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DEBATES NA ESQUERDA | Thomas Piketty e as ilusões do neorefomismo

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

terça-feira 21 de fevereiro de 2017 | Edição do dia

Com a incerteza que segue sobrevoando o cenário internacional pós-Trump – cujos adereços iniciais pintamos como o mal-estar do neoliberalismo – o certo é que o seguimento da crise econômica mundial está transmitindo seus “choques subterrâneos” à política em todo o mundo.

Estes choques estão determinando fraturas em distintos âmbitos do “consenso neoliberal” das últimas décadas – basta ver, por exemplo, a profunda crise de autoridade atravessada pelos partidos conservadores, liberais e socialdemocratas europeus (o “extremo centro”, segundo Tariq Ali), que se alternaram na sustentação das operações neoliberais e nos planos de superexploração dos trabalhadores a nível mundial.

Se a complexa estrutura do capital globalizado e suas rentáveis cadeias integradas de valor são ainda fortes o suficiente para conter a força das políticas protecionistas, Trump parece como mínimo indicar o advento de uma política de “reforma da globalização”, principal conquista das décadas neoliberais. Esta política tem pontos de contato com liberais aterrados ou neokeynesianos “pro-global” como Paul Krugman. Entretanto, dentro da mesma esfera, figuras como o editorialista do Financial Times, Edward Luce, apostam que as forças de Washington e Wall Street removerão Trump do cargo antes que sua política nacionalista possa reger a cena.

Posicionando-se numa região de “lusco fusco” dos neoreformistas de esquerda, o economista francês Thomas Piketty escreveu recentemente sobre como Trump poderia afetar negativamente as eleições francesas deste ano. Como quer evitar a perspectiva de que Marine Le Pen, xenófoba e racista candidata da extrema direita (Frente Nacional), vença as eleições, lança uma advertência à esquerda: ignorar o diálogo que Le Pen tenta estabelecer com os “perdedores da globalização”, simplesmente taxando-a de “populista”, pode levá-la ao governo assim como Trump foi levado nos Estados Unidos.

Opções à deriva

A França é um país atravessado decididamente pelo que Antonio Gramsci qualifica de “crise orgânica”. Segundo Gramsci, “Em certo ponto de sua vida histórica os grupos sociais se separam de seus partidos tradicionais, ou seja, que os partidos tradicionais, naquela determinada forma organizativa, com aqueles determinados homens que os constituem, os representam e os dirigem, não são já reconhecidos como sua expressão por sua classe ou fração de classe. Quando estas crises ocorrem, a situação imediata se torna delicada e perigosa, porque o campo fica aberto a soluções de força, à atividade de potências obscuras representadas por homens providenciais e carismáticos [...]

[...] Em cada país o processo é distinto, ainda que o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que se produz seja porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual solicitou ou impôs pela força o consenso das grandes massas (como a guerra) ou porque vastas massas (especialmente camponeses e pequenos burgueses intelectuais) passaram da passividade política a uma certa atividade e colocam reivindicações que em seu conjunto não orgânico constituem uma revolução. Fala-se de ‘crise de autoridade’ e isto é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto” (C13 §23, entre maio de 1932 e início de 1934).

No caso francês, esta tendência à crise orgânica se expressou mais precocemente que em outros países europeus, como deram prova na década de 2000 a revolta das banlieues (bairros periféricos de Paris) em 2005, fruto do racismo e da perseguição à juventude precária e imigrante, ou a luta contra a reforma das aposentadorias de Nicolas Sarkozy em 2010. Na década posterior, o caráter inédito do fim de ciclo do governo de François Hollande do PS, que adquiriu fortes tendências bonapartistas e reacionárias com os fenômenos aberrantes do terrorismo. Pela esquerda, a recente contestação da reforma trabalhista de Hollande que colocou em greve por meses alguns dos principais centros da classe trabalhadora francesa, no mais amplo movimento social de contestação ampla pela esquerda ao Partido Socialista.

Dessa “crise de autoridade” dos partidos tradicionais emergem com os distintos candidatos presidenciais que com maior ou menor sucesso tentam afastar-se do “centro político” em crise. A extrema direita com Le Pen, a ala liberal “dura” com François Fillon, o social-liberal Emmanuel Macron, Benoît Hamon – que venceu as “internas da esquerda” no PS – e Jean-Luc Mélenchon, do Partido da Esquerda, figuram entre os principais contendentes.

Piketty pertence à esfera de pensamento que considera o candidato do Parti de Gauche, Jean-Luc Mélenchon, parte da “esquerda radical”. Mélenchon tem um programa neoreformista de administração “humana” do capitalismo, combinado com a adoção de posturas nacionalistas que lhe inspira o ascenso da direita; a exemplo, Mélenchon fez declarações há alguns meses segundo as quais os imigrantes “roubam o pão” dos franceses, e que nunca se posicionou favorável à livre instalação dos imigrantes na Europa, em meio à crise dos refugiados. Um escândalo, que Mélenchon justificou dizendo que seu “internacionalismo não é abstrato como o da extrema esquerda”...

Neoreformismo em chamas

Não à toa, esta boa opinião de Piketty sobre o “reformismo aguado” de Mélenchon o leva, em pleno janeiro de 2017, a referir como parte da “esquerda radical” formações como Syriza, Podemos, Bernie Sanders e, claro, Mélenchon, que devem carregar a bandeira da solução dos problemas da desigualdade promovida pela globalização.

Segundo Piketty, as duas candidaturas (de Hamon e de Mélenchon) “têm um ponto em comum: põem novamente em discussão os tratados europeus”. Criticando alguns aspectos do armado institucional europeu, no marco da defesa da União Europeia capitalista, teriam a vantagem de disputar com a direita eurocética a atenção daqueles que perderam com a globalização.

Propõe assim que “se termine com o pacto fiscal de 2012”, que exige que a França e os países da zona do euro, para ter sua dívida prorrogada, cortem seus déficits públicos ou enfrentem sanções do Banco Central Europeu.

Esta seria a tradução de esquerda da consigna “recuperar a soberania”, tantas vezes usada na campanha pelo Brexit, e na eleição de Trump, pois permitiria aos franceses – na imaginação de Piketty – permanecer na União Europeia sem se submeter tão descaradamente à Alemanha.

"O populismo nada mais é do que uma resposta, confusa mas legítima, ao sentimento de abandono das classes populares dos países desenvolvidos diante da globalização e da ascensão da desigualdade. É preciso confiar nos elementos populistas mais internacionalistas (e, portanto, na esquerda radical, encarnada nos diversos países pelo Podemos, pelo Syriza, por Sanders ou por Mélenchon, independentemente dos seus limites) para construir respostas precisas a esses desafios: caso contrário, o encurvamento nacionalista e xenófobo acabará por abalar tudo."

Lamenta a incapacidade da dupla Fillon-Macron de não acatar posições mais progressistas (“Infelizmente, é a estratégia da negação que os candidatos da direita liberal [Fillon] e do centro [Macron], estão se preparando para seguir”), e desta triste realidade tira a conclusão de que o melhor contra o populismo de direita é apostar no reformismo descafeinado Hamon-Mélenchon.

Esta distinção é curiosa:

para Piketty, a questão toda se resumiria a qual espectro do populismo triunfa eleitoralmente, sua versão de direita ou de esquerda, para dar cabo da desigualdade da globalização; não importaria em nada uma posição anticapitalista baseada na luta de classes dos trabalhadores (na França!), fazendo um balanço sereno das últimas experiências políticas que ele mesmo cita.

É como se este setor da intelectualidade estivesse em estado de sonambulismo durante os últimos 5 anos. Nem parece que o Syriza passou em seis meses do discurso antineoliberal para a aplicação do pacto neocolonial de austeridade sob tutela da Alemanha contra os trabalhadores gregos. É como se não houvesse notícia de como o Podemos, de tanto moderar seu discurso ao centro, perdeu mais de 1 milhão de votos num terreno que dizia ser seu, depois de rastejar aos pés do PSOE para um acordo presidencial e, nas capitais onde governa (como Barcelona) perseguir imigrantes e trabalhadores em greve. Como se os últimos 4 meses nos Estados Unidos não tivessem ocorrido e Sanders não submetesse sua base eleitoral a apoiar a candidatura da imperialista Hillary Clinton e dizer que estaria com Trump “na medida em que este beneficiasse os trabalhadores”.

A mesma razão explica que levante como “novidade” a proposta por Piketty de impor à Alemanha um “Parlamento europeu” para aliviar a dívida (“Seria preciso fazer o mesmo hoje, impondo à Alemanha um Parlamento da zona do euro para aliviar as dívidas com toda a legitimidade democrática necessária”), projeto que, mesmo sem ameaçar o pagamento da dívida fraudulenta, foi triturado pela Alemanha nas negociações que colocaram o Syriza de joelhos diante dos bancos de Berlim. Não é preciso aguardar uma tempestade na França para descobrir que um telhado de vime não funcionaria melhor do que na Grécia.

Ou seja, Piketty transforma fracasso destas formações e personalidades políticas em virtude, ignora a impotência dessa estratégia para enfrentar a direita e considera melhorar a substância do neoreformismo mudando-lhe o nome para “esquerda radical”. Já advertia Friedrich Engels que não se pode modificar algo simplesmente por dar um nome diferente a ele.

Nem falar da esperança em Benoît Hamon, a nova versão utilizada pelo Partido Socialista para cumprir seu papel clássico de anular qualquer alternativa à esquerda do “reformismo estatal” francês. De fato, para não deixar dúvidas, Hamon prometeu representar depois de “François Miterrand, Lionel Jospin, Ségolène Royal e François Hollande [nossas] expectativas e [nossas] esperanças de justiça”. Uma árvore genealógica que sintetiza os ataques aos trabalhadores desde a década de 80.

A eternidade capitalista de Piketty

O núcleo da opinião política de Piketty é como amenizar o problema da desigualdade da globalização considerando a desigualdade capitalista como destino manifesto. Foge como da peste de tudo que questione a existência de um sistema econômico que considera parte da natureza humana. É o que faz em seu Capital no Século XXI. Atacando – sem compreendê-la – a lei da queda tendencial da taxa de lucro exposta por Marx no livro III d’O Capital (“lei fundamental do capitalismo”, segundo Marx), Piketty conclui, através de dados da França e da Inglaterra, que “sem dúvida não existe nenhuma força natural que reduza necessariamente a importância dos ingressos surgidos da propriedade do capital no curso da história”, já que “a taxa de rendimento puro do capital é relativamente estável ao redor de 4%-5% a longo prazo”.

Curioso é que discorre sobre o conceito da lei tendencial de Marx admitindo nunca “ter podido ler” O Capital, ou sequer as passagens no livro dedicadas ao tema. Como discute a economista Paula Bach, disso vem que conceba o capital como uma coisa (acúmulo de valores de uso) e não como relação social, determinada historicamente e mediada pela luta de classes, incorrendo em uma definição muito distante da que usava Marx. Esforçando-se para dar estabilidade eterna ao capitalismo, Piketty refuta sua interpretação da teoria marxista, e não a própria teoria.

Uma estratégia anticapitalista e revolucionária

Algo que não poderá aprender com seu parceiro de idéias, o ex-ministro das Finanças do Syriza, Yanis Varoukafis, é como enfrentar o capitalismo para superá-lo como sistema histórico. Varoufakis já mostrou estes limites enquanto fazia parte do governo grego: defende a mesma “esquerda possível” que respeita e aguarda a passagem das dores de agonia do neoliberalismo. É impossível combater o imperialismo alemão sem combater o imperialismo francês, e a própria União Europeia capitalista.

A versão “populista de esquerda” da reforma da globalização não é nenhuma resposta progressista, já que não busca questionar o sistema capitalista. Não pode derrotar a direita – já dirá o Aurora Dourada na Grécia. Não pode derrotar Le Pen. É preciso deixar para trás o automatismo estratégico da derrota, que insiste em não aprender com a vida real – Grécia, Estado espanhol – a impotência de um antineoliberalismo sem anticapitalismo. Especialmente num país como a França, em que há fissuras na classe dominante e em que amplos setores de massas estão mudando suas formas de pensar e buscam ativamente alternativas ao consenso neoliberal (como foi a classe trabalhadora francesa nas ruas durante a luta contra Hollande), abrindo perspectivas alentadoras aos anticapitalistas revolucionários.




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