×

CINEMA | Teoria de tudo mostra um Hawking com a cara do Oscar

terça-feira 24 de março de 2015 | 16:55

O filme “Teoria de Tudo”, sobre o cosmólogo Stephen Hawking, está em exibição nos cinemas e recebeu cinco indicações ao Oscar, tendo conquistado um dos prêmios – o de melhor ator, para Eddie Redmayne. Há nele alguns pontos, de fato, brilhantes, como a maravilhosa atuação de Redmayne no papel de Hawking, ou a impressionante beleza de cenas que aparecem no filme como “inspirações” para as ideias teóricas de Hawking, entre outras de grande força (curiosamente, nenhuma das indicações do filme ao Oscar está relacionada a esse aspecto da produção, de longe o melhor).

Contudo, por mais que seja muito interessante ver nas telas a história de um homem que, além de ser um cientista excepcional, ainda enfrentou em sua vida o imenso obstáculo de se ver completamente confinado em uma cadeira pela esclerose lateral amiotrófica – uma gravíssima doença degenerativa –, o filme não deixa de ser mais um “enlatado” de Hollywood, feito sob medida para comover com fórmulas prontas e mil vezes testadas pela indústria cinematográfica, faturar alguns milhões e levar um balde de prêmios de uma “academia” que só valoriza os “produtos” que expressam mais do mesmo. Difícil conseguir esperar outra coisa de uma grande produção Hollywoodiana, já que, muito antes de ser um ambiente aberto à produção artística e à liberdade de criação, é uma “indústria do entretenimento” em que muitos milhões de dólares estão envolvidos, e, para os grandes estúdios (como para qualquer empresa capitalista) o que importa são as cifras dos lucros, independentemente de estarem produzindo sapatos, carros, sopa, filmes ou música. No mundo da mercadoria, tudo se transforma em valor de troca, no “quanto vale”. Nesse sentido, para os capitalistas de Hollywood que decidem quem produzirá o quê e como, faz pouco sentido arriscar algo com “artistas” que querem criar algo diferente: o melhor é faturar alguns milhões repetindo tudo aquilo que sempre dá certo.

É essa é a regra fundamental que faz do “Teoria de Tudo” – mesmo que tenha seus pontos altos – uma narrativa que é castrada de tudo o que poderia ter de transformador, questionador ou instigante. O roteiro do filme – que concorreu ao Oscar – é uma adaptação do livro autobiográfico da primeira esposa (e protagonista do filme), Jane Wilde, “Travelling to infinity: my life with Stephen (Viajando para o infinito: minha vida com Stephen). Como em qualquer blockbuster de Hollywood que procura a comoção fácil, o enredo de toda a vida de um dos mais brilhantes físicos de nossa época é reduzido a uma história de amor, com sua fascinante incursão pelos buracos negros e a teoria do universo aparecendo quase como um pano de fundo para os problemas conjugais de Hawking e Wilde.

Bom, isso, por si só, já é um ponto forte da ideologia dominante na arte de nosso tempo, colocando a realização individual através da constituição de uma “família feliz” como o objetivo maior de qualquer ser humano (e em particular das mulheres). Mas a forma como Anthony McCarten – o roteirista do filme – procura retratar o relacionamento entre Jane e Stephen, é ainda mais emblemática dessa moral. A existência de dois triângulos amorosos na vida do casal – entre Jane e o Padre anglicano Jonathan Jones, e entre Hawking e sua secretária Elaine Mason – é tratada de maneira ambígua e distorcida no filme. O caso entre Jonathan e Jane – que ocorreu e foi consentido por Hawking – é tratado como um “amor proibido” não consumado (ou apenas realizado de forma escondida e permeada de muito arrependimento cristão) e que leva o padre a se afastar para preservar o casamento de sua amante. Tal afastamento nunca ocorreu.

Já o caso de Hawking com sua secretária é completamente omitido no filme, aparecendo apenas através de insinuações ínfimas. A necessidade de apresentar um relacionamento monogâmico, feliz e impecável (mesmo que termine em divórcio) é tamanha que McCarten conta em entrevista que ele convenceu Jane a lançar uma segunda edição do livro, já esgotado; nessa, todas as passagens “ásperas” do casamento, (“certas passagens mais emocionais que haviam sido duramente criticadas pela imprensa britânica”, segundo McCarten), foram editadas – segundo ele por decisão de Jane. Nas palalvras de McCarten: “Houve um momento em que os Hawking tiveram de tomar decisões bem pouco ortodoxas no que se refere à vida privada deles. (...) E não conheço outra história em que A vive com B e com permissão de A, B começa a se relacionar com C e, com a permissão de B, A começa a se relacionar com D. É uma visão de ’família moderna’ à frente de seu tempo, e que claramente não foi fácil de se estabelecer, mas de fato aconteceu". Aconteceu na vida do casal; no filme, não.

Esse aspecto é apenas um exemplo bastante expressivo do que o lodo das produções hollywoodianas fazem para garantir seu sucesso a todo custo. É lamentável que um cientista que fez suas teorias brilhantes a custo de ousar pensar e desafiar aquilo que já estava estabelecido, tenha sua vida transformada em um filme que em nada ousa, em nada cria, em nada desafia. Aspectos muito interessantes da vida de Hawking, como sua relação com a religião e a crença em Deus, são tratados de forma bastante simplista e continuam, como tudo mais no filme, orbitando apenas em torno de sua relação com a esposa.

A coroação desse modo “careta” de apresentar sua biografia é um discurso de Hawking que foi pronunciado na abertura das paraolimípiadas de 2012, e no filme é transformado na resposta a uma pergunta mais ou menos assim de um jornalista em uma entrevista coletiva: “Você afirmou não acreditar em Deus. O que te dá força e motivação para viver?” As palavras de Hawkings na abertura da paraolimpíada são então deslocadas para esse contexto, e elas dizem: “Há algo de muito especial nas condições dos limites do universo. E o que pode ser mais especial do que não ter limites? E não deve haver limites para o esforço humano.” E também que “há algo em que todos nós somos bons, independente de nossas diferenças”. Então, o público se levanta e aplaude em pé a resposta de Hawking. Essa apoteose da “lição de vida” (uma das batidas “fórmulas de sucesso”) é o coroamento da comoção barata hollywoodiana.

A contemplação de Jane e Stephen ao final do filme (não se preocupe, não estou estragando nenhuma “surpresa”, como já deve ter ficado claro), vendo seus filhos crescidos e saudáveis mostra “a beleza da vida humana”, na visão moralista daqueles que precisam a todo custo encaixar a vida de Hawking na camisa-de-força do “felizes para sempre”, uma fórmula tão velha quanto certeira para arrecadar uma boa bilheteria. Enfim, “Teoria de tudo” é um bom entretenimento para uma tarde qualquer, e pode até ter agradado a “família Hawking”, objetivo que era um dos mais importantes do filme, segundo seu protagonista; mas, sem dúvida, não apresenta nenhuma questão profunda, inquietante ou instigadora, mesmo tratando da vida de um homem que não se contentou, como o filme sobre ele, em fazer “mais do mesmo”.


Temas

Cinema    Cultura



Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias