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SEMANÁRIO

Rumo a uma escalada bélica

Rafael Poch de Feliu

Imagem: O cerco de Sebastopol (Franz Roubaud)
Tradução: Noah Brandsch

Rumo a uma escalada bélica

Rafael Poch de Feliu

A fraqueza militar russa na primeira fase da guerra ucraniana determina uma maior pressão militar na segunda fase e encoraja o impulso ocidental geral para uma grande guerra.

O presente artigo foi originalmente publicado no blog pessoal do autor.

Estamos testemunhando na Ucrânia uma repetição da situação vivida na “guerra de inverno” da URSS contra a Finlândia, de novembro de 1939 a março de 1940. O fracasso da “blitzkrieg” [“guerra relâmpago”, nota da tradução] que os russos pareciam utilizar como o primeiro estágio de sua invasão na Ucrânia está tendo o claro efeito de encorajar o intervencionismo militar ocidental no conflito.

Precedente finlandês

Em vez do esperado colapso, confraternização e deserção maciça do exército ucraniano regular, da fuga do governo para a Ucrânia Ocidental diante da proximidade das tropas russas em Kiev e pouca resistência no Leste e Sul do país, Moscou encontrou outro quadro que o forçou a mudar seu plano e aumentar a pressão militar.

Como agora na Ucrânia, Moscou buscou distância daquela “guerra de inverno”. Leningrado, atual São Petersburgo, estava então a cerca de 40 quilômetros da fronteira finlandesa. A Finlândia, como a Polônia, tinha conseguido sair do Império Russo com a falência do czarismo e a posição da antiga capital imperial estava geograficamente muito comprometida e exposta à invasão. A guerra buscava expandir a zona de segurança, algo que os líderes russos agora mencionam sobre a Ucrânia e que há séculos tem sido uma das razões básicas para o expansionismo defensivo russo em um país de enormes espaços sem barreiras ou limites geográficos.

Também então as coisas deram errado – ou “como sempre”, de acordo com o ditado russo popularizado pelo ex-primeiro-ministro Viktor Chernomyrdin nos anos noventa – e, o que deveria ser uma “guerra curta e vitoriosa” contra um pequeno adversário, teve um enorme número de centenas de milhares de baixas russas. O ataque foi mal planejado, desconsiderando o cenário, o clima ou problemas logísticos básicos. Prisioneiros soviéticos reclamaram da falta de material e munição. Muitos anos depois, Nikita Khrushchev chamou essa derrota dos finlandeses de “perigosa”, precisamente porque, “a evidência de que a URSS era um gigante com pés de barro, encorajou nossos inimigos”, disse ele. Quinze meses após a assinatura da paz com a Finlândia, a Alemanha invadiu a URSS.

Sangrar o urso

Agora, os Estados Unidos, a OTAN e a União Europeia, que no início da campanha garantiram que não interviriam nela, estão se animando. Não são só os olhos e ouvidos tecnológicos do exército ucraniano que lhe permite atacar com precisão, limitar a superioridade aérea do adversário e matar seus generais, mas aumentam o fornecimento de armas com a intenção manifesta de sangrar o urso (Rússia) na armadilha em que ele mesmo se meteu.

São 2,5 milhões de dólares desde o início do conflito, apenas pelos Estados Unidos, além dos envios pré-invasão e o treinamento intenso do exército ucraniano e quadros do serviço secreto pela CIA que começou em 2015, imediatamente após a mudança de regime em Kiev.

Na Europa, o consenso é que “este conflito será vencido no campo de batalha”, nas palavras de Josep Borrell depois de anunciar outros 500 milhões de euros do Fundo Europeu de Apoio à Paz (FEAP) para fornecer mais armas aos ucranianos. A OTAN colocou mais 40 mil homens em seu flanco oriental, estabeleceu bases militares mais permanentes no Leste Europeu e forneceu mísseis ar-terra para derrubar aeronaves russas e mísseis contra navios russos no Mar Negro. Baterias antimísseis de fabricação russa S-300 chegaram da Eslováquia, que os russos dizem já ter destruído em Dniepropetrovsk (Dnipro). Os mais insensatos do clube europeu, ou seja, os poloneses, insistem em realizar uma intervenção militar terrestre na Ucrânia Ocidental, mesmo que seja sem a bandeira da OTAN. Washington não enviará tropas para a Ucrânia (os quadros da SAS britânica e os Deltas americanos estão lá “desde o início da guerra”, diz o correspondente do Le Figaro Georges Malbrunot), mas está disposto a apoiar os países da OTAN se algum deles se decidir para isso, declara o embaixador dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield.

Pressão da informação

Ao fomentar essa escalada, o papel do complexo de mídia é fundamental. Os crimes dos soldados que nas guerras do Ocidente são considerados exceções nos poucos casos em que são revelados, estão sendo considerados normas e devidamente amplificados, mesmo nos casos em que não há evidências independentes de sua veracidade. Infelizmente, alguns deles foram demonstrados e nos levam de volta a cenas conhecidas como as vividas na cidade chechênia de Shamashkí em abril de 1995.

“Todos os russos são agora nossos inimigos”, “Tanques para a ofensiva” é manchete do Frankfurter Allgemeine Zeitung, o principal diário da Alemanha. “Uma intervenção militar da OTAN não deve mais ser um tabu”, diz Die Welt. Pouco depois de um mês do início da invasão russa, a negociação desapareceu completamente do horizonte ocidental: “nosso objetivo é que a Rússia não vença esta guerra”, diz o chanceler Olaf Scholz. “É isso que está por trás de nossos carregamentos de armas, nossa ajuda financeira e humanitária, as sanções e o acolhimento de refugiados”, explica.

O presidente Biden, que pode ter no grande índice de desaprovação à sua pessoa em seu país e na inflação, que ele culpa “os russos”, um motivo político para a guerra externa, está sujeito a influências de diversos sentidos. Do Pentágono e da CIA é lhe aconselhado prudência, do complexo de mídia e o Departamento de Estado é convidado a se envolver mais. Em suas declarações, Biden já fala de um conflito de anos à frente “entre democracia e autocracia, liberdade e repressão” e escapa em um discurso a vontade de mudar o regime em Moscou, afirmando que Putin (“criminoso de guerra” e autor de “genocídio”) “não pode continuar a governar” lá. A maioria dos americanos apoia, segundo pesquisas, o estabelecimento de uma “zona de exclusão aérea” se a guerra persistir, apesar do fato de que os militares advertem que isso significa derrubar aviões russos e que os russos derrubam os seus próprios, bem como a necessidade de atacar defesas antiaéreas em território russo. Em seu editorial de 10 de abril, o The Observer defende uma intervenção militar direta na Ucrânia Ocidental, que os poloneses querem, fornecendo tanques e aeronaves e implantando forças navais no Mar Negro que impedem qualquer propósito de tomar Odessa. “Os riscos são óbvios, mas sua única alternativa é a carnificina sem fim. Se o Ocidente está falando sério sobre parar a guerra, medidas tão fortes podem ser a única maneira”.

Preparativos contra a China

Em Washington, o dilema “seja contra a Rússia ou contra a China” que criou tantas divisões no estabelecimento durante a presidência de Donald Trump foi definitivamente resolvido: contra ambos. “A melhor maneira de agir contra a China é derrotar a Rússia”, diz um conhecido analista local, expressando o novo consenso.

Em sua última reunião de ministros das Relações Exteriores, no dia 8, em Bruxelas, a OTAN indicou claramente os preparativos de guerra contra a China que se refletirão no anunciado “novo conceito estratégico” que deve ser aprovado na cúpula do próximo junho em Madri. Pela primeira vez em sua história, os ministros das Relações Exteriores da Coreia do Sul e do Japão participaram de uma conferência da OTAN desse nível em Bruxelas, além dos da Austrália e da Nova Zelândia. O Japão aderiu às sanções contra a Rússia e desfez em questão de dias todo o progresso na complicada relação bilateral com a Rússia trabalhosamente alcançada sob o mandato de Shinzo Abe. O Aukus (Austrália, Inglaterra e Estados Unidos) anunciou o desenvolvimento de novos mísseis hipersônicos para o cenário asiático. “As políticas coercitivas da China em nível global são um desafio sistêmico à segurança da OTAN”, disse o secretário-geral Jens Stoltenberg.

Os chineses tomam boas notas de tudo isso. “Os Estados Unidos sentem que a força de seus aliados no Pacífico Ocidental não é suficiente e quer envolver toda a OTAN em seu projeto indo-pacífico”, estima o jornal chinês Global Times.

Os resultados da primeira fase da invasão tão ambíguos para Moscou e tão desastrosos para a imagem internacional da Rússia no Ocidente, aumentaram a expectativa de um segundo desastre russo na “Batalha do Donbass” que agora é anunciada e na qual os russos esperam cercar e aniquilar em uma cajadada o maior e mais combativo corpo do exército ucraniano. Resta saber se as armas e recursos ocidentais, bem como os esforços ucranianos, conseguem reverter este propósito novamente.

Em Moscou, o revés da primeira fase gerou uma mistura de mau humor, descontentamento e arrogância entre os propagandistas da guerra que vão à TV. O endurecimento perturbador do discurso contra a Ucrânia, contra a nação ucraniana e contra os ucranianos em geral, é a consequência. Também a emigração: 100 mil jovens russos, em grande parte especialistas qualificados, deixaram o país em março e os números de abril devem ser semelhantes.

Podemos nos perguntar até onde essa loucura irá na Rússia, sem perder de vista essa insanidade muito mais geral que inequivocamente empurra o mundo para uma grande guerra.


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