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CINEMA | ‘Que horas ela volta?’ e a herança da ‘democracia racial’

Está em cartaz nos cinemas o novo filme da diretora paulistana Anna Muylaert, ‘Que horas ela volta?’, que irá representar o Brasil no próximo Oscar. O filme, de extrema sensibilidade, coloca no centro do debate as relações entre as empregadas domésticas e seus patrões no Brasil.

quarta-feira 16 de setembro de 2015 | 18:31

O filme de Anna Muylaert retrata a intimidade da relação entre a empregada doméstica Val (Regina Casé) e a família que a contrata para trabalhar em sua residência no rico bairro do Morumbi, em São Paulo. A personagem de Val representa uma realidade de imensas proporções em nosso país: segundo pesquisa conduzida pelo IBGE [1], em 2011 o número de empregados domésticos no Brasil era de 6,6 milhões de pessoas, sendo 92,6% mulheres e 61% dessas negras, e, nas regiões sul e sudeste, um imenso contingente de migrantes nordestinas, como Val. Esse número coloca o país como o de maior a número de pessoas nessa ocupação em todo o mundo. Por que será?

A história de Val é uma ilustração nítida disso. Recentemente vimos a aprovação, ainda que com imensa demora e muitas restrições, da chamada PEC das empregadas domésticas, que garantia à categoria uma parcela dos direitos já garantidos há tanto tempo pela constituição brasileira. A imensa revolta que isso gerou em tantas senhoras de classe média (pequeno burguesas) ou burguesas, é uma ilustração em grande escala do que Muylaert retrata em seu filme na relação entre Val e “Dona” Bárbara (Karine Teles).

A relação aparentemente tranquila entre patroa e empregada é duramente abalada quando Jéssica (Camila Márdila), filha de Val que mora no Recife e há dez anos não vê a mãe, chega a São Paulo para prestar vestibular. Jéssica, uma menina jovem, politizada e confiante, cumpre o interessante papel de desnaturalizar a relação que havia ali entre Val e Bárbara.

Não vamos aqui entrar em detalhes do filme para evitar os “spoilers”, mas o primeiro contato entre mãe e filha já mostra como ocorre esse “estranhamento”, quando Jéssica fica chocada ao saber que a mãe mora na casa dos patrões. Seu choque diante dessa descoberta, que Jéssica faz como se fosse um “alien” chegando a esse bizarro país chamado Brasil, certamente será compartilhado por muitos dos espectadores de outros países; pois só em um país como o Brasil, com uma raiz tão profunda no escravismo que sobrevive na mentalidade “senhorial” dos patrões brancos, poderia permanecer presente nas casas algo tão bizarro quanto o “quarto de empregada”, um descendente direto da senzala, e que pode permanecer existindo não apenas pelos motivos ideológicos de herança da mentalidade escravocrata, mas principalmente pela absurda desigualdade econômica no país, que relega principalmente as mulheres negras à miséria, muitas vezes sem ganhar o suficiente para conseguir pagar os preços exorbitantes dos aluguéis. Isso também é fruto de que essa categoria, uma das mais numerosas do país, é também a mais mal remunerada: em 2011, recebia em média R$ 509 (inferior inclusive ao salário mínimo, que na época era de R$ 549), o que representa 39% da média dos trabalhadores em geral. Se isso não é a escravidão moderna, o que será?

Contudo, não é apenas na bem desenvolvida denúncia dessa situação que o “Que horas ela volta?” mostra a que vem. O que há de mais rico no filme é mostrar as contradições que tal situação gera nas relações pessoais, e que só vem à tona devido à chegada de Jéssica. A hipócrita relação de “mãe” (como Val mesmo descreve) entre “dona” Bárbara e ela é desvelada. Ao mesmo tempo, Val, que cumpriu um papel central na criação de Fabinho, filho de seus patrões, tem uma relação de carinho sincera e recíproca com ele, que chega a despertar o ciúmes de Bárbara. É ao se ver como “parte da família” que desaparece de Val a consciência da profunda exploração a que está submetida, quando as relações de trabalho são travestidas de relações de afeto; Val não tem horário certo de trabalho, não bate cartão, está lá na casa de seus patrões (que é o lugar onde mora sem ser a sua casa) do amanhecer até a noite, servindo a mesa do café e os drinks na festa de aniversário da patroa à noite, sem receber hora extra. Não há limite entre o trabalho e o “favorzinho” à patroa, que, afinal, é “uma mãe” a tal ponto que Val a presenteia no seu aniversário.

Esse tipo de relação ambígua, em que a exploração, a segregação e a desigualdade se travestem de amizade, carinho e favor, é típico de um Brasil que até fez disso uma teoria social: a “democracia racial” de Gilberto Freyre, intelectual que propôs essa ideia de que no Brasil o racismo não existe porque há uma “miscigenação” das raças, uma convivência harmônica. E essa mentalidade que está colocada também nas relações entre empregadas e patrões no Brasil. Não apenas o filme de Muylaert, como também o excelente “Domésticas”, do pernambucano Gabriel Mascaro, mostram isso com riqueza de detalhes. Em “Domésticas”, Mascaro faz um documentário sobre a vida de diversas empregadas (e um empregado) utilizando uma curiosa forma de filmar: dá a câmera justamente aos filhos dos patrões (como o Fabinho de “Que horas ela volta?”), que são jovens que, via de regra, tem uma relação de longa data e de algum nível de afetividade com as empregadas, que cumpriram também o papel de babás (configurando-se como as herdeiras das “amas de leite” da época escravocrata).

Esse tipo particular de relação de exploração é muito difícil de pôr a nu, e ao mesmo tempo extremamente perverso. O filme de Muylaert, assim como o de Mascaro, constituem obras que conseguem retratar esse tipo de relação de forma sensível, mostrando nos pequenos detalhes as ambiguidades e contradições. Certamente, essa sutileza deixa ao espectador duas portas: aqueles que estão tão acostumados com esse tipo de relação que as naturalizaram, darão algumas risadas e sairão do filme intocados; contudo, ao espectador atento e crítico às relações humanas, esses filmes dão a chave para ver a monstruosidade que uma sociedade capitalista, desigual e herdeira do racismo escravocrata é capaz de construir. O fato de que Muylaert tenha em seu elenco uma atriz global, a produção da Globo filmes e que vá concorrer ao Oscar, merece ser pensado dentro dessa perspectiva. Mas isso já é assunto para outra ocasião...






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