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ENTREVISTA COM KOUVELAKIS DO SYRIZA | Syriza no Estado: antiausteridade sem anticapitalismo?

A revista britânica Jacobin publicou em sua edição impressa uma entrevista da jornalista Aude Lancelin e do filósofo Alain Badiou com Stathis Kouvelakis, membro da ala esquerda do Comitê Central do Syriza. Depois dos debates das vertentes autonomistas sobre a possibilidade de “transformar o mundo sem tomar o poder”, os importantes fenômenos reformistas na Europa Syriza e Podemos abrem uma reflexão sobre “tomar o poder sem se deixar tomar por ele”. A tentativa de resolver o impasse da esquerda mundial com a “integração das massas ao Estado” responde aos desafios atuais, ou esbarra no problema da antiausteridade que não é anticapitalista?

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

domingo 26 de abril de 2015 | Edição do dia

Com o mérito de refletir distintos pontos interessantes sobre qual estratégia adotar em meio à crise europeia, a entrevista se centrou em ponderar as “novas” possibilidades de “articulação do Estado com os movimentos sociais de base”. Este temário, do grau possível de influência das massas no curso do Estado burguês, que atravessa um debate clássico entre os dirigentes marxistas da II Internacional no ocidente (antes da Primeira Guerra Mundial), e particularmente depois da Revolução Russa de 1917 com os teóricos reformistas da socialdemocracia (já afundada na bancarrota histórica de ter lançado os trabalhadores europeus na carnificina imperialista em 1914), se desenvolve em pleno fim de ciclo dos governos pós-neoliberais na América Latina, que inspiram declaradamente os dirigentes Alexis Tsipras do Syriza e Pablo Iglesias do Podemos.

Ironicamente, governos que se utilizaram durante toda a década de 2000 de um relato de “autonomia nacional e popular” e “integração dos povos latinoamericanos” externamente, e um discurso de “incorporação da cidadania, de distintos segmentos e classes, ao Estado” internamente, instrumentalizando os levantes populares do fim dos 90 em nome de restaurar o equilíbrio relativo dos estados burgueses em crise.

Como viemos refletindo no Esquerda Diário, uma experiência cujo ciclo chega ao fim com estes mesmo governos do PT no Brasil, de Kirchner na Argentina, e mesmo o fenômeno do chavismo na Venezuela, adotando a agenda econômica da direita neoliberal contra os trabalhadores latinoamericanos (Evo Morales, mesmo com um fôlego maior na Bolívia, como parte deste “direitismo pós-neoliberal”) e entregando seus países e o que há dentro deles para os antigos desafetos da ALBA (principalmente os Estados Unidos, que com a ajuda dos governos renova sua influência regional na Cúpula das Américas).

O debate entre Allan Badiou e Stathis Kouvelakis, da Plataforma de Esquerda do Syriza, trata de reoxigenar este discurso da ala nacionalista burguesa latinoamericana, em função da novidade na Europa da “interação entre mobilizações populares e fenômenos políticos com tradução eleitoral”. Para Kouvelakis, o que é ímpar na ascensão do Syriza é que nunca teria chegado ao poder “não fosse a emergência das mobilizações populares e sociais na Grécia, de um alcance maior que qualquer coisa na Europa desde os 70” (apesar de reconhecer que o apoio popular vem junto com a pressão sobre o governo).

É certo que estamos diante de altos níveis de aprovação popular de Podemos e principalmente do governo Syriza na Grécia, sendo os primeiros fenômenos políticos reformistas de massas desde os 70 na Europa. Entretanto, os discursos do Syriza sobre a possibilidade de um acordo “benéfico tanto ao povo quanto aos sócios europeus” reveste a novidade européia com a velho poeira reformista que busca conciliar os interesses de classes sociais antagônicas (e por vezes, no interior do Estado burguês), servindo como instrumento de contenção da luta de classes, como foram o pósneoliberais latinoamericanos, e não para a transformação revolucionária da sociedade pelos trabalhadores.

“Tomar o Estado sem deixar-se tomar por ele”

Badiou questiona o “método político clássico” que utiliza o Syriza, a saber, “ocupar o poder central dentro da legitimidade constitucional/eleitoral para depois levar a cabo manobras e negociações com os ‘sócios’” sem tocar na propriedade privada, o que tornaria o programa do Syriza muito menos radical que o dos comunistas gregos (a despeito desta sobrevivência do stalinismo ser um aliado chave do imperialismo na contenção dos trabalhadores durante as dezenas de paralisações no país).

Para explicar seus temores, compara a situação grega atual com o governo socialista de Mitterrand na França da década de 80, que apesar das estatizações operadas em setores importantes da economia, terminou “não se deixando controlar pelo movimento de massas que o colocou no poder”.

O não questionamento das bases sociais do Estado burguês de fato emerge como uma das principais formas de sobrevivência do capitalismo: a assimilação dos desafios que vem das massas através da constituição de “governos progressistas” que debilitam a organização de base dos trabalhadores e do povo pobre.

Órfão desta lição, Kouvelakis, na tentativa de distanciar-se do “mitterrandismo”, responde lapidar: “Na conjuntura atual, inclusive medidas modestas ou moderadas alcançam o que eu chamaria, inclusive, dimensões potencialmente revolucionárias. Necessitamos infligir derrotas às políticas neoliberais. Para isso, a experiência grega ensina que movimentos e mobilizações são a condição indispensável, o ponto de partida deste processo, mas não são suficientes em si mesmos. É preciso tomar o Estado sem deixar-se tomar pelo Estado. Aí está todo o problema”.

A teoria da “integração das massas com o Estado” desde o ponto de vista das classes oprimidas

A “articulação do Estado com os movimentos sociais de base” fortalece a participação de massas no Estado? Lênin e Trotsky são os principais portavozes da crítica do marxismo contra as ilusões reformistas do aumento gradual da influência das massas sobre o Estado burguês. O teórico marxista alemão Karl Kautsky (maior representante do marxismo até a Primeira Guerra) era o principal expoente desta idéia segundo a qual a socialdemocracia poderia se apoderar das rédeas do Estado capitalista pacificamente e utilizá-lo para fortalecer a influência dos trabalhadores nos rumos da sociedade burguesa. O abandono de qualquer reflexão estratégica sobre o caráter de classe do Estado (e da democracia) e a defesa em “fundir” os movimentos de massas no aparato estatal da República de Weimar de 1919 (resultado da derrota da revolução alemã de 1918) se expressou na oposição virulenta de Kautsky à Revolução Russa de 1917 e ao primeiro estado operário da história.

“Tomai a estrutura do Estado. Kautsky agarra-se às «ninharias», mas não vê o fundo do problema. Não nota a essência de classe do aparelho de Estado, da máquina de Estado. Na democracia burguesa, servindo-se de mil estratagemas, os capitalistas afastam as massas da administração, da liberdade de reunião e de imprensa, etc. [...] Mil barreiras fecham às massas trabalhadoras a participação no parlamento burguês (que nunca resolve as questões mais importantes na democracia burguesa: estas são resolvidas pela Bolsa e pelos bancos), e os operários sabem e sentem, vêem e percebem perfeitamente que o parlamento burguês é uma instituição alheia, um instrumento de opressão dos proletários pela burguesia, uma instituição de uma classe hostil, da minoria exploradora. [...] A democracia burguesa continua a ser sempre — e não pode deixar de continuar a ser sob o capitalismo — estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobres.” (Lênin, A Revolução proletária e o renegado Kautsky)

Dialogando com esta definição de Lênin (que não excluía, e sim pressupunha a participação dos revolucionários na denúncia desde dentro do parlamento) podemos generalizar que quanto maior é o êxito desta “articulação Estado-massas” nos marcos do capitalismo, maior é sua capacidade de instrumentalizar a insatisfação popular para a recomposição de sua autoridade estatal, e tanto melhor se obter ajuda de organizações “progressistas” a favor desta integração conservadora.

Não à toa, Kouvelakis diz que a tarefa do Syriza se resume a “reconstruir o que foi destruído do estado de bem estar social”, que no segundo pósguerra foi o modelo usado pelo imperialismo para moderar os choques entre revolução e contrarrevolução e recompor a autoridade do estado burguês, que concedia reformas sociais em troca de exterminar os processos revolucionários da classe trabalhadora na Grécia, na França e na Itália.

Contra a perspectiva de que a chegada do Syriza ao poder “poderia contribuir à possibilidade de um novo ciclo de mobilizações”, é preciso enxergar que o Syriza se tornou um instrumento importante de canalização da ruptura à esquerda das massas contra o PASOK, mas para uma saída institucional: não desenvolve a dinâmica das mobilizações (basta ver a inexistência de chamados para a luta mesmo por demandas imediatas, como o aumento do salário mínimo, contra as privatizações e o desemprego). Desde sua chegada ao governo, o Syriza potencializa as pressões imperialistas na Grécia, não a resposta de massas contra ela.

Superar a experiência pós-neoliberal com a centralidade dos trabalhadores

Ao contrário do que diz Kouvelakis, “medidas modestas” como “infligir derrotas às políticas neoliberais” sem tocar na propriedade privada nem questionar o Estado burguês não tem nada de revolucionário. De fato, é o caminho enveredado pelos governos latinoamericanos citados acima, que hoje abrem caminho à direita nacional.

Ao não tratar dos problemas de Estado e do caráter de classes da sociedade, Syriza (assim como o Podemos) são mostras de organizações que podem ser “antiausteridade” mas não são anticapitalistas. Este aspecto fundamental do programa, de ataque direto aos capitalistas e seu Estado, é o que condiciona a formação da classe trabalhadora enquanto sujeito independente contra as saídas que a burguesia busca impor à crise (como impôs na primavera árabe a partir do fracasso do islamismo moderado). Uma estratégia reformista de absorção dos problemas da crise capitalista, sem combater o sistema capitalista de conjunto, não pode fortalecer as mobilizações de massas, mas pode perfeitamente operar as “restaurações conservadoras” tão necessárias ao capitalismo.

Não se trata, portanto, de chegar ou não ao governo sob condições quaisquer, para depois seguir sustentando o capitalismo com um “progressismo modesto”. Trata-se de definir estrategicamente se queremos lutar por um governo dos trabalhadores que termine com o capitalismo ou pela reedição de variantes progressistas como os Lulas, os Chávez, os Morales ou Kirchners, que mudam o regime político mantendo de pé o Estado dos capitalistas. Sem a força da classe operária organizada desde as bases e o trabalho da esquerda no centro do movimento operário para ligá-lo aos movimentos sociais com uma estratégia de hegemonia operária que quebre a “integração das massas com a burguesia”, não se pode sustentar um “governo de esquerda” muito menos um governo dos trabalhadores.

A esperança gerada pelo Syriza, que é real e mobiliza grandes debates na esquerda e no movimento operário, pode sofrer o destino do partido de Kouvelakis: uma rápida institucionalização. Esta esperança, para que se desenvolva em força real, precisa ser orientada por uma estratégia anticapitalista e socialista. A sentença de Engels, “o Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e de modo nenhum menos na república democrática do que na monarquia”, é um norte saudável para a batalha dos marxistas pela derrubada insurrecional deste Estado como base da revolução internacional.




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