para compreender a inversão marxiana de Hegel a famosa tese II de Feurbach:

“A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica.”

Nos parece que essa antecipação estruturalista em Hegel ainda não muda o central da passagem de Hegel para Marx que é o sentido que ocorre a relação entre “estado atual das coisas” e o mundo das ideias. Marx buscava criticar tanto a tendências a autonomização da ideia em Hegel, como sua noção de que a ideia precedia o movimento do real. Não por acaso trinta anos após “Crítica da filosofia do direito de Hegel” Marx define no posfácio à segunda edição alemã do primeiro tomo de O Capital:

“Meu método dialético não difere apenas fundamentalmente do método de Hegel, mas é exatamente o seu reverso. Segundo Hegel, o processo do pensamento, que ele converte, inclusive, sob o nome de Ideia, em sujeito com vida própria, é o demiurgo do real, e o real a simples forma fenomenal da Ideia. Para mim, ao contrário, o ideal não é se não o material, transposto e traduzido no cérebro do homem.“ (Obras Escolhidas Volume 2, pp 15)

É verdade que muitos se apoiaram nesta passagem para defender uma visão mecanicista da relação entre mundo orgânico e ideias. Porém, em sentido histórico, este nos parece o problema chave da novidade da dialética marxiana, uma vez que estabelece um sentido para a correspondência entre “mudança nas formas de percepção do mundo” e “mudança real do estado de coisas” e não uma correspondência absoluta, ausente de mediações. A argumentação de Zizek é que Marx ignorou as mediações existentes entre a realidade orgânica e o mundo percebido, simbolizado. Por isso ao discutir os motivos de existir, segundo ele, uma dualidade na utilização de Hegel em Marx:

“Primeiro, há a dialética como a “lógica do capital”: o desenvolvimento da forma mercadoria e a passagem do dinheiro ao capital são claramente formulados em termos hegelianos (...). Depois, (...), o grandioso esquema hegeliano do processo histórico que se move da sociedade pré-classes para o capitalismo em uma separação gradual entre o sujeito e suas condições objetivas, de modo que a superação do capitalismo significa que o sujeito (coletivo) se reapropria de sua substância alienada”

Zizek reconhece que o elo de ligação entre as duas coisas é o conceito de luta de classes. Porém estabelece uma limitação na forma como Marx aborda o antagonismo que este conceito expressa:

“(...) nem Marx nem Freud poderiam de fato pensar esse antagonismo: em última análise, ambos o reduzem a uma característica da realidade (social ou psíquica), são incapazes de articulá-la como constitutiva da própria realidade, como a impossibilidade ao redor da qual a realidade é construída. O único pensamento capaz de fazer isso vem depois, e origina-se na lógica diferencial do estruturalismo”. (Menos que nada, pp.93)

Não é por acaso que a leitura zizekiana de Hegel só pode ser feita pelo prisma de Lacan. Onde podemos encontrar tanto a noção de retroatividade quando uma explicação para essa lacuna entre realidade orgânica e realidade percebida. Aí que emerge como central no pensamento de Zizek o conceito de Real lacaniano. Lacan uma vez afirmou sobre esse conceito “Eu te batizo, Real, por que se não existisses, seria preciso inventar-te.” (Lacan, Televisão). Este conceito estabelece uma diferença entre realidade orgânica e realidade simbolizada:

“O Real é ao mesmo tempo a coisa que é impossível termos acesso direto e o obstáculo que impede esse acesso direto; a coisa que escapa a nossa apreensão e a tela deformadora que nos faz perder a Coisa. (...) o Real lacaniano não é apenas deformado, mas é o próprio principio da distorção da realidade” ( O ano em que sonhamos perigosamente, pp 32 e Em defesa das causas perdidas, pp 290)

O objetivo aqui não é uma discussão historiográfica sobre Hegel (O que Hegel realmente disse?). Mas compreender as mudanças que a repetição de Hegel, através de conceitos lacanianos, de Zizek gera nas noções de sujeito, economia política e Estado. Muito menos este artigo se pretende validar ou não a importância do estruturalismo em diversas áreas da ciência contemporânea: linguística, psicanálise, ciências naturais, física quântica e etc. Em ultima instância nossa pergunta é: o que fica e o que é rejeitado de Marx depois da “reversão materialista” mediada pelo estruturalismo feita por Zizek?

Parece importante ressaltar que no campo de uma teoria da história e da revolução o “período estruturalista”, anos sessenta e setenta, trouxe importantes prejuízos. Uma vez que, em nome do combate ao historicismo e ao evolucionismo de traços positivistas, se privilegiou análises lógicas do funcionamento do capitalismo em detrimento das análises históricas. Outro prejuízo foi o fato de que a “superação” da polêmica sobre como se dava a relação entre sujeito e estrutura veio através de noções que identificavam os sujeitos como permanentemente múltiplos ou indefinidos.

Com o chamado ”pós-estruturalismo” isto fica mais claro, mas no campo do marxismo existiu uma resposta que apesar de nem sempre negar a existência da classe operária como sujeito potencialmente revolucionário, de maneira geral, caia na ideia da necessidade do preenchimento de uma lacuna no marxismo que seria a teoria do Estado e da política.

A própria noção de Althusser de aparelhos Ideológicos do Estado já vinha com um objetivo mais amplo de superar este “problema”. Ele e teóricos posteriores aceitaram muito facilmente a ideia de que “O marxismo não possui um teoria cientifica do Estado” uma vez que Marx não havia feito uma exposição exaustiva que incluísse análise lógica como fez no Capital. Na tentativa de preencher essa suposta lacuna cada vez mais o elemento substantivo da teoria marxista sobre política e Estado (as classes sociais e a luta entre elas) eram diminuídas frente a tentativas de uma sistematização epistemológica e estrutural do Estado e da política. Althusser iniciou resgatando a noção de Espinosa de que “aqueles que acreditam que um povo ou homens divididos em relação aos assuntos públicos podem ser induzidos a viver guiados apenas pela razão estão sonhando com a Idade de Ouro do Poeta ou com um conto de fadas” a combinando com a concepção de ideologia, não apenas de maneira negativa (como Marx, haveria tratado, segundo Althusser, em A ideologia alemã), mas, também positiva, como "uma representação da relação imaginária dos indivíduos com as relações de produção e com as relações delas derivadas". (Aparelhos Ideológicos de Estado, pp 88)

A combinação dessas ideias concluiu na impossibilidade da superação da ideologia em uma sociedade comunista. Ainda que possamos concordar com a existência de níveis distintos do conceito de ideologia e de que ela não é simplesmente uma falsa consciência, essa formulação de Althusser dará arcabouço a um conjunto de autores que modificarão profundamente a noção marxista de política. Se não o fim da ideologia, Marx ao compreender a política como expressão da luta de classes, conclamou que a sociedade comunista colocaria fim a própria noção de poder-político. Alguns autores, seguindo as dicas de Althusser, passaram a questionar essa possibilidade e acabaram inserindo no marxismo uma noção de política mais werberiana do que marxiana. A noção de poder político enquanto “resumo oficial do antagonismo (de classes) na sociedade civil” (Luta de classes e Luta Política- Miséria da Filosofia), será substituído pela noção de “sujeitos agindo cada um com seus demônios (ideias)”.

O que está em jogo aqui é a importância que se da para noção de poder político e Estado como expressão da luta de classes. A noção do Estado enquanto um poder despótico de uma classe dominante ia sendo substituído por teses lógicas formais. Com ele o próprio conteúdo substantivo da concepção de política, a luta de classes, vai desaparecendo.

Aqui podemos entender melhor Zizek e sua “reversão materialista do próprio Marx”. Zizek parece tentar “salvar” os conceitos de luta de classes e de economia politica modificando-os de tal forma a dar razão a este ambiente de crítica a um conteúdo substantivo na teoria de Estado e política de Marx. Badiou, por exemplo, rejeita claramente a noção da “crítica da economia politica de Marx”, pois rejeita a noção de que exista uma potencialidade revolucionária inscrita no próprio mecanismo objetivo do capitalismo.

“ [No século passado] supunha-se que a política de emancipação não era pura ideia , uma vontade, uma prescrição, mas estava inserida, e quase programada, na realidade histórica e social. Uma das consequências dessa convicção é a de que esse agente objetivo deve ser transformado em força subjetiva, essa entidade social deve se tornar um ator subjetivo.” (A Hipótese Comunista, pp. 34)

Para Badiou esta é uma noção que ficou para trás junto com as derrotas dos projetos comunistas do século XX. Basicamente a rejeição de Badiou são as noções marxistas de que “o capitalismo forja seu próprio coveiro” ou que “em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas entram em contradição com as relações de produção” e consequentemente que “De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se transformam em seus grilhões” (Para crítica da economia política) Zizek vai se contrapor a essa rejeição da “ortodoxia marxista” de maneira bastante ambígua. Na essência, ele concorda com Badiou. Não por acaso em um dos seus textos escritos para as mobilizações “Occupy” de 2011 “Da dominação, à exploração e à revolta” ele parte da rejeição dessas mesmas passagens acusando-as de “vestígios de historicismo evolucionário”. A saída de Zizek vai ser recorrer primeiro a noção Lukacskiana de economia-política, em “História e consciência de classe” onde ela é inteiramente cortada pela própria luta de classes. Ou seja, o elemento objetivo já está envolto na subjetividade da própria luta de classes. “Em outras palavras, para Lukács a luta de classes é o fato primordial, o que significa que todo fato social “objetivo” já é “mediado” pela subjetividade combatente”. (Vivendo nos fins dos tempos, pp 144)

Aceitando a crítica de Badiou a ortodoxia marxista Zizek apresenta um marxismo alternativo, onde a noção de objetividade deriva-se de um complexo de subjetividades, onde não existe “’realidade social objetiva’ que já não seja mediada pela subjetividade política”. (Idem) Por isso ao criticar Badiou, quando conclui que devemos deixar noção marxista de que as “as massas são divididas em classe, as classes são representadas por partidos e os partidos dirigidos por líder”, Zizek parte do jovem Lukács onde a luta de classes “representa a dimensão da política no âmago do econômico” e chega em Althusser quando ele afirma que “a luta de classes precede as próprias classes”.

A noção de economia-política, e da luta de classes, que Zizek está buscando nas páginas de variados marxistas, para recusar a ideia de que o capitalismo apresenta tendências objetivas que possibilitam a sua superação, é a própria concepção de Real lacaniana. Logo após explicar este conceito Zizek afirma:
“E talvez também devêssemos entender dessa maneira a infame fórmula marxista da “determinação em última instância”: a instância sobredeterminada da “economia” também é uma causa distante, nunca uma causa direta, isto é, ela intervém nas lacunas da causalidade social direta”.(O ano em que sonhamos perigosamente, pp.33)

A conclusão é que a economia por já ser política e a luta de classes já ser determinante elas são quase que inacessíveis em si mesmas. A problemática é que se é assim a própria noção de classe social passa a ser desnecessária ou impossível. A luta de classes ao ser o determinante transversal de todo o organismo social passa não só a ser irredutível a uma esfera especifica como passa a ser já contida nas lacunas entre todas as esferas da realidade. Na verdade essa noção “totalizante” de Luta de Classes no conjunto do pensamento do Zizek adquire uma conclusão que a diminui na dimensão da Política:

“´Política´, portanto, nomeia a distância da economia de si mesma, esse espaço é aberto pela lacuna que separa a economia enquanto Causa ausente e a economia em sua “determinação opositiva” enquanto um dos elementos da totalidade social: existe politica porque a economia é “não toda”, porque a economia é uma pseudo-causa impassível e “impotente”. Desse modo, a economia é duplamente inscrita aqui no sentido preciso que define o Real lacaniano: ela é o núcleo central “expresso” em outras lutas por meio de deslocamentos e outras formas de distorção e ao mesmo tempo o próprio princípio estruturador dessas distorções”.(O ano em que sonhamos perigosamente, pp35 e Menos que nada, pp 342)

A volta a Hegel de Zizek deve ser compreendida dentro desta configuração que possui como centro articulador a concepção de Real lacaniana. E devemos deixar claro que existe nisso uma articulação perigosa. Não simplesmente pelo fato de Zizek defender uma leitura de Hegel menos idealista, mas sim, por que a noção de revolução e de Estado, como conclusão desta leitura de economia-política, voltam para as definições pré-marxianas. O que sobra de Marx neste movimento é um Marx onde a noção de “tendências objetivas” praticamente desaparece. É interessante, que na leitura “não teleológica” de Hegel existe referência sobre as noções de probabilidade, efetividade, possibilidade, virtualidade, contingência e acaso, porém não existe uma discussão sobre a noção de tendência. Ou seja, na noção de devir de Zizek é muito mais próxima da imagem de uma roda da fortuna, um presente aberto ao acaso, quase um caos de possibilidades e não de um campo de força onde o futuro emerge de tendências que se desenvolvem e se transformam e outras que não emergem, que cessam. Nos parece que essa noção de campo de força onde existem tendências e lutas que influem sobre o futuro emergente uma analogia mais correta para uma noção marxista aberta, não teleológica, da História do que o Hegel da contingência e da retroatividade de Zizek.

O Estado representando a si mesmo. (Ou procurando a luta de classes)

A leitura de Zizek dá uma resposta partida da relação entre economia, luta de classe e política. Onde o sujeito enquanto agente inscrito na ordem social com potencialidade transformadora é negado. Vejamos a seguinte passagem:
“No caso da luta de classe, ela lembra hoje a resposta do paciente de Freud à pergunta sobre a identidade da mulher no sonho: “seja qual for o porquê dessa luta, não é luta de classes... (e sim sexismo, intolerância cultural, fundamentalismo religioso...)”. Um dos tópicos mais comuns do pós-marxismo é que, hoje, a classe operária não é mais o sujeito revolucionário “predestinado”, as lutas emancipadoras contemporâneas são plurais, sem um agente específico que reclame um lugar privilegiado. A maneira de responder a essa advertência é ceder ainda mais: nunca houve esse privilégio da classe operária, o papel estrutural fundamental da classe operária não envolve esse tipo de prioridade” (Em defesa das causas perdidas, pp, 292)

O que vemos na articulação de Zizek é que a luta de classes está num âmbito quase que oculto em uma dimensão que se expressa em outras esferas, mas que nós mesmos não conseguimos explicitá-la. O grande perigo desta leitura, ainda que Zizek compreenda que a ideia de uma economia pura ou uma politica pura são igualmente ideológicas, é que ela separa demasiadamente economia-política e a própria política. A primeira é uma determinante transversal (em última instância), mas a segunda, caí no risco de não conseguir se inscrever na ordem econômica. Neste sentido a ideia de uma política de classe desaparece. Assim como veremos a seguir a noção de Estado, enquanto Estado de uma classe, também desaparece. A tragédia desse pensamento é a aceitação do conceito burguês de política simplesmente enquanto “mediadora dos assuntos públicos”:

“(...)não há conteúdo propriamente dito da política; todas as lutas e decisões politicas dizem respeito a outras esferas específicas da luta social (tributação dos costumes sexuais e da procriação, assistência médica etc.); a “política” é apenas um modo formal de tratar essas questões, na medida em que surgem como questões de luta e decisão pública.” (Em defesa das causas perdidas, pp. 293)

Mas essa não é a própria noção dominante sobre política? Que ela é a forma de organizar à “pólis”? Uma forma de decisão e organização coletiva simplesmente? Ainda que a visão particular de Zizek sobre economia como Real lacaniano o permite afirmar que a “economia é a causa da expressão –contaminação mútua das lutas” ela passa longe da noção de que a política é a própria dominação de classe e a luta de uma classe opressora e outra oprimida. Isso, pois no pensamento de Zizek esta relação entre política e economia é sempre obscura: “a economia é o objeto a , o objeto fugidio que sustenta essa contaminação”. (Em defesa das causas perdidas, pp 293)

Como afirmamos tal leitura retira a noção substantiva da política e cai no perigo de quando dizemos política estarmos dizendo “política tal qual o capitalismo nos apresenta”. A base filosófica deste erro é compreender que a realidade se é engajada, política, não pode ser compreendida como “ordem positiva do ser”. Nos parece, que uma resposta realmente radical contra o objetivismo não seria recusar a noção de “tendências objetivas” como faz Zizek, mas sim afirmar: não existe uma ordem engajada, política, que se produz acima de uma realidade não mediada pela política. A própria realidade, a própria “ordem positiva do ser” já é engajada. A noção de luta e engajamento pode ser encontrada tanto no mundo simbolizado, quanto na própria realidade. E não como afirma Zizek:“(...) a “economia” não pode ser reduzida a uma esfera da “ordem positiva do ser”, exatamente porque é sempre-já política a luta política (“de classes”) está em seu próprio âmago” (Vivendo no fim dos tempos, pp158)

Em outras palavras quando dizemos objetividade, ou “tendências objetivas”, não estamos afirmando uma dimensão apolítica, desengajada, da realidade. É este erro que justifica a recusa de Zizek das passagens de Marx, como em “Para a Crítica da economia-política” quando este buscando teorizar sobre as transições de um modo de produção à outro afirma que “em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas entram em contradição com as relações de produção”. Zizek compreende que isto seria reconhecer uma dimensão “apolítica das forças e dos meios de produção” (Em defesa das Causas Perdidas, 295 e O ano em que sonhamos perigosamente, pp 17 ). Mas Marx não fez essa afirmação que o desenvolvimento das forças produtivas é apolítico.

Outro risco aqui é ceder demasiado aos autores que entendem os processos revolucionários como “eventos” que possuem a capacidade de transformar a ordem estabelecida em termos simbólicos e não tanto substanciais e históricos. Em nossa opinião, tanto Badiou rejeitando diretamente a ideia “de crítica da economia politica de Marx”, quanto Zizek, com sua leitura particular de economia-política, estão muito vulneráveis a estes erros. É por isso que em Zizek a noção de Estado é apresentada quase sempre em termos psicanalíticos, a defesa marxista de Estado enquanto a “organização despótica de uma classe sobre outra” é descartada e substituída por noções filosóficas e/ou psicanalíticas como “significante mestre” e “grande outro”. Aqui é importante ressaltar que o problema não é a contribuição psicanalítica, ou mesmo lacaniana, para a compreensão do processo de dominação e exploração no capitalismo. A dominação burguesa também é simbólica assim como a violência cotidiana do sistema capitalista perpassa pela dimensão psicanalítica. O que existe de problemático é que Zizek inflaciona o léxico psicanalítico fazendo-o substituir a concepção de poder da burguesia como processo real e material.

Quando Zizek compara em seu último livro “Menos que nada” as noções de dispositivo de Foucault com de Aparelho Ideológico de Estado de Althusser ele aceita a leitura de Agambem que ela possui uma dimensão hegeliana de ”positividade” por tratar de relação entre a maneira com o qual o sujeito se submete ao poder: “o dispositif é a matriz da governabilidade” (e cita Agamben): “aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser” (IN: Zizek “Menos que Nada: p. 619) . Assim, o ponto em comum que Zizek encontrará nas duas noções é a correspondência com o conceito lacaniano de grande-outro. O erro de Zizek novamente será entender de maneira separada o processo de dominação e poder material real com a constituição da ordem simbólica enquanto “grande outro” ou “significante mestre”. É por isso que a crítica de Zizek a concepção de AIE de Althusser será a sua “insistência desconcertante e deslocada na ‘materialidade´ dos AIE: a forma primordial o dispositiff, o Grande outro da instituição simbólica, é precisamente imaterial, uma ordem virtual ” (Menos que Nada, pp 619 e Vivendo no fim dos tempos, 304)

Zizek percebe que o capitalismo é o primeiro modo de produção na história que a exploração pode ocorrer inscrita na própria lógica do sistema econômico. O trabalho livre indica que a exploração pode acontecer sem a necessidade de uma “dominação legal” ela está inscrita na própria lógica econômica e em tese é feita sem a necessidade de nenhuma lei. “Não há necessidade de uma dominação social direta, a dominação já está inscrita na estrutura do processo de produção”, demonstra inclusive como esta questão está presente no próprio conceito de “mais-valia” de Marx, onde o trabalhador recebe o valor de sua força de trabalho como mercadoria teoricamente em uma “troca justa”. “Embora na economia de mercado eu permaneça dependente de facto, essa dependência é “civilizada”, realizada na forma de uma “livre” troca de mercado entre mim e outras pessoas, e não na forma de servidão direta ou mesmo da coerção física.”( O ano em que sonhamos perigosamente, pp 17 e Menos que Nada, pp 639)

Ainda que a exposição de Zizek não esteja errada, não podemos nos esquecer que a formação da força de trabalho assalariada livre, no processo de acumulação primitiva de capital, se utilizou amplamente de mecanismos de dominação direta, legais e coerção física para disciplinar e “civilizar” a exploração do trabalhador. Não é apenas que o trabalho livre na Europa só pode surgir graças ao seu oposto, o trabalho compulsório da expansão marítima colonial. O próprio trabalhador europeu precisou ser disciplinado por meio da coerção física e de medidas legais como as leis contra vadiagem, cerceamento de terras e etc. O principal erro dos teóricos que privilegiam a análise lógica do capitalismo, não compreendendo o equilíbrio necessário com a dimensão histórica, é não compreender que as tendências mais primitivas do capitalismo continuam na contemporaneidade. Por isso, não devemos descartar a necessidade de compreender os processos de violência direta, opressão policial, racismo, a violência jurídica legal contra os mais pobres como parte constitutiva e que fortalece a exploração “naturalizada no capitalismo”.

Quem percebeu de maneira bastante audaz essa questão foi Rosa Luxemburgo. Porém ela chegou a uma dimensão causal que Zizek não consegue chegar. Este estabelece essa naturalização da dominação fundamentalmente em termos lógico-simbólicos. Enquanto a revolucionária alemã atribuía essa aceitação a um elemento causal concreto: é a própria pobreza que obriga o trabalhador a se subjugar aos processos de exploração: “nenhuma lei obriga o proletariado a submeter-se ao jugo do capitalismo. A pobreza, a carência de meios de produção, obriga o proletariado a submeter-se ao capital”(Reforma social ou Revolução, pp. 71).

Dessa noção não substancializada das classes sociais e da relação particular que faz entre política e economia é que podemos entender a necessidade de Zizek em retornar a Hegel para compreender o Estado. Sua concepção sobre economia implica detidamente no abandono da noção de Estado enquanto organização real de poder de uma classe. A resposta, portanto é aceitar a noção abstrata de Estado que Engels e Marx tanto criticaram em Hegel, que concebia o Estado ora como expressão da razão na história, ora como “negatividade institucionalizada”. É por isso que aceitando as aclamações de Althusser em ir além de tese clássica marxista do Estado como poder de classe, Zizek defende: o “Estado como “máquina” com procedimentos autônomos próprios, que não podem ser reduzidos a representar lutas na sociedade civil. Hegel tinha muito mais consciência desse peso substancial do Estado e rejeitava sua redução a epifenômeno da sociedade civil”. (Vivendo no fim dos tempos p. 318)

O que está em jogo não é a incompreensão de Marx ou Lenin sobre as tendências “autônomas” do estado. As leituras de Marx sobre a Comuna de Paris deixam clara a importância da análise do Estado moderno como “máquina despótica” e também da autonomia relativa da “burocracia estatal” como parte constitutiva do capitalismo. Em relação a Lênin chega a ser irônico que Zizek que afirma priorizar o Lênin de 1919 à 1924 frente ao de 1917 faça essa acusação ignorando as lutas do revolucionário russo contra a burocratização do Estado soviético no fim de sua vida. Sem falar na obra “O Estado e Revolução”, obra por sinal bem pouco valorizado por Zizek, onde Lênin não pode ser acusado de subestimar as funções estruturais sócio-econômicas da burocracia estatal. E por último, a própria noção de Imperialismo em Lênin compreende os processos políticos e as formas estatais, não como pura representações de movimentos econômicos ou de lutas na sociedade civil, mas como agentes estruturais da economia global. A questão é que a ênfase de Zizek nesta suposta incompreensão expressa a sua própria recusa em compreender o Estado como poder de classe. Sinteticamente reconhecer a autonomia relativa do funcionamento do Estado e que a casta burocrática estatal não se reduz simploriamente ao poder econômico da burguesia, não nos leva a rejeição da tese do Estado como expressão do poder material e ideológico burguês, mas o contrário, a complementa.

A leitura de Zizek é uma resposta particular a um exercício teórico muito comum desde a proposta de cientificar em chave epistemológica a concepção marxista de Estado e política. Assim como outros, o filósofo esloveno cria uma filosofia com contatos marxistas, mas não chega a nenhum lugar do ponto de vista de acrescentar substancialmente a concepção clássica de política. Pois este exercício teórico já parte de uma premissa equivocada: achar que a política, apesar de toda sua complexidade, não seja a expressão da própria luta de classes. Alguns tentarão “preencher a lacuna” descrevendo exaustivamente os mecanismos lógicos da dominação do Estado; outros vão, em chave estruturalista, descrever os funcionamentos autônomos do próprio Estado; outros a dimensão psicanalítica do poder do Estado. No geral estão fazem isso abandonando a concepção central do marxismo sobre a política: uma luta incansável por manter ou transformar as condições materiais e históricas que mantém uma organização social fundamentada no poder de uma classe sobre a outra.

Pode parecer estranho a leitura apresentada aqui onde Zizek, um “confesso hegeliano”, defensor da dialética nos seus sentidos mais amplos, continua o caminho aberto por Althusser, que buscava localizar em Marx o fim de qualquer referência ao sistema explicativo hegeliano. Porém, a proposta de volta a Hegel de Zizek se aproxima dos que defenderam o seu abandono, todas essas leituras filosóficas modificaram as concepções essenciais de Marx sobre o comunismo como fim das classes sociais, do Estado e do próprio poder político por negar o comunismo como desenvolvimento de contradições objetivas do presente. Este movimento teórico acompanhou o processo político de sobrevivência contraditória dos Estados socialistas burocráticos. No âmbito da política o stalinismo e outras experiências socialistas geraram uma ideia de defesa do socialismo não como um movimento transitório ao comunismo, mas como uma nova forma social não capitalista passível de ser reivindicada em si mesma. Para Zizek a volta a Hegel implica em “repetir a “crítica da economia política” marxista sem a noção utópico-ideológica do comunismo como padrão inerente.” Pois para ele: “A noção marxiana da sociedade comunista é em si inerente a fantasia capitalista, ou seja, um cenário fantasmático para a resolução dos antagonismos capitalista que ele descreveu com tanta habilidade” (Menos que nada, pp 100)

Referências

ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985
BADIOU, Alain. A hipótese comunista. Tradução: Mariana Echalair. São Paulo: Boitempo, 2012
LACAN, Jaques. Televisão, Tradução Antonio Quinet, Zahar, 1993
LUXEMBURGO, Rosa. textos escolhidos: volume 1 / organização Isabel Loureiro; Tradução: Stefan Klein, São Paulo: Editora Unesp, 2011
MARX, Karl. O 18 Brumário. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974
MARX, Karl. Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Alfa-Omega, Ltda
ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas; Tradução Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011.
ZIZEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético; Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo Boitempo, 2013.
ZIZEK Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente; Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2011.
ZIZEK Slajov. Vivendo no fim dos tempos; Tradução: Maria Beatriz de Medina. São: Boitempo, 2012.


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