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CINEMA | Rogério Sganzerla: Cinema, Abismo e Caos

Um pouco sobre o cineasta de uma época de loucuras.

Fábio NunesVale do Paraíba

terça-feira 5 de janeiro de 2016 | 00:00

Alô Brasil Precário da Fome, alô Quebrada, alô América do Sul, alô América do Sol e do Sal, meu objetivo aqui é comentar os filmes O Bandido da Luz Vermelha, A Mulher de Todos e Sem Essa, Aranha, do cineasta catarinense Rogério Sganzerla (1946-2004). Considerado um dos principais nomes do Cinema Marginal, movimento cinematográfico surgido entre os anos 1960 e 1970, marcado pelo experimentalismo, pelo grotesco e pelo deboche, Sganzerla é o cineasta de uma época de loucuras que fundiu a cuca da crítica conservadora e despertou a ira da censura e dos militares que estrangularam toda uma geração no final dos anos 1960 em nome da ordem e do desenvolvimento do capitalismo no Brasil e na América Latina.

O Bandido da Luz Vernelha (1968)
Ficção - Preto e Branco
Elenco: Paulo Villaça, Helena Ignez, Pagano Sobrinho, Luiz Linhares, Sônia Braga, Neville D´Almeida, Ítala Nandi, Sérgio Mamberti e outros.

Bem-Vindo ao universo tosco e lisérgico da margem no final violento da louca década de 1960. Estamos a um passo do Ato Institucional n 5, o AI-5, decreto que deu plenos poderes ao general Costa e Silva para prender, torturar e matar trabalhadores, militantes de esquerda, LGBT e artistas. Pau-de-arara e Chacrinha. Roberto Carlos e Roberto Marinho. O rei da Jovem Guarda canta e encanta empresários e torturadores românticos e assassinos. Domingo ensolarado e cheio de sangue. Cachorros atropelados. Tem gente morta. É o império da bolinha, da desordem e dos gangsteres. Da prostituição em massa, do tráfico de menores, do crime industrializado e do comércio automobilístico. Bem-vindo ao Brasil dos esquadrões da morte e das histórias em quadrinhos.

Sganzerla, influenciado pelo roteiro do filme El Dorado (1966), do diretor norte-americano Howard Hawks, filma em 1968 o seu primeiro longa-metragem intitulado O Bandido da Luz Vermelha, que inaugurou, ao lado de A Margem (1966) de Ozualdo Candeias, o Cinema Marginal, surgido na Boca do Lixo em São Paulo, onde se concentravam marginais, prostitutas e pequenas produtoras que realizavam produções de baixo orçamento e experimentalismo estético.

Baseado no mito criado pela mídia sensacionalista em torno de João Acácio Pereira, um assaltante de mansões que aterrorizou a burguesia paulistana na década de 1960, segundo Sganzerla, em um manifesto divulgado na estréia do filme, O Bandido da Luz Vermelha é um far-west sobre o III mundo. Um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia, chanchada e ficção científica. Num caldeirão antropofágico ele ferveu o Cidadão Kane do Orson Welles, histórias em quadrinhos, linguagem radiofônica, imprensa sensacionalista, a sinceridade do diretor italiano Roberto Rosselini, a violência do diretor Samuel Fuller, o ritmo anárquico de Buster Keaton e a brutal simplificação dos conflitos de Mann.

Rogério Sganzerla diz que aprendeu com Orson Welles a não separar a política do crime, com o cineasta francês Jean Luc Godard aprendeu a filmar tudo pela metade do preço, com Glauber Rocha, tomou conhecimento do cinema de guerrilha feito a base de planos gerais e com Samuel Fuller aprendeu como desmontar o cinema através da montagem. José Mojica Marins, o Zé do Caixão, cineasta do excesso e do crime, apontou para Sganzerla a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e das ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês lhe ensinaram a ser livre e ao mesmo tempo acadêmico. Com Murnau o diretor do Bandido aprendeu a amar o plano fixo acima de todos os travellings, com Luis Buñuel a poesia e a agitação, sem nunca esquecer Alfred Hitchcock, Serguei Eisenstein e Nicholas Ray.

O Terceiro Mundo vai explodir! Quem tiver de sapato não sobra, não pode sobrar, não pode sobrar! A solução do Brasil é o extermínio! Rogério queria realizar um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez revelasse acima de tudo as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Com o Bandido, sua intenção era produzir um painel sobre a sociedade delirante ameaçada por um criminoso solitário. Filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Uma reflexão sobre o Brasil onde a política e o crime identificam personagens da burguesia e da marginalidade. Personagens como o político corrupto e o delegado Cabeção sintetizam o mar de lama, violência e hipocrisia que tomou conta do Brasil no final dos anos 1960. Um cinema fora da lei em São Paulo cujo objetivo era um filme brasileiro liberador, esteticamente revolucionário onde o ponto de partida é a instabilidade do cinema, da sociedade, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso a câmera é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos e boçais. Sganzerla termina seu manifesto dizendo que no Brasil tudo é possível e por este motivo o filme pode explodir a qualquer momento.

A Mulher de Todos (1969)
Ficção - Preto e Branco
Elenco: Helena Ignez, Jô Soares, Stênio Garcia, Paulo Villaça, Antônio Pitanga, José Agrippino de Paula e outros.

Segundo longa-metragem do jovem diretor catarinense, A Mulher de Todos ou Um Fim de Semana na Ilha dos Prazeres, narra as aventuras eróticas de Angela Carne e Osso (Helena Ignez), uma femme fatale casada com o Dr. Plirtz (Jô Soares), um ex-oficial nazista e dono do truste das histórias em quadrinhos no Brasil. Será esse o marido nacional do século XXI? Do XVI ou do XXI? Quem quer Angela Carne e Osso a ultrapoderosa inimiga número 1 dos homens? Angela não é de nínguém. Você acredita em Deus? Deus existe? Desejo,vontade de delírio de uma vampira escandalosa. Já foi á Ilha dos Prazeres? Quer passar um final de semana na Ilha dos Prazeres Extremos no Arquipélago da Saudade? A Ilha dos Prazeres, Paradise Now, destino dos neuróticos, macartistas, disponíveis, devoradores, trogloditas, picaretas, pistoleiras, secretárias, empregadinhas, beatos, náufragos, ratos, peitudas, bundudas, chatas, piranhas, dedo-duros e recalcados de São Paulo.

Sganzerla, um diretor em liberdade, ligado as expressões mais autênticas e profundas da vanguarda artística, apresenta neste filme a burguesia nacional afundada num hedonismo sexual absolutamente patético e violento na Ilha dos Prazeres Fúteis. Cafona, erótico, visionário, subdesenvolvido por necessidade, agressivo, exasperado, com uma narrativa fragmentada e personagens diluídos, com referências à Indústria Cultural e à contracultura dos anos 1960, a Mulher de Todos fundiu a cuca da crítica conservadora e desobedeceu as leis do mercado e os bons costumes de um Brasil estrangulado por uma Ditadura Militar-Burguesa. Um exercício de liberdade quase total, uma forma surpreendente de narrativa, de personagens, de interpretação e montagem. Angela ou simplesmente a rainha dos boçais, tarados e suicidas é um dos personagens mais radicais da história do cinema, expressão dos movimentos de emancipação da mulher na segunda metade dos anos 1960. Angela-Helena Ignez é transgressão. Angela Carne e Osso é foda sem medo. A inimiga número 1 do patriarcalismo não ajoelha para rezar.

Sem Essa, Aranha (1970)
Ficção - Cor
Elenco: Jorge Loredo, Helena Ignez, Maria Gladys, Moreira da Silva, Luiz Gonzaga e outros.

Rapazes, porque vocês não fazem como todo mundo, vendem o mesmo carro três ou quatro vezes? Esta é a única saída para a crise. Planêtazinho vagabundo. O sistema solar é um lixo. Sub Planeta. Planêtazinho metido a besta. Está tudo errado! Há seis mil anos que está tudo errado. Seis mil anos de fome. Ele é insubstituível, nunca mais haverá alguém como o Aranha. Essa é a história de uma Aranha que se destrói em silêncio. Soldados e otários do Brasil. O que é o Brasil? O que é o brasileiro? Na mansão dos Aranha alguém grita de fome. Na mansão a burguesia nacional. Aranha, alto financista, banqueiro, político e testa-de-ferro internacional, do coração da favela para o resto do Brasil. O destino da humanidade é horripilante. Aranha crê no fim do mundo. Para o banqueiro nossa época é a pior das épocas. Uma mulher grita de fome.

Após o sucesso de bilheteria do Bandido e da Mulher de Todos, Sganzerla e o diretor Júlio Bressane criaram no Rio de Janeiro a produtora cinematográfica Belair, cujo objetivo era demolir o discurso acadêmico que engessa o cinema e produzir filmes bons, baratos e bonitos. De janeiro a junho de 1970 realizaram os filmes Copacabana Mon Amour; Betty Bomba A Exibicionista; Carnaval na Lama; A Família do Barulho; Cuidado Madame; Barão Olavo, o Terrível e Sem Essa, Aranha. A Belair era audaciosa apesar da repressão, cinema piração, crítica social pesada, deboche pesado numa época que não dava pé para quem discordava, mas eles tiravam um sarro e mandavam as convenções para a casa do chapéu. Cinema-invenção! Os militares não gostaram da anarquia libertária destas produções e os cineastas foram para Londres. O exílio foi o caminho menos terrível paras os dois cineastas marginais no país do general Médici.

Rogério Sganzerla afirmou que o cinema brasileiro está fadado a ser criativo e por isso ele é sabotado. Sem Essa, Aranha é experimentalismo radical, cinema agressivo, imoral na forma e coerente nas ideias. Exasperação numa época de assassinatos e desaparecidos. Os personagens, alucinados, correm de um lado para o outro. Metáfora do Brasil da fome, do desespero e do horror pintado com cores loucas num painel avacalhado. O deboche. O Brasil está fora do mapa em Sem Essa, Aranha, uma produção independente e corajosa, grande demais para a crítica pequeno-burguesa, violenta demais para os acadêmicos, suja demais para os padres de plantão, um tipo de cinema que berra, ofende e tira um sarro. O pai do Bandido, da Mulher de Todos e do Aranha fez cinema popular e sofisticado no país dos fantasmas esfomeados, subiu o morro de peito aberto e cortou o asfalto com perigosa imaginação. Sganzerla morreu em 2004 em decorrência de um tumor no cérebro, mas, apesar de morto, continua mais vivo que muitos cineastas idiotas e mercenários que só sabem perfumar merda e encher o saco seus sucessos imbecis. Salve Sganzerla!


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