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LITERATURA | Realismo e Literatura Periférica

Enquanto a vidinha literária de classe média segue tranqüila e enfadonha, uma quantidade incrível de saraus e obras literárias brotam diretamente (e furiosamente) das periferias do Brasil.

sábado 28 de março de 2015 | 00:00

“A periferia se arma e apavora a elite central (...) a munição é o livro e os disparos vêm das letras”. Estes trechinhos extraídos do manifesto do Sarau Poesia na Brasa já são suficientes para que a pequena burguesia assustada refugie-se dentro de livros seguros, geralmente protegidos nas luxuosas livrarias dos shoppings. Mas enquanto a vidinha literária de classe média segue tranqüila e enfadonha, uma quantidade incrível de saraus e obras literárias brotam diretamente (e furiosamente) das periferias do Brasil. O referido Sarau Poesia na Brasa (que já vem rolando desde 2008), em São Paulo, promoveu na sua edição do dia 14 de março a difusão de livros de autores que não estão nos catálogos das grandes editoras (logo mais os organizadores deverão anunciar a próxima edição do evento). O fato é que há pouco mais de uma década, uma nova literatura volta a desafiar o entendimento tradicional que se faz do realismo. Visto que o conservadorismo estético e o idealismo literário são elementos que indevidamente fazem morada na cachola de alguns marxistas, é preciso que saibamos pontuar não apenas o que é (e o que pode ser) o realismo, mas situar o debate literário de acordo com as condições técnicas de produção.

Entre o retrato e o cinismo, no limiar entre a denúncia social e o louvor pelo classicismo maleta, as características que compõem o realismo tornam-se uma primeira tentação para tentar erigir uma possível “Estética marxista”. Nada mais compreensível, já que Marx e Engels não desenvolveram sistematicamente uma Estética “oficial” do materialismo dialético. Mas que diabos seria o realismo após um século de convulsões artísticas e literárias legadas pelas vanguardas? Qual seria a sua eficácia no reino da cultura digital? Apreender a realidade social de acordo com as nossas capacidades cognitivas é algo que para os escritores da periferia não tem relações com o humanismo burguês e mesmo com o realismo oitocentista (ainda que algum autor deste período possa ser uma referência indireta para tais escritores). As brutalidades do cotidiano, a gíria e a fala coloquial na literatura periférica revelam um realismo que não se apresenta nem como narrativa monolítica sobre o real e nem como ideologia que vem a priori, mas enquanto produto direto do contexto técnico e mental das comunidades periféricas. Sendo assim a literatura periférica ou marginal não pode ter as suas particularidades estéticas entendidas a partir de uma análise idealista. O que necessitamos é de uma análise materialista da produção literária.

Já se foi o tempo em que, movido pela “boa vontade”, o artista revolucionário de classe média chegava num disco voador nos bairros operários para “esclarecer o povo”: toda aquela ingenuidade paternalista dos tempos do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, pautava-se numa prática em que o discurso marxista se encaixava mecanicamente nas formas de arte popular (que na ocasião era em boa parte realizada pelo artista de classe média); acreditava-se que isto poderia “conscientizar” o proletariado. Além da coisa toda não ser tão simplória, o proletariado é sujeito da sua própria produção cultural. Na obra de autores da literatura periférica, como Sérgio Vaz e Ferréz, a experiência sensível vem de um contexto espacial marcado pela exploração e pela marginalização. Tratando-se especificamente da prosa na literatura periférica, os mais variados elementos de uma obra (personagens, ambientação, linguagem, etc) relacionam-se diretamente com os leitores das comunidades: autores e leitores são partes de uma mesma realidade sócio-econômica. Portanto, a experiência social do autor não está fora, mas dentro dos espaços periféricos das cidades.

Mas a condição econômica do autor garante de antemão uma interpretação revolucionária da realidade? Confusões ideológicas existem. Neste sentido é papel da esquerda revolucionária (e não demagógica) agir culturalmente na base operária: a questão não é fornecer um produto artístico que represente o trabalhador, mas debater referências estéticas, informações literárias e políticas, que não conduzem, mas fortalecem o escritor periférico. A forma artística que a obra irá assumir livremente a partir dos nervos e da sensibilidade do autor, é potencializada pela (in)formação marxista. Deve-se ressaltar que a vida literária do proletariado, realizada a partir de meios de produção culturais independentes, leva ao entendimento de que o leitor é um autor, e vice versa. Remetendo-nos ao texto conferência “O Autor Como Produtor” (1934) de Walter Benjamin, a posição política do escritor de esquerda não está num palavrório ideológico, mas na transformação radical das condições de produção e distribuição do texto literário. A edição de um romance periférico não deve ser um deleite desinteressado, mas um produto direto das comunidades. Um sistema editorial, revolucionário e independente, impõe-se enquanto necessidade política para o florescimento da literatura de combate no Brasil.

Seria o realismo a única orientação estética compatível com uma literatura de contestação social? Creio que a crítica trotskista não pode deixar barato uma concepção marxista de literatura que desconsidera a dimensão revolucionária da técnica artística. Trata-se, no âmbito da técnica artística, de chamar a atenção para aquilo que André Breton classificou como sendo “as necessidades históricas do seu desenvolvimento”. Se estamos empenhados diariamente em atividades que colocam a arte como expressão de um posicionamento anticapitalista, não podemos perpetuar um cadáver teórico que corresponde às forças produtivas literárias do século XIX. Como mobilizar jovens escritores segundo categorias invariáveis de linguagem, que ignoram a realidade técnica e, logo, os modos de expressão dos dias de hoje? Esta questão ajuda a explicar porque Brecht levou a melhor sobre Lukács no célebre Debate Sobre o Expressionismo, que rolou na Europa durante os anos trinta. Enquanto que Lukács afirmava que o expressionismo era “uma adulteração da realidade”, Brecht, sem abrir mão do realismo, defendia a necessidade de incorporação das técnicas artísticas de vanguarda no trabalho dos artistas revolucionários. Certamente que um realismo engessado não interessa ao escritor periférico. Para um escritor militante a arte não é um espelho do mundo, mas, como diria Maiakóvski, um martelo para forjá-lo.




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