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DOSSIÊ TROTSKY | Trotsky e o Programa de Transição: a crise histórica da humanidade e o caráter transitório do programa

Dentre suas muitas contribuições para o desenvolvimento do potencial revolucionário do proletariado, León Trotsky nos brinda com um refinado método de atuação. A lógica das reivindicações transitórias surge para superar a crise histórica da direção revolucionária. Esse é o primeiro texto de uma série sobre o “Programa de Transição”.

Flávia ToledoSão Paulo

sábado 15 de outubro de 2016 | Edição do dia

A literatura revolucionária é marcada por algumas máximas que sintetizam longas reflexões. Marx nos diz, no início do “Manifesto do Partido Comunista”, que a “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”. E em debate com Feuerbach na sua famosa Tese XI afirma: “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.

Trotsky, o maior dos estrategistas marxistas, se dedica em sua obra a pensar como transformar a realidade. Sendo a História da humanidade a história da luta de classes, o trotskismo se dedica a transformar em materialidade o potencial revolucionário da classe trabalhadora.

Esse potencial revolucionário foi apontado no “Manifesto” por Marx e Engels não por alguma epifania genial, mas a partir da análise científica e criteriosa do modo de produção capitalista. Há duas classes: uma, a trabalhadora, produz tudo; a outra, a burguesia, tudo lhe rouba. Trata-se de um sistema que sobrevive pela exploração e aumento progressivo da miséria. Isso é o capitalismo, e em nada vão mudar essas suas regras fundamentais. A classe que explora deve ser destruída pela classe que é explorada.

O capitalismo precisa, então, sair de cena. Mas também sobre isso Marx nos fala: nenhum modo de produção sai de cena sozinho, ou antes de alcançar os limites das suas potencialidades. Ou seja, é preciso que o capitalismo se esgote e não tenha mais condições de gerar melhorias à humanidade. Mas o capitalismo pode se esgotar e vai se manter apenas agonizando sem perspectiva de acabar se não houver um movimento organizado capaz de tirá-lo de cena e colocar outro modo de produção no lugar. Ou, em outras palavras, é preciso que haja uma revolução, com a classe trabalhadora tomando o poder.

A crise histórica da humanidade

A revolução socialista depende desses dois fatores: objetivamente, do esgotamento material do capitalismo; subjetivamente, do proletariado organizado para a tomada do poder e construção de outro modo de produção.

Trotsky, diferentemente dos reformistas de toda sorte, abre seu “Programa de Transição” apontando que “as premissas objetivas da revolução proletária não estão somente maduras: elas começam a apodrecer”. O pretenso “avanço tecnológico” do capitalismo hoje já não gera crescimento de riqueza material. As crises, e principalmente a profunda crise econômica, política e social que vivemos hoje, aprofundam as privações e a miséria em que se afundam milhões de pessoas em todo o mundo.

Ou seja, o capitalismo é um modo de produção esgotado, que precisa destruir para poder construir algo. Não pode gerar mais crescimento. Mas ele sobreviver artificialmente não basta para matá-lo. Falta a intervenção precisa do proletariado, de quem tudo depende. Proletariado esse que nasceu sob dominação, não apenas material, mas também ideológica da burguesia. Odeia seu trabalho e ainda assim repete que o trabalho (esse que conhece, alienado e alienante) dignifica o homem. Carrega um potencial revolucionário, mas não o sabe.

Não há revolução espontânea. Ela não pode surgir magicamente; ela é construída conscientemente, em determinado momento histórico, sob determinadas condições materiais. E construir a revolução significa disputar e fazer avançar a consciência de classe dos trabalhadores. É exatamente essa a tarefa da direção revolucionária.

Sendo o elemento subjetivo o que falta para a revolução, dado que as condições objetivas apodrecem de tão maduras, Trotsky nos apresenta uma ideia fundamental, que merece estar lado ao lado das principais máximas do marxismo: “A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária”.

Dizer isso é, antes de mais nada, combater qualquer desconfiança na classe trabalhadora. O mais fervoroso socialista pode se transformar em um reformista ou mesmo um conciliador, atuando ao lado da burguesia, ao deixar o ceticismo ocupar o lugar da ambição revolucionária, transferindo à classe os erros e problemas da sua direção. Ter clareza de onde reside o problema é fundamental para que os revolucionários ajam como tais.

O programa de transição

Superar a contradição entre a maturidade das condições objetivas para a revolução e a imaturidade do proletariado e sua vanguarda é a grande tarefa das direções revolucionárias. Sua atuação deve se dar com o objetivo de encontrar uma ponte entre as reivindicações atuais do proletariado, suas demandas mais facilmente sentidas, e o programa revolucionário socialista.

A burguesia, não podendo fingir que as reivindicações do proletariado não existem, apresenta falsas soluções imediatas para problemas que são inerentes à lógica capitalista, soluções que nunca resolverão o problema de conjunto.

Uma direção revolucionária, então, deve se dar a tarefa de apresentar um programa que parta das atuais condições e consciência das massas de trabalhadores e leve, necessariamente, à conclusão de que é necessário tomar o poder pelas mãos do proletariado. Essa “ponte” se realiza a partir de um sistema de reivindicações transitórias.

Hoje vivemos uma forte crise econômica. Tudo aumenta e o salário não chega ao fim do mês, isso para aqueles que têm a sorte de estar empregados. A reivindicação imediata é por aumento salarial e garantia de emprego. Mas sabemos que, mesmo que uma luta por isso seja vitoriosa, não tardará para que seja necessária uma nova greve para impedir que os salários sejam corroídos pela inflação. A tarefa de uma direção revolucionária é mostrar que o aumento da carestia de vida e o desemprego são necessários para que a burguesia aumente sua exploração sobre a classe trabalhadora e lucre cada vez mais. Para responder a essa questão, Trotsky nos traz o programa de escalas móveis de salário, assegurando que os salários se ajustem automaticamente ao aumento do custo de vida, e escala móvel de horas de trabalho, repartindo o trabalho disponível entre todos os trabalhadores sem diminuição do salário.

Da mesma maneira, a crise política que se apresenta hoje no Brasil precisa também de uma resposta transitória. Qual o avanço de consciência que um programa como “eleições gerais” traz aos trabalhadores? O aumento da ilusão na democracia burguesa, de que basta mudarmos os jogadores? Não é assim que conseguiremos armar a classe trabalhadora para arrancar da burguesia tudo aquilo que lhes pertence por direito. É preciso que lutemos para mudar as regras do jogo, levando a experiência com a democracia burguesa até o final e expondo todas as suas contradições. Impor por meio da mobilização uma Assembleia Constituinte, livre e soberana, na qual disputemos que todo político ganhe igual a uma professora e tenha seu mandato revogável, que haja uma lei que proíba as demissões, que se pare de pagar a dívida pública para investir em educação, saúde e moradia, que se realize a reforma agrária… Um programa que exponha os inimigos da classe trabalhadora e avance politicamente para a necessidade da tomada revolucionária do poder.

Aqueles que se dedicam a levantar um “programa de transição”, como Trotsky chama, devem sempre ter algumas perguntas chave em mente: que lições podemos tirar de cada processo de luta? Que avanço de consciência cada incômodo com o capitalismo pode gerar? E com sua atuação cotidiana, preocupada em gerar, a partir de cada mínima questão, o rechaço à propriedade privada e à exploração burguesas, ir transformando em força material a potencialidade que apenas a classe trabalhadora tem de levar a cabo uma revolução que emancipe o conjunto da humanidade, a revolução socialista.

Esse é o primeiro texto de uma série sobre o Programa de Transição. São 6 partes:
Parte 1: A crise histórica da humanidade e o caráter transitório do programa (este texto)
Parte 2: Escalas móveis, expropriação e duplo poder
Parte 3: Proletariado e Campesinato
Parte 4: A questão da guerra
Parte 5: Desenvolvimento desigual e combinado
Parte 6: A organização política da classe trabalhadora e a IV Internacional




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