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Ditadura militar | Quem foi Goffredo Telles, político e jurista relembrado pela burguesia nesse 11 de agosto?

sexta-feira 19 de agosto de 2022 | Edição do dia

No último dia 11 de agosto, Dia do Estudante, um leque de forças políticas almejaram construir um evento a partir da leitura de uma “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”. A carta foi articulada a partir da Faculdade de Direito da USP e de setores burgueses, como representantes da FIESP, da FEBRABAN, do Itaú. Recebeu o apoio de Lula e de quase toda esquerda nacional que convocou atos “em defesa da democracia” no mesmo dia. Nós do MRT, Movimento Revolucionário de Trabalhadores , não compomos esse dia, porque ele colocava no centro da cena política setores capitalistas como “lutadores” contra o bolsonarismo. Assim, como a estratégia de Lula e PT nessas eleições, o dia 11 representou a conciliação de classes, com os movimentos dos trabalhadores, dos negros e da população pobre a reboque das lideranças burguesas que buscam preservar a obra econômica do golpe institucional.

De acordo com a mídia, a carta foi inspirada em um documento lido, também no Largo do São Francisco em 1977 por Goffredo da Silva Telles. Danilo Paris em um artigo de nome “Escovar a história a contrapelo: 1977 e o 11 de agosto de 2022” mostra o conteúdo ideológico dessa inspiração que tenta, por um lado, enaltecer um evento de importância menor no enfrentamento a ditadura militar, e, ao mesmo tempo, silenciar o momento de fato decisivo da luta de classes que foi as greves operárias, especialmente a da Scania que incendiou o movimento grevista no ABC nos anos de 1978 e 1980. Aqui buscamos destrinchar quem foi Goffredo da Silva Telles e mostrar como o retorno de seu nome na cena política nacional expressa mais uma vez um projeto de “paz social” burguês que quer evitar que a classe operária se torne protagonista dos eventos políticos nacionais.

Origens conservadoras

Goffredo da Silva Telles Jr., oriundo de uma família tradicional proprietária da grande fazenda Santo Antônio, envolvida na produção de café no início do século, filho de Goffredo Telles, que chegou a ser prefeito na cidade de São Paulo em 1932. Na juventude, Goffredo fez parte junto a Plinio Salgado do movimento ultranacionalistas, conservador e com alas abertamente fascista, Ação Integralista Brasileira (AIB). Foi o primeiro deputado integralista no Rio de Janeiro.

Entre 1946 e 1950 foi deputado constituinte federal pelo Partido Social Democrático, que no momento estava coligado com o Partido de Representação Popular, de Plinio Salgado. Na constituinte atuou com ideologia conservadoras, fez discursos contra o comunismo e solicitou a inclusão do nome de Deus na introdução da Constituição. Não suficiente, seria mais coerente lembrá-lo como um inimigo do estado laico, do que como um herói da democracia. Foi ele quem criou em 1947 a lei exigia a imagem de um Crucifixo na Câmara dos Deputados. Em sua opinião a política deveria seguir a moral cristã.

Porque a “Carta aos Brasileiros”? Porque Goffredo?

Goffredo fez sua carreira profissional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Iniciou como professor em 1940, foi vice-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo de 1966 a 1969. Escreveu obras de teoria do direito, sem qualquer conteúdo subversivo, e tendia a tentar conciliar no plano filosófico certa teoria social evolucionista com um ideal abstrato de liberdade.

Em 1977 Goffredo da Silva Telles Jr redigiu e leu, a tão lembrada pela mídia nesse agosto de 2022, “Carta aos Brasileiros”. A história mítica dessa carta afirma que ela foi o primeiro manifesto contra a repressão e contra o próprio regime militar (SIC). Três estudantes de direito na época, em um encontro no restaurante Circolo Italiano San Paolo, decidiram criar um evento alternativo e contestatório a cerimônia oficial de aniversário de 150 anos da fundação da Universidade de Direito que seria presidida por Alfredo Buzaid, então ministro da Justiça de Emílio Garrastazu Médici. Futuramente, os três estudantes também se tornaram personalidades destacadas da política burguesa nacional: Flávio Bierrenbach, futuro ministro do Superior Tribunal Militar, nomeado por Fernando Henrrique Cardosos; José Carlos Dias, será secretário da Justiça do Estado de São Paulo no governo de Franco Montoro e ministro da Justiça, também de Fernando Henrrique Cardoso; e Almino Afonso, será vice de Oréstes Quércia no governo de São Paulo.

Os três teriam ido a casa de Goffredo solicitar que ele fosse o redator da carta. Ele também foi o principal orador, junto com José Gregori, que também será ministro da Justiça durante o governo FHC. No entanto o nome de Goffredo como redator e orador não foi ao acaso e nem fruto somente de seu carisma como professor. A sua escolha não estava dissociada de seu passado integralista e do fato seu nome não figurar entre personalidades de esquerda. A Carta aos Brasileiros não era um chamado a derrubada da Ditadura Militar, era um pedido ao próprio regime para que organizasse a transição.
Como afirma Danilo Paris no artigo já citado: “A carta de 1977 vocalizava o deslocamento de um setor das classes dominantes, que se afastaram da ditadura após o fim do que ficou conhecido como “milagre econômico”, em 1973. Descontentes com os rumos da economia nacional, uma parcela da burguesia nacional iniciou um movimento por dentro da ordem, que pressionava para uma transição controlada, buscando a constituição de um novo regime democrático burguês.”

Como resultado do fim do chamado “milagre econômico” a ditadura militar-empresarial já entrava em uma clara decadência. Não obstante, o contexto internacional também havia mudado. Frente aos processos revolucionários que eclodiram internacionalmente no fim dos anos 60 e 70, a política internacional imperialista passou a ser de “contornar” ascensos da luta de classes através do incentivo a pactos nacionais e aos processos constitucionais democrático burgueses.

A carta de 1977 é expressão desse período no qual o objetivo da burguesia brasileira era garantir um processo democrático negociado com o próprio regime militar e que pacificasse a luta de classes no país. Goffredo tinha clareza desse horizonte estratégico. Em outros momentos da ditadura projetos constitucionais escritos por ele haviam sido enviados a generais como Costa e Silva e o próprio Médici. De acordo com o próprio Goffredo, antigos amigos da cúpula do exército, e que não faziam parte da linha dura do regime, haviam solicitado que ele escrevesse um projeto constitucional para reestabelecer a democracia no país. E durante o sangrento governo Médici, Goffredo dirigiu uma comissão do Instituto dos Advogados de São Paulo que elaborou mais um projeto constitucional. Nas palavras do próprio Goffredo: “Em verdade, o que nós queríamos era forçar o governo a convocar uma Assembleia Constituinte”. Todo esse afã para convencer os militares rendeu a fama de que os militares haviam cogitado o seu nome para ser redator da própria constituição do regime militar pós 1964.

No final da sua vida era comum encontrar em entrevistas Goffredo se dizendo socialista e defendendo que o aperfeiçoamento da democracia seria o socialismo. No Brasil, é comum que políticos e intelectuais burgueses apresentem essa ideia estranha de socialismo não só desligado da luta de classes, mas a tolerante, cheio de negociação e compromisso íntimo como Estado burguês, sempre em nome do “Estado democrático de direito”. Este tipo de retórica foi muito utilizado por representantes da ordem para vernizarem a transição pactuada no final da ditadura. Tal operação retórica tinha, e ainda tem, o objetivo claro de impedir que as lutas operárias não encabeçassem a luta contra a ditadura e a derrubassem de forma revolucionária.

Por que Goffredo no Brasil de Bolsonaro?

O 11 de agosto foi uma operação da burguesia, aceita pela esquerda e lideranças sindicais, para que antigos apoiadores do golpe institucional, lobistas de ataques aos trabalhadores e responsáveis pelos ataques aos direitos democráticos se apresentem como opositores ao autoritarismo expresso em Bolsonaro e no bolsonarismo. Mais uma vez o acordo entre opressores e oprimidos, “capital e trabalho”, e o “respeito ao Estado Democrático de Direito” são apresentados como soluções para o autoritarismo no lugar da luta de classes e da luta dos trabalhadores e do povo pobre.

A presença da FIESP no dia 11 é emblemática. Mas a escolha do Largo do São Francisco também. Advogados e juristas buscam legitimar uma ideia de que as instituições democráticas, ainda sobrevivem e poderão dirigir por si só uma alternativa a Bolsonaro. O próprio STF, que tanto colaborou como golpe institucional e com a prisão de Lula, busca se alçar como representante de forças democráticas, supostamente históricas, simbolizada na própria faculdade de direito da USP. Em algum sentido, o 11 de setembro, ao reivindicar a carta de 77, realmente pretende reeditar o respeito a transição pactuada que Goffredo e a carta de 1977 representaram.

Atualmente, isso significa nada mais nada menos que setores da burguesia esperam que o próximo governo mantenha a obra econômica do golpe, respeite os limites estabelecidos pelo capital financeiro, e, inclusive, continue negociando e preservando a enorme presença no Estado conquistada pelos militares após o golpe institucional e a eleição de Bolsonaro.

A chapa Lula-Alckmin está se propondo exatamente essa tarefa, administrar o regime do golpe. O próprio Lula aceita a narrativa que resgata a carta de 77 quando, por exemplo, afirma que a negociação com os militares foi um grande sucesso de sua atuação nas greves do ABC, mostrando que o caminho da conciliação traz mais frutos do que o radicalidade dos operários. Não suficiente, a própria burocracia sindical se colocou ativa no dia 11 de setembro estando de braços dados com a FIESP evidenciando que estarão com todo empenho batalhando para que a classe operária não se coloque como sujeito independente.




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