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LITERATURA | S. Bernardo de Graciliano Ramos

domingo 25 de setembro de 2016 | Edição do dia

S. Bernardo (1934) é o segundo romance de Graciliano Ramos, a história gira em torno da vida de Paulo Honório, na verdade o livro trata-se de uma “autobiografia” feita pelo dono de S. Bernardo [1].

A principio ele pensou em contar com colaboração de seus amigos na composição do livro. Padre Silvestre “com a parte moral e as citações latinas”, João Nogueira “pontuação, a ortografia e a sintaxe”, Arquimedes “a composição tipográfica” e Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, que era redator e diretor do Cruzeiro para a composição literária. O próprio Paulo Honório além de dar o direcionamento, “introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa”.

O plano não saiu como o esperado, eles não se entenderam e Paulo escreveu o livro sozinho, com toda sua limitação na linguagem e forma de escrita, escrevendo muito mais como se fala, sem os floreios que o redator do Cruzeiro fazia questão.

Como, então, se apresenta Paulo Honório? Ele é um sujeito que pesa oitenta e nove quilos, perto dos cinquenta anos de idade, de origem pobre, nem chegou a conhecer os pais, foi criado pela velha doceira negra – Margarida – na fazendo de S. Bernardo. Até os dezoito anos, trabalhou de “braço alugado”, profissão profundamente degradante naquele contexto econômico social, gastando “muita enxada ganhando cinco tostões por doze horas de serviço”.

Seu primeiro ato digno de nota, segundo ele próprio, foi quando no calor de sua juventude, “Numa sentinela, que acabou em furdunço, abrecouquei a Germana, cabritinha sarará danadamente assanhada, e arrochei-lhe um beliscão retorcido na popa da bunda. Ela ficou-se mijando de gosto. Depois botou os quartos de banda e enxeriu-se com o João Fagundes, um que mudou o nome para furtar cavalos. O resultado foi eu arrumar uns cocorotes na Germana e esfaquear João Fagundes”. Resultado, foi preso, levou surra de cipó de boi, e passou “três anos, nove meses e quinze dias na cadeia”. Como única vantagem disso aprendeu a ler, numa bíblia miúda.

Quando saiu tinha um objetivo de vida, pensava em ganhar dinheiro. Tirou o título de eleitor, e procurou empréstimo com seu Pereira, agiota e chefe político, que lhe emprestou cem mil-réis com juros de cinco por cento ao mês. Pagou os cem mil-réis e conseguiu outro de duzentos com juros melhores dessa vez, três e meio por cento. Trabalhou duro “sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operações embrulhadíssimas” passando sede e fome, brigando com gente que fala aos berros e fazendo transações comerciais com armas engatilhadas.

Depois de razoavelmente estabilizado financeiramente, resolveu estabelecer-se no seu lugar de origem no município de Viçosa, Alagoas, onde planejava adquirir a propriedade S. Bernardo. Através de uma trama bem elaborada, fez com que Luís Padilha, atual dono da propriedade, ficasse lhe devendo dinheiro, Vinte contos de réis.

Terminado o prazo de vencimento do empréstimo, era hora de Paulo Honório ir buscar o que realmente almejava – S. Bernardo. Padilha não tinha o dinheiro para liquidar o empréstimo, como Paulo bem sabia. Chegado o momento da negociação Padilha pediu oitenta contos pela propriedade, Paulo ofereceu trinta, depois de um puxa de cá, puxa de lá, acabou ficando acertado os preços de quarenta e dois contos a propriedade e oito uma casa que Paulo tinha na cidade. Depois de toda a barganha, tirando a dívida, os jutos e o preço da casa, Paulo entregou a Padilha sete contos quinhentos e cinquenta mil-réis, sem remorso, afinal foi uma pechincha.

Ter conseguido S. Bernardo era só um primeiro passo, seria preciso mantê-la e fazê-la prosperar, e isso tinha custos, inimizade de vizinhos, exploração extrema dos trabalhadores. No segundo ano como proprietário, Paulo passava dificuldades, tinha plantado mamona e algodão, mas a safra tinha sido ruim, os preços baixos, viveu meses de aperto. Além disso andava aflito com medo dos inimigos, especialmente seu vizinho Mendonça, com quem tinha uma questão por terra. Acabou que no domingo, dia da eleição “Mendonça recebeu um tiro na costela mindinha e bateu as botas ali mesmo na estrada”, na hora do crime Paulo “estava na cidade, conversando com o vigário a respeito da igreja que pretendia levantar em S. Bernardo”. Não é muito difícil presumir o que aconteceu…

Entre o assassinato de Mendonça, e o momento atual da narrativa se passaram cinco anos. Nesse tempo S. Bernardo deu prejuízo, deu lucro, foi se mantendo. Depois da morte do vizinho, Paulo derrubou a cerca e levou-a além de onde deveria, houve reclamações, mas sem jeito de mudança. S. Bernardo passou por melhoramentos significativos – casas, igreja, açude, o enorme algodoal – até uma estrada de rodagem ligando a fazenda à cidade. Azevedo Gondim do Cruzeiro escreveu artigos enaltecendo a iniciativa, Costa e Brito da Gazeta também, no entanto para isso mordeu cem mil-réis.

Certo dia na volta da labuta encontra no alpendre de sua casa João Nogueira, Padilha e Azevedo Gondim elogiando umas pernas e uns peitos, de uma moça recém chegada a cidade – Madalena – uma professora. Paulo Honório estava com vontade de abrir uma escola, João Nogueira sugeriu Madalena para vaga de professora. Quem acabou ficando com a posição de professor foi Padilha, ex dono da Fazenda, que depois que a havia perdido “manifestava ideias sanguinárias e pregava, cochichando, o extermínio dos burgueses”, Padre Silvestre também tinha ideias revolucionárias, pretendia “salvar o país por processos violentos”.

O fato de o livro ser todo construído a parir do ponto de vista de Paulo Honório, é interessante, para entender um pouco o funcionamento e a lógica de produção da fazenda, por exemplo, quando ele diz que sempre se perde os dias santos, sábados, domingos de trabalho, e em resultado de tanta folga que “essa cambada viver com a barriga tinindo”.

Numa tarde qualquer Paulo encontrou no “oitão da capela Luís Padilha discursando para Marciano e Casimiro Lopes: — Um roubo. É o que tem sido demonstrado categoricamente pelos filósofos e vem nos livros. Vejam: mais de uma légua de terra, casas, mata, açude, gado, tudo de um homem. Não está certo. […] Marciano [vaqueiro da fazenda] mulato esbodegado, regalou-se, entronchando-se todo e mostrando as gengivas banguelas: — O senhor tem razão, seu Padilha. Eu não entendo, sou bruto, mas perco o sono assuntando nisso. A gente se mata por causa dos outros”. Nisso Paulo Honório estoura em grito “— Trabalhando em quê? Em que é que você trabalha, parasita, preguiçoso, lambaio? [...] Atirei uma porção de desaforos aos dois, mandei que arrumassem a trouxa, fossem para a casa do diabo. […] — Em minha terra não, acabei já rouco. Puxem! [...] Peguem as suas burundangas e danem-se. Com um professor assim, estou bonito. Dou por visto o que este sem-vergonha ensina aos alunos”.

Acabou que nenhum dos dois foi realmente mandado embora, nesta noite reuniu Marciano e Padilha e berrou um comprido sermão para demonstrar que era ele, o patrão, que trabalhava para eles, os trabalhadores. Findou dizendo “— Por esta vez passa. Mas se me constar que vocês andam com saltos de pulga, chamo o delegado de polícia, que isto aqui não é a Rússia, estão ouvindo? E sumam-se”.

Nesse ponto da história Paulo sentia o desejo de “preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo”, tentava “fantasiar uma criatura alta, sadia, com trinta anos, cabelos pretos”, tentou pensar também nas mulheres das redondezas se alguma lhe parecia apropriada.

Em visita ao Juiz de Direito, dr. Magalhães, com objetivo duplo de conversar sobre um processo e também de avaliar Marcela, filha do Juiz. Paulo se depara “com uma senhora de preto, alta, velha, magra, outra senhora moça, loura e bonita”. As pessoas na sala estavam separadas em dois grupos, os homens separados das mulheres. As mulheres na ocasião falavam sobre um romance lido por D. Marcela. Os homens, por outro lado, falavam de política “— O senhor acredita nisso? perguntou João Nogueira [a Paulo Honório]. — Em quê? — Eleições, deputados, senadores”. Paulo retraiu-se um momento e respondeu: “— A gente se acostuma com o que vê. E eu, desde que me entendo, vejo eleitores e urnas. Às vezes suprimem os eleitores e as urnas: bastam livros. Mas é bom um cidadão pensar que tem influência no governo, embora não tenha nenhuma. Lá na fazenda o trabalhador mais desgraçado está convencido de que, se deixar a peroba, o serviço emperra. Eu cultivo a ilusão. E todos se interessam”.

Nessa ocasião Paulo observava a mocinha loura, de repente se deu conta que a estava querendo bem, e reparem que ela é o exato oposto da mulher que ele imaginava, era miudinha tinha aspecto de fraquinha.

Costa Brito, d’A Gazeta, que sempre fora apoiador do governo virou para o outro lado, os que votavam com o partido dominante mas não eram grande coisa não foram alvo imediato das críticas do Jornal, mas ele sempre cobrando para manifestar-se elogiando ou criticando um ou outro. Tentou angariar contribuição de Paulo, sem sucesso, a resposta dele telegrama foi “Inútil insistir. Fartíssimo”. Diante da recusa dos duzentos mil-réis, Costa Brito entrou numa campanha difamatória contra ele, com ataques claros e furiosos, chamando-o de assassino e mais. A solução foi ir lá, na capital, resolver isso, Paulo agarrou-lhe o braço, acabou dando-lhe um monte de chicotadas. Depois do furdunço só conseguir embarcar de volta no dia seguinte, depois de um enorme sermão do secretário do interior em defesa da liberdade de expressão, e etc.

Na volta de trem encontrou-se com aquela senhora que tinha visto na casa do juiz, tempos atrás. Vieram conversando sobre coisas variadas, mas a atenção de Paulo estava concentrada em saber mais sobre a sobrinha de D. Gloria – Madalena. Na estação de trem D. Glória apresentou-o a sobrinha, que tinha ido recebê-la.

Paulo Honório para assuntar sobre Madalena, falou com Azevedo Gondim que procurasse saber dela se teria interesse em trabalhar na Escola de S. Bernardo, dizendo que andava aborrecido com Padilha, já que ele estava se metendo a querer botar socialismo na fazenda. Nisso queria descobrir se era moça de bons costumes e se aproximar dela.

Madalena não se decidia, sob o pretexto de receber uma resposta frequentava a casa onde elas viviam. Quando Madalena finalmente recusa a oferta de emprego, Paulo faz a proposta que realmente intencionava “— O que vou dizer é difícil. Deve compreender... Enfim, para não estarmos com prólogos, arreio a trouxa e falo com o coração na mão. […] — Está aí. Resolvi escolher uma companheira. E como a senhora me quadra...”, enfim foi um pedido de casamento, ela coloca as dificuldades e então pede um tempo para pensar.

Na semana seguinte, “Azevedo Gondim entrou sem cerimônia e atirou uma inconveniência que não tinha tamanho: — Ah! O senhor está aqui? Eu vinha dar os parabéns a d. Madalena. Foi bom encontrá-lo. Minhas felicitações”, todos já comentavam, era como se não fosse segredo, era como se ela já tivesse aceitado, mas ainda não.

Paulo para pressioná-la argumenta “Está vendo? Por aí já falam. É só em que falam, pelo que disse o Gondim”. A resposto então ao pedido é “— Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver no campo, acordar cedo, cuidar de um jardim. Há lá um jardim, não? Mas por que não espera mais um pouco? Para ser franca, não sinto amor”. Homens como Paulo não se dão ao luxo de amor, pragmático como era, comunicou de imediato a D. Gloria que ele e sobrinha dela dentro de uma semana casariam.

Casaram-se na capela de S. Bernardo, era fim de janeiro, os paus-d’arco, floridos, salpicavam a mata de pontos amarelos. Dois dias depois do casamento Madalena já largava-se pelo campo, conversando com todos, atenta aos problemas das pessoas da fazendo, preocupara com as privações da família de Mestre Caetano, que estava velho e doente, impossibilitado de trabalhar.

Em nenhum momento o casamento entre Paulo e Madalena, foi tranquilo, desde o começo brigavam, a primeira briga digna de nota, foi quando ela perguntou quanto ganhava Seu Ribeiro – o guarda-livros de S. Bernardo – achando pouco duzentos mil-réis por mês para a função dele, o que zangou profundamente Paulo. Uma semana de casados e já tinham brigado, devido as diferenças de visão no modo de funcionamento do mundo.

Eles não se entendiam, eles não se conheciam, um casal assim não poderia dar certo. O bom coração dela era incompatível com a forma que ele tocava a fazenda. O modo como ele tratava Marciano, por exemplo, a desgostava profundamente. A Paulo desgostava a compaixão que ela tinha por aquele povo.

Com um ano de casamento a coisa começou a desandar de maneira mais aguda, uma espécie de desconfiança tomou conta de Paulo, um ciume que crescia e crescia dentro dele. Além do ciume carnal, sentia ciumes das afinidades intelectuais que ela mantinha com os homens mais instruídos ao redor, especialmente Padilha. A relação precária entre desconhecidos foi-se desfazendo, e se tornando cada vez mais difícil.

A história teve um desfecho quando Paulo encontrou uma folha de carta, certamente dirigida a homem, no terreiro em frente a janela do escritório. Ele confrontou Madalena pela última vez, a conversa foi mais serena do que se poderia esperar. Ela havia deixado uma carta sobre a mesa do escritório, e aquela página a completaria, ele que fosse ver para quem era dirigida e de que se tratava.

Ela se foi e ele atordoado ficou e acabou dormindo na igreja onde tiveram essa discussão. Ela tomou a decisão final, tirou a própria vida, não aguentava aquela vida, não aguentava mais Paulo. Ela foi encontrada “estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da boca”. A carta era destinada a Paulo o conteúdo em detalhes não fica claro no livro.

Depois de tudo isso havia chegado o boato de que a a revolução havia rebentado pro Sul. “Padilha e padre Silvestre incorporaram-se às tropas revolucionárias e conseguiram galões”, Padinha ainda conseguir seduzir “uns dez ou doze caboclos bestas, que haviam entrado com ele no exército revolucionário”.

Dois anos após a morte de Madalena, Paulo começou a empreitada de escrever esta obra, afim de expurgar de alguma forma suas amarguras. Em sua reflexão conclui que “nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins”.

Essa é a autobiografia de Paulo Honório, a autobiografia de um grande fazendeiro, que começou de baixo, e fez muita coisa para chegar onde chegou, uma vez tendo chegado reproduziu com toda a brutalidade o modo de produção, as custas do suor dos sues empregados.

S. Bernardo de Graciliano Ramos apresenta através da visão de Paulo Honório, aquele mundo sertanejo da grande propriedade, de grande exploração dos trabalhadores, de grande brutalidade e egoismo, também de grande vazio e solidão.

[1] Em relação ao título da obra (S. Bernardo), e também ao nome da Fazenda, a versão com o “S” abreviado é a grafia original usada na 1ª edição. A 88ª edição, usada como referência, volta a grafia




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