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SEMANÁRIO

Terminou a lua de mel nos Estados Unidos? Estabilidade e crise na era Biden

Tatiana Cozzarelli

Tradução: Caio Reis

Terminou a lua de mel nos Estados Unidos? Estabilidade e crise na era Biden

Tatiana Cozzarelli

O establishment político estadunidense conseguiu atenuar os fortes elementos de crise orgânica da era Trump, mas essa nova estabilidade está longe de ser duradoura.

Apresentamos a seguir uma versão resumida do artigo original Is The Honeymoon Over? Stability and Crisis in the Biden Era publicado no Left Voice, o site em inglês da Rede Internacional La Izquierda Diario

Após quatro anos de raiva e ativismo durante a administração Trump, o descontentamento e o desejo por mudanças sociais foram canalizados na eleição de Joe Biden. Porém, é mais fácil falar do que cumprir a promessa de “restaurar o espírito da América” e trazer estabilidade após os quatro anos tumultuosos da administração Trump. Neste artigo, analisaremos brevemente como os elementos da crise orgânica, presentes desde 2016, se atenuaram na era Biden. Um fator decisivo para essa estabilidade temporal e relativa foi a construção ativa do que denominamos “reservas estratégicas” do regime político, principalmente através da cooptação e sufocamento do movimento Black Lives Matter. A invasão do Capitólio em 6 de janeiro foi, por sua vez, o ponto mais alto de uma crise orgânica em desenvolvimento e seu ponto de inflexão, já que unificou todos menos os trumpistas na defesa da “democracia”. Biden está no fim de seu período de lua de mel, e os elementos da crise orgânica seguem vigentes. No entanto, ambos partidos, embora tenham diferenças significativas, tiveram um êxito relativo em manterem a crise política dentro de certos limites, atenuando as de anos anteriores.

O fracasso de um projeto capitalista

A crise econômica de 2008 marcou o fracasso do neoliberalismo. Nesse sentido, foi o fracasso de um projeto, um componente do que Gramsci chama de crise orgânica.

O neoliberalismo foi uma resposta reacionária ao esgotamento do ciclo de crescimento capitalista posterior à Segunda Guerra Mundial. Foi imposto à classe trabalhadora e aos oprimidos para encontrar um novo ciclo de crescimento após a crise acumulação de capital dos anos 1970, bem como para sufocar os levantes revolucionários dos anos 1960 e 1970 em todo o mundo. O crescimento econômico veio, em parte, de exprimir ainda mais a classe trabalhadora: extraindo ainda mais mais-valia dos trabalhadores, impondo privatizações e atacando os sindicatos. E a restauração capitalista no antigo bloco soviético proporcionou ao capital um oxigênio, assim como a intensa taxa de exploração na China.

O neoliberalismo exacerbou as disparidades de riqueza entre o que o movimento Occupy Wall Street chamou de o 1% e a grande maioria da classe trabalhadora. Foi acompanhado por uma ofensiva ideológica para convencer de que “não existe alternativa” ao capitalismo, como disse Margaret Thatcher. Perry Anderson reivindica que essa foi “a ideologia de maior sucesso na história”.

Tudo isso criou uma era neoliberal de relativa estabilidade e algum crescimento capitalista, embora fosse muito mais baixo que o do boom do pós-guerra e sofresse crises econômicas periódicas.

Isso encontrou um limite em 2008, quando estourou a bolha imobiliária nos EUA, que criou as condições para o surgimento dos elementos de crise orgânica no país. O governo de Obama, que começou em janeiro de 2009, evitou parte do pior da crise econômica com resgates corporativos em massa. Porém, a classe trabalhadora e os pobres sofreram um grande golpe, perdendo seus empregos e inclusive suas casas. As comunidades afro-americanas e latinas foram as mais afetadas. Ainda que não tenha caído em uma depressão como a dos anos 1930, o capital não vem encontrando um jeito de alcançar um crescimento sustentável.

A crise econômica e a crise orgânica não andam necessariamente de mãos dadas: a primeira não põe automaticamente em marcha uma crise representantes e representados. Em 2008, por exemplo, apesar da crise econômica, as massas se identificaram fortemente com os partidos tradicionais, concretamente com a “mudança” prometida por Barack Obama e o Partido Democrata.

Da mesma forma, uma crise orgânica não deriva mecanicamente de uma crise econômica. No entanto, como dissemos antes, 2008 sim representou uma “crise de hegemonia da classe dominante” resultante do fracasso de “algum empreendimento político importante”.

Separação entre representantes e representados

Até mesmo nos anos de Obama o Occupy Wall Street questionou a distribuição da riqueza, e o primeiro estouro do Black Lives Matter fez o mesmo com a violência policial, enquanto governava “o primeiro presidente afro-americano” da história. Na direita, o Tea Party foi um precursor do trumpismo.

Em 2014 e 2015, surgiram fenômenos eleitorais anti-establishment à esquerda e à direita, representados por Bernie Sanders e Donald Trump. Expressavam a separação entre o establishment político tradicional e as massas que buscavam algo diferente. Esses elementos de crise orgânica se aprofundaram com a vitória do magnata e tiveram altos e baixos durante seu mandato.

Trump teve um papel de deslegitimação das instituições do regime – questionando o FBI, a Corte Suprema, membros de seu próprio partido etc. Nomeou e demitiu membros de seu gabinete em uma velocidade incrível, demitiu o diretor do FBI, Jim Comey, e se posicionou como vítima de todas as instituições do regime, especialmente dos “injustos” meios de comunicação. Por outro lado, não conseguiu impor todo seu programa e nem agir como bem entendesse, já que setores do regime trabalhavam para detê-lo, desde o próprio FBI até os tribunais, passando por setores de seu próprio partido que atuavam como “os adultos na sala”. Porém, nos principais anos do mandato de Trump, grande parte do establishment republicano fez fila atrás dele. Os Never Trumpers [Nunca Trumps] se converteram à nova fé.

A política exterior de Trump foi uma fonte constante de tensão e desestabilidade em escala mundial, incluindo o assassinato do militar iraniano Qassem Soleimani, as constantes ameaças no Twitter contra países estrangeiros, a escaladas de tensões com a China e a excessiva amabilidade com a Rússia. Ao mesmo tempo, ajudou a estabelecer um quase consenso entre os capitalistas sobre um giro em direção à China, já que setores significativos da burguesia estadunidense não querem ver esse país fortalecido.

Os anos de Trump também foram anos ativos de protestos vindos da centro-esquerda e dos progressistas. Desde a Women’s March [Marcha das Mulheres] que levou milhões às ruas de todo o país, aos bloqueios de aeroportos contra a proibição de entrada para cidadãos muçulmanos, passando pelos protestos contra a detenção de crianças migrantes em jaulas, foram quatro anos de protestos massivos, de muita gente que nunca havia saído às ruas, e isso foi assim mesmo antes do novo estouro do movimento Black Lives Matter após o assassinato de George Floyd. Dezenas de milhares de pessoas se uniram ao Democratic Socialists of America (DSA), a maior organização socialista do país, com os millennials e a geração Z vendo o socialismo como mais favorável do que o capitalismo.

Os democratas capitalizaram a ira contra Trump. Uma nova ala progressista ganhou lugares na Câmara de Representantes nas eleições de meio termo de 2018, canalizando o descontentamento nas urnas. O chamado “Squad”, encabeçado por Alexandria Ocasio-Cortez, revelou o sentimento anti-establishment e inclusive com matizes socialistas em uma parte da base do Partido Democrata e, a partir daí, manteve isso por dentro de um dos dois partidos do imperialismo estadunidense.

As primárias do Partido Democrata tiveram um efeito similar um ano depois. Enquanto em 2016 Sanders se posicionou como anti-establishment, em 2019 foi um membro fiel do partido. Em 2016, alguns simpatizantes acreditaram erroneamente que ele lançaria um terceiro partido se perdesse as primárias. Em 2019 não houveram tais ilusões. A campanha mobilizou centenas de milhares de pessoas, especialmente jovens de todo o país que estavam cheios de esperança em uma possível presidência de Sanders. Mas com a ajuda do establishment do Partido Democrata, especialmente de Obama e dos meios de comunicação burgueses, Biden conseguiu se impor. Sanders passou imediatamente a fazer campanha por seu antigo oponente e conseguiu com que uma parte importante de sua base votasse pelo agora presidente. Dessa vez, não houve alvoroço contra o respaldo de Sanders ao establishment do partido. Alguns inclusive aplaudiram as escassas promessas que fez o governo de Biden. O importante era a unidade contra Trump.

Isso aconteceu no começo da pandemia do coronavírus. Até agora, mais de 750 mil pessoas morreram nos Estados Unidos por causa da doença, dando ao país mais rico do mundo a taxa de mortalidade mais alta. Inclusive dentro de uma perspectiva burguesa, Trump respondeu terrivelmente: a recomendação pública de que as pessoas se injetassem desinfetante o caracteriza. Foi incapaz de controlar a pandemia e, em troca, aumentou a polarização chamando a extrema-direita a se mobilizar contra os lockdowns e promovendo teorias conspiratórias sobre o coronavírus. A economia despencou nos Estados Unidos e em todo o mundo, embora a China tenha se recuperado mais rapidamente. A pandemia expôs o fracasso total dos políticos e das instituições estadunidenses para enfrentar uma crise sanitária. Também desempenhou um papel central para que Biden fosse eleito, já que os capitalistas e grande parte das massas esperavam que fosse possível devolver o país à “normalidade”. Ademais, criou um sentido comum de que os trabalhadores são essenciais, que estamos vendo agora nas greves.

O movimento Black Lives Matter reforçou ainda mais os elementos de crise orgânica, tanto de esquerda quanto de direita: com Minneapolis como epicentro, onde os manifestantes queimaram delegacias, a ideia de abolir a polícia foi impulsionada na campanha eleitoral. Evidentemente, a verdadeira abolição da polícia nunca esteve em questão, era só uma mudança por algum tipo de “segurança pública”. Em qualquer caso, foi uma expressão da profundidade do questionamento de massas à polícia como instituição. E em todo o país, milhões foram pra rua. Enquanto isso, Trump fortaleceu uma direita neofascista, incluindo gente como Kyle Rittenhouse, e aliciou um setor dos militares e de seu próprio partido.

Porém, os democratas, com Obama, Kamala Harris e Biden na cabeça, foram capazes de levar tudo isso pras urnas com o papel chave de grupos como o Black Voters Matter e a ONG Black Lives Matter, que se apropria do nome do movimento, mas não necessariamente o representa. Nesse sentido, o regime conseguiu acumular o que chamamos de “reservas estratégicas”. Esse é um termo que provém do general prussiano Carl von Clausewitz. Ele explica em termos militares que as “reservas estratégicas” podem ser acumuladas para eventos imprevistos; são “cartas para jogar” em momentos de crise. Nesse caso, o governo Biden pôde, com ajuda das burocracias das ONGs, converter-se na expressão política do movimento BLM.

Nesse contexto, a maioria dos capitalistas, que buscavam estabilidade depois de Trump, se alinharam com Biden, que ganhou as eleições com uma forte mensagem anti-Trump. Milhões de simpatizantes de Sanders e pessoas que haviam gritado pelo desfinanciamento e pela abolição da polícia terminaram votando em Biden por medo de outro mandato de Trump. “Seguiremos lutando com Biden”, prometeram. “Seguiremos nas ruas”. Mas isso não aconteceu.

Trump buscou fazer com que os republicanos leais a ele dissessem que ele havia ganhado as eleições, e até que os funcionários do governo inclinassem a balança a seu favor. Não funcionou: sirva de exemplo o secretário de Estado da Geórgia, um republicano, que se negou a afirmar que Trump havia ganhado as eleições.

O 6 de janeiro foi um momento histórico para os Estados Unidos. Por um lado, era a máxima expressão de uma crise orgânica, que somente se agudizou nos últimos meses da presidência de Trump. Não foi, no entanto, um golpe fascista, nem sequer uma tentativa de golpe. A invasão do Capitólio foi uma expressão profunda dos elementos da crise orgânica, mas também um momento que, não obstante, proporcionou uma oportunidade para que o regime político e os meios de comunicação – incluindo os políticos de ambos os partidos – começassem a restabelecer a legitimidade através de seu rechaço aos amotinados da direita.

Aquele dia 6 colocou o regime em posição de utilizar e capitalizar suas “reservas estratégicas”. No caso do Partido Democrata, seu êxito consistiu em que as massas que haviam se mobilizado contra Trump durante os últimos quatro anos olharam para Biden e para o regime quando se tratou de dar uma resposta à ofensiva da extrema-direita. Confiou-se neles, e não houve uma resposta da classe trabalhadora e dos oprimidos.

Por outro lado, a ala não-trumpista do Partido Republicano pôde desvencilhar-se de Trump. Mas os elementos trumpistas no partido permanecem. Como resultado, só 33% dos republicanos dizem que irão confiar nas eleições de 2024 caso ganhe um democrata, e quase 70% dos republicanos não acreditam que Biden tenha ganhado as eleições.

Nesse marco, os elementos de crise orgânica adquirem um caráter mais latente, o que não significa que não haja crises nem tensões.

O governo Biden

Nos primeiros meses do governo Biden, os economistas se mostraram jubilosos com a economia, que parecia estar em alta. Havia uma recuperação parcial da pandemia, mas ela tinha seus limites.

Apesar do “imperialismo das vacinas”, que significa que os Estados Unidos acumulou 15 milhões de vacinas (mais que toda a população de Honduras), o coronavírus segue matando milhares de pessoas, alcançando taxas muito altas devido à variante Delta e à negativa de muita gente em se vacinar.

Também estamos assistindo a uma lentidão nas cadeias de abastecimento, o que cria problemas para as empresas. Isso está diretamente relacionado com o fenômeno conhecido como Great Resignation, onde uma enorme quantidade de trabalhadores decidem deixar seus empregos voluntariamente. Os salários baixos e as condições de trabalho precárias provocaram, por exemplo, a diminuição no número de caminhoneiros. As pessoas estão abandonando seus postos de trabalho em um ritmo alto, embora o relatório de emprego de outubro mostre uma certa retomada nas contratações e menos pessoas que abandonam a população ativa.

A taxa de inflação pode ser sentida em cada ida ao supermercado: em setembro, estava em 5,4% nos Estados Unidos, uma alta de 13 anos. A Reserva Federal afirma que isso está diretamente ligado aos problemas da pandemia e que, portanto, é temporário. Mas o “temporário” pode se prolongar durante mais um ano, e seguir prejudicando as famílias da classe trabalhadora.

Nenhum desses problemas é catastrófico por enquanto. Vemos uma recuperação com alguns picos importantes e uma economia capitalista que desde 2008 se enfrenta com fortes contradições.

Nas análises iniciais, quando Biden ainda era candidato, alguns acreditavam que seu governo seria de ajuste. Resultou não ser o caso. Do outro lado, os social-democratas anunciaram alegremente Biden como o próximo Roosevelt, o que também não é.

O pacote de ajuda pela pandemia levou imediatamente dinheiro para os bolsos das pessoas e isso gerou altos índices de aprovação. Mas os próximos pacotes serão muito mais difíceis de aprovar. O projeto bipartidário de lei de infraestrutura será aprovado à medida que os progressistas cedam diante dos recentes resultados eleitorais.

Biden quer utilizar o projeto de lei de infraestrutura para ganhar o apoio de alguns dos partidários “populistas” de Trump; afinal, Trump também prometeu infraestrutura. Também é uma forma de adotar uma posição a favor do gasto público que atrai alguns da base do Partido Democrata. O plano de infraestrutura é uma necessidade para evitar minimamente que as taxas de produtividade caiam ainda mais, assim como para dar aos capitalistas melhores oportunidades para competir com a China. Porém, devido aos recortes no projeto original, não é um plano ofensivo para construir a infraestrutura dos Estados Unidos para competir no cenário mundial.

A política de Biden para a China tem mais elementos de continuidade que de ruptura com a política de Trump. Enquanto que, no nascimento da era neoliberal, a abertura da China ao capitalismo era oxigênio para uma economia asfixiante, agora a China se alça como um competidor estratégico dos Estados Unidos. Porém, diferente de Trump, Biden está estabelecendo uma política exterior mais multilateral, buscando se apoiar nos “aliados ocidentais”.

Isso ocorre no contexto de declínio da hegemonia imperialista estadunidense em escala mundial. A crise do Afeganistão deixou isso claro e criou problemas para a administração Biden, apesar do consenso burguês de que a política exterior não deve mais se centrar no Oriente Médio. De fato, o consenso entre os militares e os capitalistas é que foi perdido muito tempo, energia e dinheiro no Oriente Médio, deixando um flanco aberto para que a China se convertesse em um competidor estratégico.

Está se configurando o tabuleiro para que as tensões geopolíticas sejam muito maiores no futuro, ainda que hoje mesmo isso seja só um rumor.

Uma crise desigual nos partidos

Ambos partidos foram capazes de conter os elementos de uma crise orgânica dentro de suas próprias fileiras. Mas teve um custo. O Partido Democrata enfrenta lutas internas que dificultam a aprovação da agenda de Biden, embora tenha sido capaz de disciplinar a ala mais progressista do partido. Isso implicou em retroceder nas promessas eleitorais e reduzir os grandes projetos de lei a planos tímidos que beneficiam os capitalistas. Por isso e pela inflação, perderam por margem ampla as últimas eleições locais e a aprovação de Biden caiu 10 pontos desde o início de seu mandato, até os 43%. A de Trump era de 36% a essa altura de sua presidência.

Os democratas têm a “vantagem” de ter neutralizado a ala anti-establishment em boa parte, que passaram a ser “verdadeiros guerreiros” da agenda de Biden. Ficaram lá atrás o Green New Deal, a universidade pública e a saúde pública gratuita.

E vemos que os mecanismos do “Estado integral” cumprem um papel na contenção de qualquer luta da esquerda. Como argumenta Gramsci, o Estado não é só um instrumento de repressão e coerção, seus mecanismos hegemônicos também incluem a cooptação. Hoje, as instituições desse “estado integral” estão tendo um papel chave na contenção de qualquer elemento de luta. Enquanto Biden mantém crianças imigrantes em jaulas e o direito ao aborto corre risco, as burocracias das ONGs se negam a organizar qualquer luta importante. Vemos como a burocracia sindical se organizou na campanha de sindicalização da Amazon para apontar Biden como defensor dos sindicatos e, inclusive agora, trabalha para garantir que as greves permaneçam dentro dos estreitos limites da legalidade burguesa.

O Partido Republicano se encontra em um cenário mais complicado. Um setor tem uma estratégia que talvez esteja melhor exemplificada por Glenn Youngkin, governador eleito na Virgínia. Ele retoma alguns elementos antissistema e racistas do trumpismo ao mesmo tempo em que coloca certa distância entre ele e Trump. Embora aproveite sua condição de “outsider político”, não adota os elementos mais antissistema do trumpismo. E assim, republicanos como ele têm um papel na contenção de alguns dos maiores elementos da crise orgânica, mas é um equilíbrio difícil.

Outros, porém, se parecem mais com o magnata: ao menos sete pessoas que assistiram à concentração pró-Trump de 6 de janeiro em Washington, que precedeu o assalto ao Capitólio norte-americano, foram eleitos para cargos públicos nas últimas eleições.

E os republicanos seguem promovendo o mito de que Biden não ganhou as eleições. Isso expressa claramente elementos de crise orgânica, dado que muita gente não confia no processo democrático. Como resultado, estamos assistindo uma avalanche de ataques ao direito ao voto no país, que afetam principalmente as minorias raciais. Dezenove estados promulgaram 33 leis que restringem o direito ao voto. Essas leis retrocedem direitos básicos ganhos durante a era dos direitos civis e buscam assegurar que os republicanos ganhem as eleições mantendo negros e latinos longe das urnas.

Os direitos democráticos básicos estão sendo atacados pelos republicanos em múltiplos âmbitos. Isso inclui os ataques ao direito ao aborto, proibindo-o após seis semanas no Texas – uma lei confirmada pela Corte Suprema. Inclui os inumeráveis ataques aos jovens trans, como a proibição de participar em equipes esportivas e as barreiras de acesso a tratamentos de reafirmação de gênero. Também inclui os ataques ao ensino de história e a chamada “teoria racial crítica”. Não existe uma luta organizada contra nenhum desses ataques.

As dúvidas sobre as vacinas são outra forma de desconfiança no establishment, que se expressa de forma retrógrada e distorcida na desconfiança na própria ciência. Enquanto a direita capitalizou isso politicamente, e o próprio Trump fomentou grande parte desses sentimentos, também existem grandes camadas de pessoas não-trumpistas que expressam esses sentimentos. Como resultado, apesar de acumular vacinas, os EUA seguem tendo uma alta taxa de mortalidade, embora tenha diminuído um pouco nas últimas semanas.

O próprio Trump está desempenhando um papel na política nacional: organiza atos, atribui a si o mérito das recentes vitórias republicanas e quer lançar uma nova plataforma nas redes sociais chamada Truth [Verdade]. Algumas pesquisas dizem que 78% dos republicanos querem que ele concorra novamente à presidência.

Portanto, Trump e o trumpismo voltam a entrar em cena. Estão se acomodando as peças para uma crise maior.

Luta de classes

Tivemos o Striketober e os conflitos trabalhistas continuam. Essa é a outra cara do Great Resignation: as greves atuais que não buscam uma saída “individual” para a crise e se organizam de forma mais ampla para conseguir melhores condições de trabalho. Não podemos falar de uma onda, mas colocam em evidência que a classe trabalhadora está se movimentando, que existe um setor de trabalhadores que rechaça as condições impostas pelo neoliberalismo, e que é imprescindível uma nova consciência pós-pandêmica na classe trabalhadora. Isso se combina com o ódio contra os patrões e os ultra ricos, criando condições para um processo mais profundo e amplo de luta de classes.

Vemos greves contra o sistema salarial de dois níveis, que foi uma peça central dos ataques neoliberais contra a classe trabalhadora, utilizado para dividir os trabalhadores e baixar os salários de todos. O nível mais baixo esta formado sistemáticamente por trabalhadores negros e latinos; os empresários utilizam assim o racismo para dividir a classe trabalhadora dentro desses estratos formalizados. Os trabalhadores da Kellogg’s, John Deere e Kaiser Permanente, assim como os trabalhadores da GM em 2018, estão se colocando contra o sistema de níveis, e isso representa uma importante luta contra um pilar do neoliberalismo em seus locais de trabalho.

Muitos estão em greve com a convicção de que não darão nenhuma concessão, como disseram recentemente os trabalhadores da Kellogg’s. Estamos vendo um repúdio aos acordos provisórios propostos pela burocracia, como vimos entre os trabalhadores da John Deere e da Volvo, bem como os mineiros do Alabama. Ao mesmo tempo, a burocracia sindical está freando essas lutas, e no caso da IATSE de Hollywood, inclusive impediram a greve.

Essas greves evidenciam as possibilidades da esquerda e o potencial na subjetividade operária. Mas quando pensamos desde a perspectiva da crise orgânica, vemos os operativos do Partido Democrata buscando fazê-las parecerem uma forma de apoiar Biden. Essa ideia das greves como campanhas de pressão para os democratas, e não como “escolas de guerra” para construir poder de classe, prevalece na esquerda e no DSA. Essa é uma grande debilidade que impedirá que essas greves se radicalizem e se oponham politicamente aos capitalistas de seus partidos.

A ameaça de mudança climática

Outro elemento que desempenha um papel desestabilizador é a questão da mudança climática. Biden foi eleito prometendo ser um presidente respeitoso com o clima e desenvolver um “capitalismo verde”, e setores do capitalismo investiram nessa ideia. Muitos na esquerda votaram em Biden como o “mal menor” em matéria de mudança climática. Essa gente se enganou muito, como o próprio Biden vem demonstrando.

Embora o plano de infraestruturas pretendesse mirar grandes soluções, ao fim só destinarão 555 bilhões de dólares para questões relacionadas às mudanças climáticas durante os próximos 10 anos, o que não é nem um décimo do valor que provavelmente será destinado ao orçamento militar. E é um plano que provavelmente aumentará as emissões de carbono, e não as reduzirá. Além disso, a administração Biden está fazendo grandes concessões aos maiores contaminadores do mundo na COP26 e abandonando o objetivo de limitar o aquecimento a 1,5°C.

Não foi tomada nenhuma medida para encerrar projetos de extração de combustíveis fósseis como o Minnesota’s Line 3 ou o Dakota Access Pipeline. E seguem adiante com os projetos de desmatamento.

A crise climática é existencial. Apesar do que o setor “radical” dos democratas possa nos fazer crer, é impossível evitar o desastre climático sem um uso racional dos recursos da terra. O controle operário da produção é o único caminho razoável para evitar o desastre climático. O capitalismo não tem soluções reais para a crise climática, e só criará crises crescentes, incluindo refugiados climáticos, problemas de infraestrutura, eventos climáticos extremos e mais.

Resumidamente, esse é o cenário político em que nos encontramos nos EUA: os elementos da crise orgânica retrocederam em certa medida, o que não elimina a possibilidade de crises adiante, inclusive em um futuro próximo. A “esquerda” se integrou mais no regime e o estado integral joga um papel de contenção e desvio da luta de classes e do descontentamento, por isso, desde o Left Voice, devemos pensar nosso papel na construção de uma organização socialista revolucionária nos EUA que comece a contestar o papel do Partido Democrata e todos sus tentáculos. Mas também inclui convencer e entrar em diálogo com aqueles jovens que se voltam ao socialismo, desiludidos com a administração Biden e dispostos a lutar; inclui aqueles trabalhadores atualmente em greve, mas que veem que a luta vai além de seus postos de trabalho. Na tradição de O que fazer? de Lênin, que explica o papel da publicação na construção de um grupo, esperamos que o Left Voice possa desempenhar um papel na base teórica e política para o surgimento de um partido revolucionário e para a refundação da Quarta Internacional.


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