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ONDE ESTÁ SANTIAGO MALDONADO? | Santiago Maldonado: do discurso da ordem à desaparição forçada

Os provérbios do discurso governamental que impulsionam os feitos das forças de segurança. A tentativa de despolitizar e policiar o caso para salvar o Estado. Os meios do encobrimento e o encobrimento dos meios.

segunda-feira 11 de setembro de 2017 | Edição do dia

Tradução de André Arruda

As últimas horas foram reveladoras a respeito das responsabilidades estatais pelo desaparecimento forçado de Santiago Maldonado. O círculo se fecha cada vez mais ao redor da Gendarmería [guarda militar]. Rendidos diante da evidência dos fatos, os porta-vozes do oficialismo adiantaram uma nova operação de encobrimento: apontar somente um grupo "isolado" de guardas e se isentar das responsabilidades intelectuais e políticas.

Em uma nota que foi central na capa do diário La Nación deste sábado, 9 de setembro, se afirmava: "A hipótese de que Maldonado foi ferido ou golpeado e abandonado no rio apaga as qualificações de desaparição forçada, a hipótese principal do arquivo. ’Já não se trataria mais de uma detenção ilegal seguida de ocultamento por parte das forças de segurança, mas de um possível homicídio e abandono de cadáver. Tudo dependerá da explicação do ocorrido’", foi o que afirmaram as fontes judiciais de Esquel à cronista do diário Loreley Gaffoglio.

Em uma entrevista no programa Diario del Futuro transmitido pela FM La Patriada, Hernán Iglesias Illa especulou que "o pior que pode ter acontecido é que algum guarda avulso o tenha agarrado sem saber que estava o ferindo gravemente". Este funcionário ocupa nada mais, nada menos, que o cargo de Comunicação Estratégica da Chefia de Gabinete.

Nos próximos dias se saberá se a hipótese despolitizante que pretende policiar o caso para isentar o Estado de suas responsabilidades irá se impor ou somente agudizar a crise.

Alguns dias antes, em uma coluna para o canal de notícias La Nación+, o editorialista Carlos Pagni informou sobre uma eventual guerra entre as diferentes forças de segurança. A Polícia Federal teria intenções de "plantar" um óbito na Gendarmería como uma retribuição de favores pela investigação que os militares confeccionaram a respeito do falecimento do fiscal Alberto Nisman. O informe teria demolido a investigação feita pela própria Federal. Assim estão dialogando os ramos distintos do Estado sob o Governo de "unidade dos argentinos".

Nesse contexto, e como forma de questionamento à hipótese de desaparição forçada de Santiago, o jornalista pergunta: "Quando foi que estes guardas se transformaram numa máfia que atua de maneira clandestina para ’sumir’ com um cara?" Isto seria duvidoso porque os atos foram realizados no marco da existência de uma ordem legal do juiz Guido Otranto. Além disso, para que houvesse a desaparição forçada teria de haver cumplicidade, por exemplo, dos motoristas que conduziam a caminhonete ou o Unimog e que se somaram ao "encobrimento", assim como um número indeterminado de pessoas que teriam de ter participado da operação de conjunto. Esta composição do relato colocaria em dúvida a figura que encobre o caso.

O interrogador é contraditoriamente sugestivo, não porque desafia a hipótese da desaparição forçada, mas porque, analisando todo o contexto, a reforça.

As palavras e as coisas

Todo governo que constrói raivosamente um inimigo interno em função de suas orientações ou planos econômico-políticos dá o primeiro passo para a transformação das forças de segurança do Estado em potenciais assassinos com credenciais de impunidade ou em uma máfia clandestina com permissão para matar.

Um caso emblemático da história recente foi o assassinato de Maximiliano Kosteki e Darío Santillán em junho de 2002 no Massacre da Avellaneda. A demonização dos piqueteiros estimulada intensamente pelos mais altos cargos do Governo de Eduardo Duhalde (Jorge Matzkin, ministro de Interiores; Juan José Álvarez, ministro da Justiça, Segurança e Direitos Humanos ou Aníbal Fernández, Secretário Geral da Presidência) semeou o terreno para a obra sinistra levada adiante pelo braço operativo de Alfredo Fanchiotti e seu bando de assassinos. O sempre recomendável documentário "A crise causou duas mortes novas" de Patricio Escobar e Damián Finvarb mostra a narrativa do Estado sob a voz colérica dos protagonistas daqueles dias sofridos. Como é característico em casos dessa natureza, a cumplicidade midiática foi essencial: o Clarín o transformou em uma fratura fatal da antologia anti-jornalística.

Outro caso, com características distintas porém similar em sua lógica interna, foi o assassinato de Mariano Ferreyra pelas mãos de uma patota da mais degenerada burocracia sindical. Não é mera casualidade que esta polícia política interna do movimento operário tenha cometido o crime (com zona liberada) cinco dias depois de um ato massivo no estádio do River Plate onde sentiu-se o mais pleno respaldo estatal e governamental. Como casta para-estatal que atua como "sociedade civil" quando busca conter o mal-estar e como Estado quando as situações se tornam mais agudas e sentem que atravessam um momento de perigo, tentou resolver a sua maneira um movimento que questionava sua autoridade.

Desde que assumiu o governo, Mauricio Macri vem construindo um discurso de "partido da ordem" que demoniza toda manifestação de protesto, combinado com toques negacionistas e uma reivindicação incondicional das forças de segurança.

O discurso, tão tradicional do Cambiemos, foi inaugurado com o "acabou a vida fácil dos direitos humanos" e dos funcionários que tiveram dúvidas sobre o genocídio, questionando o número de desaparecidos. Continuou demonizando qualquer forma de protesto (desde os trabalhadores e trabalhadoras da PepsiCo "manejados" pela extrema esquerda até os movimentos sociais que procuravam instalar um "clima destituinte"). As autoridades chegaram a enviar instruções politizadas para as polícias sobre supostas "semanas de agitação" no intuito de deixá-los alertas com os revoltados que estavam perseguindo por todas as partes. Isto provocou um paradoxo: o Governo que exige que não se politize a sua gestão, a educação ou os direitos humanos; acaba por politizar as forças de segurança no pior sentido do termo, contra fantasmas e inimigos da mídia. Tudo combinado com a liberação do uso dos serviços de inteligência para múltiplas operações como a que se viu na última concentração na Plaza de Mayo em prol de Santiago Maldonado.

Do clima de "vale tudo" que cerca as forças de segurança para as repressões selvagens e os assassinatos é preciso somente um passo.

No caso das comunidades mapuches que lutaram contra os grandes proprietários de terra do sul, a demonização incluiu qualificá-los de "terroristas" com treinamento kurdo ou pelas FARC colombianas com financiamento estrangeiro. Este discurso que pode provocar risos aos progressistas pensantes, atua incitando as pulsões punitivas dos membros das forças de segurança que, para além disso, atuam em equipe com um grupo de mercenários sob as ordens dos latifundiários. Inclusive, há a denúncia de que a Gendarmería possui uma base logística em uma estância de Benetton em Leleque.

A ministra Patricia Bullrich enfatizou (mesmo depois da desaparição de Maldonado) que não iria lançar nenhum guarda pela janela e que ela "põe a mão no fogo pela Gendarmería", porque necessita dela para as transformações impulsionadas pelo Governo (a reforma trabalhista? o ajuste de choque para o qual se prepara caso as condições políticas permitam?). Para fechar com chave de ouro, Bullrich colocou um advogado de genocidas, Pablo Noceti, na chefia do Ministério da Segurança, da qual comandou a repressão e pela qual viajou antes a Chubut para agitar um discurso furioso contra as comunidades mapuche.

Quem protege os protetores?

A composição de conjunto de toda esta narrativa do Estado transforma qualquer grupo de efetivos em um potencial "bando de homens armados a serviço do capital" (na pouco acadêmica porém extraordinariamente precisa definição de Engels sobre o Estado). Em nenhum outro lugar além da Patagônia neste momento a aparição e a ausência do Estado se coincidem tanto. Por isso não foi necessária tanta ciência para chegar a conclusão da responsabilidade da Gendarmería e sim muita fumaça para tapar os fatos.

Grande parte da filosofia política ocidental sobre as condições "legais" da exploração ou da opressão, surgiu com Platão, há mais de 2400 anos: quem protege os protetores? Ou quem nos protegerá dos protetores? A pergunta não teve uma resposta válida mas tem um momento muito marcante (pelo momento presente) em que o filósofo grego garante que eles devem ser feitos para acreditar em uma "mentira piedosa": que são melhores do que aqueles que servem e devem vigiar e proteger os inferiores.

O mar não está para ingenuidades. O Estado deve assumir sua responsabilidade. Também o grosso dos grandes meios de comunicação que durante esta semana foram mais goebbelsianos do que Goebbels e difundiram durante as 24 horas do dia (e da noite também) todas as variantes quiméricas e insólitas para ocultar a face horrível, o lado mais escuro da lua estatal. Também possuem responsabilidade moral por esta atuação diante da desaparição forçada de Santiago Maldonado. Porque, como afirmou Valentín Voloshinov, a palavra é o terreno da luta de classes e o "dizer" tem um caráter cruzado pelos interesses sociais. O mar de palavras endiabradas que circulam vertiginosamente por estas semanas deixou em evidência o significado destes muitos interesses cruzados.




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