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GOVERNO BOLSONARO - SAÚDE MENTAL | Sobre os avanços de Bolsonaro na contrarreforma da saúde mental e o eletrochoque como norma

terça-feira 12 de fevereiro de 2019 | Edição do dia

Recentemente o governo Bolsonaro emitiu uma “nota técnica” sobre a “Nova Saúde Mental” (11/2019) com novas diretrizes para a política nacional de saúde mental a ser implementada no Brasil. Essa nota é consonante com o sentido do governo de extrema-direita de Bolsonaro em geral: representa ataques frontais às lutas por direitos humanos, pela humanização do tratamento de pacientes de saúde mental, contra a lógica manicomial e diversas conquistas que foram fruto de décadas de luta de pacientes, profissionais da saúde, familiares e da população em geral, muitas das quais foram parcialmente consolidadas pela reforma psiquiátrica de 2001. Desde o governo golpista de Michel Temer o que temos visto foi o rápido avanço de uma “contrarreforma” psiquiátrica.

Os fundamentos por trás das medidas que tiveram início no governo Temer, e ganharam muito mais peso agora com Bolsonaro, são o de fortalecer uma lógica autoritária, restritiva, que tem como centro o lucro e o modelo de atenção à saúde centrado num paradigma em que a figura do médico aparece como detentora de um saber absoluto frente ao paciente, com um poder e uma autoridade inquestionáveis, e que se fundamenta numa ciência cujos pressupostos epistemológicos e científicos são completamente falhos, dada sua submissão à lógica do capital. Para aprofundar esse tema, recomendamos a leitura de “Medicina dos Sintomas”, livro de Gilson Dantas, médico e sociólogo, que apresenta uma introdução aos problemas estruturais presentes nesse modelo médico e que não será possível aprofundar aqui.

Veja também: Crise na medicina e decadência do modelo biomédico capitalista

No âmbito da saúde mental, a primeira consequência do fortalecimento desse modelo é a lógica da medicalização e da institucionalização das doenças psíquicas. O modelo psiquiátrico hoje se pauta por uma visão cujos fundamentos científicos são, no mínimo, altamente questionáveis e para nada comprovados, de que as doenças mentais possuem uma base orgânica, biológica, genética (para saber um pouco sobre isso, veja aqui). Ou seja, de que são fruto de uma alteração bioquímica do corpo e que todas as condições sociais nas quais vivem os indivíduos acometidos por essas doenças podem, no máximo, desencadear uma doença latente, cuja base orgânica estava subjacente.

Daí deriva a lógica de que o tratamento prioritário e fundamental seja a medicalização dos indivíduos, e jamais a busca por compreender e resolver os problemas sociais que evidentemente são fatores geradores dessas doenças – tal cegueira não é um acaso, mas fruto justamente do fato de que resolver os problemas sociais que desencadeiam tais doenças passaria imprescindivelmente por uma mudança social radical, envolvendo as relações de produção, de trabalho, de propriedade, ideológicas etc.

O modelo manicomial sempre vigorou no Brasil, foi combatido duramente, com uma luta que obteve conquistas importantes, como a criação da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), que hoje é vítima de ataques para fazer retroceder os avanços ainda parciais que foram implementados. Nesse modelo, o paciente de saúde mental é visto como um doente crônico, sem perspectiva de poder criar laços sociais ou conviver com o outro, e, portanto, é internado e isolado do convívio social. Para além do estigma, isso implica em maus tratos, abusos e torturas de todo tipo contra os internos dos manicômios. São tornados reféns dessas instituições.

A ideia da RAPS, que idealmente conta com todo um sistema de atendimento que incluem CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), unidades de acolhimento, residências terapêuticas, leitos em hospitais gerais, atendimento na rua etc. nunca foi efetivamente implantada, apesar de sua conquista jurídica. Isso porque, como todo atendimento do SUS, é sucateado pelos governos, que privilegiam dar bilhões aos capitalistas por meio do pagamento da dívida pública, entre outras formas de colocar o Estado a serviço dos lucros de um punhado de parasitas.

O fechamento de leitos psiquiátricos e manicômios nunca foi acompanhado com a correspondente oferta de atendimento no modelo antimanicomial, levando a que muitos dos antigos internos dessas instituições absurdas se mantivessem numa condição de completa marginalidade, ficando em situação de rua ou outras condições degradantes e “aceitáveis” apenas em uma sociedade de miséria como a que vivemos.

Esse sucateamento, é claro, também visa fortalecer a obtenção de lucro pela via da mercantilização do atendimento terapêutico. Um dos primeiros ataques à RAPS, cuja fragilidade causada pelo próprio Estado servia de argumento para defender esse absurdo, foi a regulamentação feita pelo governo Dilma em 2015, das mal chamadas “comunidades terapêuticas”, que na realidade são centros evangélicos privados onde, além de ocorrerem barbáries como as que já existiam nos manicômios, o “tratamento” não é baseado em nenhum tipo de princípio científico, mas sim na doutrinação religiosa dos internos. São verdadeiros centros de arrebanhamento de fiéis, com direito à tortura física e psicológica, financiados pelo Estado e de propriedade dos empresários da fé. O governo Temer aumentou em 150% o repasse de verbas públicas e quadruplicou as vagas para essas instituições bárbaras e muito lucrativas para as grandes igrejas evangélicas que as detém.

A resolução do governo Bolsonaro tem como uma das medidas transformar um dos dogmas dessas comunidades “terapêuticas” na forma de tratamento oficial adotada pelo SUS: a forma de abordar a dependência química deixa de ser a política de redução de danos, amplamente embasada em pesquisas e investigações científicas, e passa a ser a abstinência pregada pelos líderes religiosos, que, além de contar com eficácia duvidosa, é uma verdadeira forma de tortura, de “punição” para os pacientes.

Outro ataque inaceitável aos direitos dos pacientes é a criação de uma nova modalidade de CAPS AD (Álcool e Drogas, que é especializado no atendimento de dependentes químicos): por trás de uma suposta ampliação do atendimento, com unidades de atendimento de urgência e que funcionem 24h (os CAPS em geral só funcionam durante o dia), o que na prática facilita a internação compulsória de quem seja rotulado como usuário, abrindo precedentes para todo tipo de violação dos direitos – tanto dos dependentes como dos que possam ser convenientemente rotulados sob essa categoria para justificar sua internação involuntária. Não à toa, a resolução diz que essas unidades serão abertas prioritariamente em regiões de “cracolândias”. Basta ver o massacre que Doria fez na “cracolândia” em São Paulo para ver que essa medida higienista visa “varrer” os usuários desses locais na base de uma brutal repressão, e em nenhuma hipótese “tratá-los”.

A nova orientação ainda volta a colocar os hospitais psiquiátricos no centro da atenção psicossocial, inclusive com a abertura de leitos infanto-juvenis, apontando não apenas para um imenso fortalecimento da lógica de internação generalizada e prolongada, com isolamento dos pacientes, mas também para a mais recente tendência à patologização e medicalização indiscriminada de crianças e adolescentes, que vem sendo muito lucrativa para os fornecedores de drogas que “tratam” a hoje popularizada “doenças da moda” (cujo diagnóstico controverso foi estabelecido, como tantos outros, às custas de muita propaganda paga por laboratórios bilionários), o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade).

A orientação é clara: CAPS e outros equipamentos da RAPS que visem combater a lógica da institucionalização e do isolamento serão cada vez mais restritos, dando lugar a leitos de internação em instituições com a lógica do isolamento prolongado, fortalecendo inclusive a prática de todo tipo de barbárie – particularmente se essas internações se derem por meio de “comunidades terapêuticas” das igrejas evangélicas, o que podemos dar por certo considerando que são grandes aliadas de Bolsonaro e terão imenso lucro ao abocanhar esse “mercado” sob uma suposta argumentação de “insuficiência do Estado para atender a demanda”. Essas instituições, além de tudo, punem e discriminam orientações sexuais e comportamentos que estejam em contraposição a seus dogmas (vide as “terapias de conversão” hoje legalizadas em países como EUA, e as denúncias feitas pelas fiscalizações que linkamos acima).

É fundamental que existam espaços seguros, acolhedores e capazes de receber pessoas que necessitem de internação em condições extremas, que sejam radicalmente distintas do modelo hoje vigente, e em particular das instituições religiosas cada vez mais fortalecidas e que tendem a se expandir no governo de Bolsonaro.

Por fim, uma das mais comentadas medidas é a liberação e incentivo da compra de aparelhos de Eletro-Convulso Terapia (ECT), popularmente conhecidos como de eletrochoque, para o SUS. Associados no imaginário de quase todos às práticas de tortura recorrentes nos manicômios e hospitais psiquiátricos, hoje o tratamento com esses aparelhos é defendido por uma vasta parcela da comunidade médica, que se respalda – como no caso dos psicofármacos – em pesquisas que mostram a “eficácia” desse tipo de prática. Tais pesquisas, sobre cujo mérito não nos deteremos aqui, supostamente indicam índices de melhora muito superiores a outros tipos de tratamento, como antidepressivos. A indicação seria, supostamente, reservada a casos de extrema gravidade, em que os tratamentos “convencionais” não tenham surtido efeito. A aplicação é feita sem dor, com o uso de anestesia e relaxante muscular.

Há muitos aspectos a serem debatidos em relação a esse ponto da nota. Em primeiro lugar, tal medida de incentivo ao uso do eletrochoque não pode ser vista de forma dissociada do restante da orientação para saúde mental e da lógica que a embasa, e nem tampouco do restante das medidas do governo e do sentido ideológico que aponta. Em um governo de extrema-direita, que procura não apenas criminalizar qualquer tipo de divergência política e incitar seu massacre, exaltando torturadores e o regime militar, mas também disseminar o ódio contra LGBTs, negros e mulheres, a nova orientação para a saúde mental tem um sentido global claro: aprofundar cada vez mais o papel de repressão e controle social da psiquiatria. Longe de ser uma “novidade” do governo Bolsonaro, a história da psiquiatria em geral está intimamente associada à repressão política, como ocorreu desde os EUA macarthista à URSS sob o stalinismo.

Nesse sentido, seria no mínimo uma ingenuidade acreditar que o retorno à lógica manicomial, acompanhado pela aquisição de centenas ou milhares de equipamentos de eletrochoque – também nas “comunidades terapêuticas” das igrejas – pode ser visto apenas como um debate “técnico” ou “médico”. Se os remédios psiquiátricos já cumprem tão amplamente, nas mãos de médicos comprometidos com o uso de seu ofício como forma de controle social, o papel de arma ideológica, os aparelhos de eletrochoque certamente se prestarão a esse papel em muitos e muitos casos.

Contudo, mesmo se pudéssemos abstrair toda a realidade em que vivemos e considerar em termos “técnicos” a eficácia do tratamento de ECT em casos psiquiátricos, temos que remeter ao modelo biomédico do qual este faz parte. Sob a lógica da medicina do capital – e suas evidências ideologicamente enviesadas – as doenças psíquicas são fruto de desequilíbrios bioquímicos. Caberia então tratá-las com intervenções nesse patamar, que vão dos remédios ao ECT. Isso, por si só, é uma abordagem que desconsidera os fatores fundamentais ligados às doenças psíquicas, que não à toa vem ganhando cada ano mais o contorno de grandes epidemias sociais, chegando ao ponto do suicídio ser uma das principais causas de morte entre jovens no Brasil e no mundo.

Ainda assim, é necessário dizer mais sobre o ECT: entre seus efeitos colaterais mais comuns estão a perda de memória, que pode ser temporária ou pode ter longas durações; existe chance de morte causada por AVC ou infarto, como comprovam os “termos de responsabilidade” que os pacientes desses tratamentos devem assinar obrigatoriamente mesmo em países desenvolvidos:

O termo, a ser assinado pelo paciente isentando a instituição de responsabilidades, inclui como efeitos "incomuns" a volta da doença uma vez que o tratamento tenha sido feito, e como "raros" deslocamento de juntas, fratura de ossos, ferimentos nos dentes e boca, ataques cardíacos, derrames cerebrais e morte.

E, acima de tudo, há um fator fundamental a se considerar: não existe nenhuma hipótese minimamente comprovada sobre o porquê do tratamento com base em convulsões demonstrar qualquer resultado “positivo”. Isso mesmo: a “ciência” médica é, nesse caso, um completo empirismo, um “chute” que dizem que funcionou. É como se fazia nos velhos tempos com a televisão que não funcionava, e aí se dava uns tapas nela para que “pegasse”. Às vezes dava certo. É mais ou menos isso que fazem com seu cérebro: dizem que ele não está funcionando bem e, por meio de convulsões induzidas a partir de uma corrente elétrica que é ligada nas suas têmporas, vão ver se ele pode “pegar”. O melhor argumento que eles tem é que geralmente alguma coisa ali funciona. Mas o que? Os sintomas de depressão severa ou catatonia muitas vezes melhoram; temporariamente. E aí você precisa voltar a aplicar de novo. Ou, às vezes, ajuda os remédios a fazerem efeito. Estes também, apesar de existir uma hipótese, não se sabe ao certo como ou porque “funcionam”.

Infelizmente, o fato de contarmos com uma medicina tão absolutamente rudimentar (não entraremos aqui em um debate profundo e necessário sobre o modelo biomédico da mente em contraposição a outros que existem e têm fundamentos sólidos, como o psicanalítico, por exemplo), tem a ver com o capitalismo e o fato de que ele direciona todos os nossos esforços, todo o trabalho intelectual e as infinitas possibilidades que temos de descobrir novas possibilidades, para o beco estreito e sem saída do lucro.

Isso não se aplica somente à psiquiatria, mas, se quisermos um exemplo ainda mais gritante, podemos pensar na oncologia: um ramo da medicina que se fundamenta ainda hoje em “tratamentos” como a quimioterapia (extremamente cara, potencialmente letal e que arruína a qualidade de vida dos pacientes, e com eficácia muito aquém do prometido), e cujos ricos detentores utilizam todos seus recursos para impedir o desenvolvimento, a divulgação e a implementação de outros recursos – muitos dos quais já disponíveis.

É claro que, se há hoje esses recursos disponíveis, como a quimioterapia, a radioterapia, os psicofármacos e o ECT, eles deveriam ser uma escolha para todos. Que cada um tenha acesso a seu uso e as informações necessárias para avaliar se quer usá-los ou não com base em um conhecimento autêntico. Mas hoje o que temos é uma medicina onde o médico – e não outros profissionais da saúde, e muito menos os pacientes – são detentores incontestáveis de todas as resoluções. Eles decidem o tratamento, quando, como e porquê. Qualquer tratamento, como o ECT ou outros, deveria ser submetido a um amplo debate envolvendo todos os interessados, e não ser restrito a uma cúpula autocrática.

Para reverter todos os ataques de Bolsonaro à saúde, e, mais do que isso, podermos pensar em um modelo de medicina radicalmente distinto, precisamos em primeiro lugar nos organizar politicamente, para podermos tomar em nossas mãos os instrumentos que são fruto do nosso trabalho coletivo e decidirmos a serviço de que queremos colocá-los. Isso só será possível acabando com a propriedade privada, passando para o controle dos trabalhadores e da população a indústria de medicamentos, os hospitais e a indústria de equipamentos médicos.




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