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OPINIÃO | Trump, tragédia e farsa

Para aqueles que se reivindicam marxistas é lugar comum dizer que certos fenômenos históricos se repetem, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. A eleição de Donald Trump nos EUA mostra, no entanto, que não necessariamente tem que ser assim, que determinados fenômenos podem se “amalgamar”, assim digamos, sendo imediatamente trágicos e farsescos ao mesmo tempo, numa fusão tragicômica.

segunda-feira 14 de novembro de 2016 | Edição do dia

É evidente que não se trata aqui de defender Hilary Clinton como um “mal menor” ou qualquer coisa que o valha. A política imperialista agressiva e guerreirista que representa a candidata democrata não têm o menor élan capaz de permitir que ela represente tal papel; mas apenas buscar entender como figura tão vulgar, tão mesquinha, quanto à de Trump pôde passar a ocupar um dos principais cargos políticos do mundo capitalista (quase certamente o principal) e quais as conseqüências de sua eleição para nossa classe e demais setores oprimidos não só nos EUA, mas ao redor do mundo.

Ler-se os principais jornais e meios de comunicação da mídia imperialista hoje é encontrar um setor do establishment burguês consternado com um fenômeno totalmente inesperado para eles; é fundamental que nós trabalhadores, assim, consigamos compreender tal fenômeno e suas conseqüências para a dominação burguesa para podermos nos localizar numa realidade cada vez mais contraditória e dinâmica, que abre perigos e possibilidades para o aprofundamento da luta de classes.

A CRISE DA HEGEMONIA ESTADUNIDENSE E A ELEIÇÃO DE TRUMP

A eleição de Trump é expressão na superestrutura política da crise da hegemonia estadunidense que representa o aprofundamento e extensão da crise capitalista que teve seu marco inicial em 2008. A crise do regime de acumulação construído pelos EUA, regime de acumulação que teve como marco inicial o fim da segunda guerra mundial e que com fluxos e refluxos se manteve até aqui, se reflete não só numa diminuição do espaço e da influência do imperialismo estadunidense ao redor do mundo como num aumento da desigualdade e maiores conflitos sociais dentro do país.

O descontentamento com o aumento da desigualdade social, aumento do sub-emprego fruto da desindustrialização do país, o aprofundamento conseqüente das contradições sociais não necessariamente teria que ser canalizado para uma candidatura populista de direita como a que representa Trump.

A inexistência de uma tradição de partidos operários nos EUA, a incapacidade até o momento de ali se forjar uma esquerda conseqüente e capaz de dar uma resposta ao descontentamento social fazem com que um amplo setor da pequena-burguesia estadunidense e da classe operária branca, desesperada e incapaz de encontrar uma resposta para tal situação, veja na figura grotesca de Trump uma resposta contra o establishmnent político que eles, de forma parcialmente correta, vêem como responsável por seus problemas.

A inexistência de uma tradição de esquerda operária nos EUA faz também com que parte das demandas dos setores oprimidos da sociedade estadunidense sejam canalizadas na super-estrutura política pelo outro partido da burguesia ianque, o Democrata. Parte da identidade democrata em contraposição a do partido Republicano é se mostrar como partido que representa as demandas das “minorias”; isso obviamente de forma hipócrita, posto que durante o governo Obama os assassinatos dos negros pela polícia continuaram, e a deportação de imigrantes latinos atingiu recordes históricos.

Obama, inclusive, foi eleito como resposta superestrutural para tentar recompor a hegemonia estadunidense, internamente e a nível mundial, arranhada pela política imperialista agressiva levada a frente por Bush filho.

Tendo que administrar uma das maiores crises capitalistas da história, contudo, e sem encontrar saídas para ela posto seu caráter estrutural Obama e os democratas passam a ser vistos pelos setores mais conservadores da sociedade estadunidense, visão aprofundada e alimentada pelos meios de comunicação de massas que orbitam em torno do partido republicano, como os causadores da crise social, que tem raízes muito mais profundas.

É no bojo desse processo de aprofundamento das contradições sociais dentro dos EUA, reflexos de sua crise de hegemonia, e da incapacidade de se apresentar uma saída real pela esquerda (coisa para a qual a candidatura de Bernie Sanders não conseguiu se mostrar minimamente a altura) que a candidatura de Trump, se impondo pelo poderio econômico a estrutura política estabelecida tanto dentro de seu partido quanto na política estadunidense em geral, pode aparecer como anti-establishment, como algo “crítico”.

São exatamente as muitas contradições de Trump, o fato de não ser um político tradicional, de ser um “vencedor”, numa sociedade em que a ideologia meritocrática é muito presente, seu estilo “politicamente incorreto” (na verdade racista e misógino) que criam uma identificação com um setor do eleitorado branco de classe média e de parte da classe operária que se sentindo perdedores do “sistema” buscam ‘’bodes expiatórios’’ para suas derrotas. A incapacidade de se construir uma alternativa à esquerda também alimenta esse fenômeno, pois setores não necessariamente arqui-conservadores, mas antes desorientados numa situação mais e mais complexa e contraditória acabam vendo no fortalecimento da direita e sua demagogia a única saída para os problemas que vêem, mas não entendem.

A PRESIDÊNCIA DE TRUMP PODE SOLAPAR AS BASES DA HEGEMONIA DOS ESTADUNIDENSE EM CRISE

O principal elemento que consterna o establishment político imperialista é o que pode representar a presidência de Trump para a já em crise hegemonia estadunidense. Isso porque a possibilidade de superação da crise dentro do ponto de vista do imperialismo estadunidense, e de seus aliados, é a reconfiguração do regime de acumulação do qual o EUA é o centro, o que pressupõe uma maior intervenção política, comercial, militar do país, que era exatamente o que representava a candidatura de Hilary.

A política isolacionista de Trump, seu discurso anti-liberalização do comércio, podem ser um elemento que aprofunde essa crise da hegemonia estadunidense, pois num momento de crise, e, portanto, de conseqüente maior conflituosidade nas relações internacionais se retirar do cenário, se isolar e romper tratados e acordos comerciais abre um espaço que certamente aproveitarão seus competidores, adversários e inimigos.

Isso já se vê em relação ao TPP (acordo transpacífico na sigla em inglês) que deve ser abandonado pela nova administração republicana; alguns dias depois do anúncio de que Trump estava eleito e que se colocou como possibilidade real o fim do acordo (grande aposta da administração de Obama para recuperar a posição estadunidense na Ásia) a China se colocou como promotora de um novo acordo comercial para mesma região que excluísse os EUA. Se realmente acaba com o TPP Trump pode estar abandonando a hegemonia sobre a região central para a acumulação capitalista e o comercio global que é o pacífico para a hegemonia chinesa, que a partir dessa forte posição ocupada ganha espaço para construir um regime de acumulação próprio e contraposto ao estadunidense. Além disso, as políticas de Trump podem enfraquecer a posição estadunidense na Ásia, não só comercialmente, mas também militarmente, pois o republicano se colocou durante a campanha contra acordos militares históricos do país com Japão e Coréia do Sul, o que se levado a frente efetivamente pode desagregar a balança de poderes e sistema de alianças através dos quais por décadas os EUA garantiram sua hegemonia na região.

Seus aliados ocidentais, principalmente na Europa, também estão apreensivos por suas declarações sobre a Otan e sobre sua relação com a Rússia de Putin. Se Trump leva a frente suas declarações de enfraquecer a Otan, num momento de escalada de conflitos com a Rússia, isso pode permitir que o governo de Vladimir Putin aproveite esse momento de desorganização das forças ocidentais para ocupar espaços nos conflitos em aberto, como na Ucrânia e Síria; uma aproximação com Putin, algo que seria totalmente contrário em relação a política levada a frente por Obama e a opinião de praticamente todo establishment estadunidense e ocidental, pode enfraquecer ainda mais os EUA, tanto pela desconfiança ainda maior que gerará em seus aliados quanto porque o avanço para o leste, sobre a área de influência russa, é uma das saídas fundamentais para a crise do regime de acumulação hegemonizado pelos EUA, posto que ali se encontra tanto uma mão de obra qualificada, quanto matéria primas baratas, elementos fundamentais para superar a queda tendencial da taxa de lucro, um dois aspectos centrais da crise capitalista.

A relação com a América Latina, tradicional “quintal” estadunidense, não tende a ser melhor, possivelmente o contrário; as ameaças de Trump de construir um muro entre o país e o México, sua perspectiva de acabar ou como mínimo renegociar o NAFTA tendem a tornar mais críticas as relações dos ianques com os países latinos, além de possivelmente aumentar o sentimento anti-estadunidense sempre presente, mesmo que por vezes de forma latente, na região.

No campo mais diretamente econômico a contradição entre uma política de corte de impostos para os mais ricos e uma pretensa política de investimentos na infra-estrutura do país, numa caricatura do que foi o new deal de Roosewelt, que só pode ser resolvida com um relaxamento da política fiscal e monetária ainda maior, pode ser um profundo baque para a hegemonia do dólar no comercio internacional, posto que criaria uma maior insegurança sobre o real lastro econômico que a moeda estadunidense teria.

A grande esperança do establishment em relação ao desastre que pode ser a presidência de Trump para a hegemonia estadunidense é que o sistema de pesos e contra-pesos que caracteriza a super-estrutura política do país impeçam que suas posições mais perigosas possam ser levadas a frente (com um veto do congresso, por exemplo) ou que um Trump presidente abandone a máscara do candidato e tome uma posição minimamente mais responsável, deixando que as principais decisões políticas sejam tomadas por assessores melhores preparados para lidar com sua crise de hegemonia.

A grande contradição dessa “esperança” é que o eleitorado de Trump pode se sentir traído, tanto se um Trump limitado em suas decisões pelo congresso apela a ele contra o establishment político, num caráter de movimento de direita mais ativo e militante, que passe a ter um caráter mais claramente fascista, quanto traído pelo próprio candidato se esse aceita uma posição mais acomodada com esse establishment.

AUMENTO DAS CONTRADIÇÕES SOCIAIS NOS EUA COM TRUMP

Um elemento menos analisado pelos comentaristas políticos imperialistas, não por acaso, dado suas penas interessadas, é o fato de que a presidência de Trump tende a agudizar as tensões e conflitos sociais já existentes nos EUA; as manifestações contra a eleição do republicano que aconteceram logo depois de sua confirmação como próximo presidente, os atos da Ku Klux Klan em seu apoio, mostram que quase certamente será assim.

Se já durante a presidência de Obama surgiu um forte movimento da juventude negra estadunidense contra a brutalidade policial e os assassinatos de jovens negros, posto a continuidade dessa violência mesmo com a presidência sendo ocupada por um negro, esse movimento tende a se aprofundar com a eleição de Trump, tanto porque os setores mais reacionários se sentirão fortalecidos para reafirmar a estrutura racista da sociedade ianque, quanto porque o sistema político e social dos EUA não contará com a figura carismática representada por Obama, que tendia a ser um elemento de desvio e absorção, pelo menos de forma relativa, das aspirações do povo negro.

As tensões com os imigrantes, principalmente latinos, devem também se agudizar na gestão Trump, mesmo que ele não consiga levar a frente seu projeto de construir um muro na fronteira com o México (tanto por pressão popular quanto porque mesmo a maioria dos setores dominantes da burguesia ianque são contrários a abandonar a política de imigração que garante uma mão de obra barata, elemento essencial à recuperação da economia do país). Isso porque a política de Trump deve fechar ainda mais as portas e os direitos dos imigrantes, o que tende a criar resistências entre esse setor que é uma parte cada vez maior da população dos EUA.

A promessa de Trump de acabar com o ‘’obamacare”, direito democrático mínimo conquistado durante a administração de Obama, pode também criar maiores resistências e lutas na população de conjunto.

É PRECISO UMA RESPOSTA DOS TRABALHADORES ALIADOS AOS SETORES OPRIMIDOS

A possibilidade da figura grotesca de Trump conseguir absorver e desviar o descontentamento e críticas ao sistema político e social de um setor importante da classe trabalhadora estadunidense mostra o limite de uma saída pela “esquerda” por dentro do partido democrata tal qual representada por Bernie Sanders e qualquer política que veja na candidatura que representava os “falcões” imperialistas dos EUA que era Hilary Clinton um pretenso “mal menor”.

A crise da democracia representativa estadunidense (burguesa) que representa a eleição de Trump pede uma saída radical, que se baseando na classe operária do país busque hegemonizar todos os setores oprimidos numa luta radical contra o capital financeiro, seus lobbys e sistema político. A unidade dos setores oprimidos, negros e imigrantes latinos, principalmente, que quase certamente serão mais atacados no próximo período, também é aspecto chave de uma estratégia de esquerda nos EUA.

Essa estratégia, contudo, não se tornará força material no país se não se construir um real partido revolucionário que a partir da classe operária busque hegemonizar todos os setores oprimidos para preparar essa resposta radical. É essa tarefa que se coloca na ordem do dia para os lutadores no gigante do norte.




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