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ORIENTE MÉDIO | Quais as implicações dos ataques militares ao complexo petrolífero na Arábia Saudita?

Dez drones realizaram ataques aéreos sobre o coração da indústria do petróleo na monarquia saudita, fazendo disparar os preços do petróleo e as tensões no Oriente Médio.

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

segunda-feira 16 de setembro de 2019 | Edição do dia

As tensões no Oriente Médio ganharam um novo capítulo que ameaça ser mais convulsivo que o episódio das capturas de navios petroleiros estrangeiros no Golfo Pérsico, em junho. No último sábado (14), 10 drones realizaram ataques aéreos sobre o coração da indústria do petróleo na Arábia Saudita: devastou-se a zona de Abqaiq, o maior centro de processamento de petróleo saudita e do mundo, e também o campo de petróleo de Khurais.

O resultado imediato foi a diminuição pela metade da produção petrolífera da monarquia árabe, aliada estratégica dos Estados Unidos, cortando 5.7 milhões de barris diários de petróleo (5% da produção global), o que elevou o preço da commodity em mais de 20% na abertura dos mercados - acima de 71 dólares, a maior cotação em três décadas - antes de cair para 66 dólares depois das declarações dos EUA, e golpeou a figura da Arábia Saudita como fornecedor confiável de petróleo em última instância.

Não está clara a origem do ataque, embora a milícia rebelde xiíta dos Houthis, que controlam a porção norte do Iêmen, que faz fronteira com a Arábia Saudita, tenha reivindicado a autoria. Os Houthis tem relação com o Irã, e desde o início da guerra civil no Iêmen em 2015 se enfrentam contra os bombardeios em seu território orquestrados pela coalizão árabe liderada pelos sauditas. O Iêmen é um dos territórios, além da Síria, do Iraque e outros países, em que Irã e Arábia Saudita disputam a preponderância no Oriente Médio.

Imagens de satélite dos EUA mostrando os danos ao complexo de Abqaiq, na Arábia Saudita

Apesar disso, Mohammed Bin Salman, príncipe saudita, não atribuiu prontamente alguma autoria; nem mesmo Trump, que alegou ter “razões para saber quem foi o responsável”, nomeou o Irã, tendo tweetado no domingo (15), “Estamos preparados para atuar, dependendo da verificação, e aguardando o Reino Saudita confirmar quem pensa ser o causador desse ataque, e em quais termos devemos proceder!”. Seu secretário de Estado, Mike Pompeo, foi quem acusou o Irã pelo ocorrido. O governo iraniano rejeitou qualquer responsabilidade pelo ataque, e acusou, por sua vez, os Estados Unidos de “após fracassar na estratégia de ’máxima pressão’, aderir à estratégia de máxima mentira”.

Alemanha, Reino Unido, Rússia e China se prontificaram a acalmar a situação, e recomendaram a renúncia a qualquer medida precipitada de retaliação, tentando baixar os decibéis de um conflito que pode reacender o barril de pólvora regional e mundial.

O cuidado de Trump em não nomear o Irã se relaciona com os últimos movimentos de aproximação que promoveu com a potência persa. Ademais, o incidente ocorre poucos dias depois que Trump demitiu o ex-assessor de segurança nacional, John Bolton, conhecido por sua política agressiva contra o Irã, e pelos constantes atritos com o presidente em defesa de uma estratégia de "modificação de regime" ("regime change", como ficou conhecida durante a Primavera Árabe) que envolvesse a deposição do regime de Teerã, encabeçado pelo aiatolá Ali Khamenei. Um dos pontos de discórdia, que resultou na demissão de Bolton, se localizava na vontade expressa por Trump de se encontrar pessoalmente e sem condicionantes com Hassan Rouhani, presidente iraniano, para negociar o problema das sanções econômicas contra o estado persa depois da saída dos EUA do acordo nuclear de 2015.

A demissão de Bolton, fruto das discordâncias com Trump em inúmeros assuntos de política externa envolvendo a Coréia do Norte, o Afeganistão e a Venezuela, representou um enfraquecimento da ala mais agressiva dos "falcões" no governo estadunidense. Após os ataques à Arábia Saudita, entretanto, Trump foi rápido em "desmentir" como falsa sua intenção de encontrar-se com Rouhani na Assembleia da ONU em Nova York.

Do ponto de vista da Arábia Saudita, o ataque ocorreu em meio à tentativa do governo de Salman de privatizar a Aramco, a maior produtora de petróleo do mundo, diante da crise econômica em que se encontra a monarquia saudita. A entrega da gigante estatal fica parcialmente comprometida agora, com o cálculo dos riscos de novos ataques. Nos últimos meses a Arábia Saudita havia pactuado acordos com países asiáticos com forte capacidade de produção petrolífera, como a Rússia, para diminuir a produção, com o objetivo de elevar os preços do petróleo.

Mesmo para o governo brasileiro, a disparada dos preços do petróleo pode significar problemas, caso implique em inflação dos preços dos produtos de consumo básico. A Petrobrás mostrou preocupação com a capacidade de negociação dos preços da commodity nos mercados após o impacto dos eventos no Oriente Médio. Além do petróleo, a taxa de câmbio deve sentir os efeitos da crise, pressionando ainda mais a chamada paridade de importação — conceito usado pela política de preços da estatal, que simula o custo de importação dos combustíveis.

Múltiplos vetores da crise

Há uma série de determinações que conduzem ao conflito atual, que eleva as tensões entre Estados Unidos-Irã-Arábia Saudita a níveis que alguns analistas consideram similares aos da primeira Guerra do Golfo em 1990-1991.

O primeiro fator é a própria situação debilitada do Irã, depois da saída de Trump do acordo nuclear travado por Obama em 2015. Logo após essa ruptura unilateral do acordo - que envolve países como Alemanha, França e Inglaterra - os Estados Unidos incrementou sanções econômicas para asfixiar o regime iraniano, bloqueando inclusive parcialmente certo quantum de exportações de petróleo do país. Essa política, que enfraqueceu a economia iraniana a níveis consideráveis, condizia com a linha mais agressiva de Bolton, e que teve como represália imediata a série de capturas de navios petroleiros na costa do Golfo Pérsico pelo Irã. O ápice do conflito veio logo após a derrubada de um drone norte-americano, que invadiu o espaço aéreo do Irã, o que quase provocou a execução de um bombardeio em instalações militares iranianas pelo Pentágono (segundo Trump, ele mesmo barrou o lançamento dos mísseis a poucos minutos de serem iniciados os bombardeios).

Desde que a administração Trump elevou a estratégia de "máxima pressão", não estava descartado como hipótese que o Irã, além de atuar na represália direta no Golfo Pérsico, utilizasse aliados regionais para frustrar as ambições dos principais "amigos" árabes dos EUA no Oriente Médio, e interrompesse o fluxo contínuo de petróleo na região.

Desse ponto de vista, a mensagem do Irã - que independente da autoria, é um dos beneficiários indiretos do ataque - é clara: os aliados árabes dos Estados Unidos, especialmente a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, pagarão parte dos custos pela crescente hostilidade de Washington contra o regime iraniano.

O segundo fator se refere à guerra civil no Iêmen, parte da disputa entre Irã e Arábia Saudita pela preponderância no Oriente Médio. Vendo-se enfrentadas em distintos países durante a onda de rebeliões e processos revolucionários da Primavera Árabe, no Egito, na Tunísia, na Líbia, na Síria, etc., (que após um primeiro momento de lutas populares, viram seus processos derrotados por contrarrevoluções que instalaram novas ditaduras ou preservaram antigas estruturas despóticas), ambas as potências regionais viram-se novamente enfrentadas no Iêmen.

A República do Iêmen é um estado unificado recente, após os processos de negociação que culminaram em 1990, fruto da queda da União Soviética, que controlava a porção sul do território iemenita. A porção norte do território, constituída em 1945 como Iêmen do Norte, foi controlada desde então pela Arábia Saudita. Fruto dos conflitos da Primavera Árabe, o país se encontra em guerra civil, e desde 2015 a capital Saná e toda a região norte se encontra nas mãos dos guerreiros Houthi, uma facção pertencente ao ramo xiíta do islã político, aliado do Irã e adversária direta da Arábia Saudita, que lidera uma coalizão - com apoio imperialista, em primeiro lugar dos EUA - para derrubar o governo Houthi e retomar o controle da situação pela via de bombardeios militares, deixando um rastro de devastação no país, com mais de 80% da população à beira da inanição e dependente de ajuda internacional para alimentar-se.

Os Houthi se mantém apesar dos bombardeios como líderes na capital do Iêmen, e a reivindicação da autoria dos ataques indicaria que a milícia xiíta incrementou seu potencial de combate. A destruição de parte do complexo petrolífero de Abqaiq é um símbolo do que amedronta os mercados financeiros e especuladores de commodities: os inimigos da Arábia Saudita mostraram ser capazes de atingir suas mais estratégicas e bem defendidas infraestruturas econômicas, sua indústria e campos de petróleo.

O Irã vem estreitando publicamente suas relações com os Houthi. Não é secundário que o líder iraniano, Ali Khamenei, tenha aceito receber um embaixador Houthi e saído em fotografias com ele. O cenário de pesadelo da monarquia saudita é ver-se cercada de inimigos com crescente capacidade de combate em meio às disputas entre Washington e Teerã, o que pode alterar a balança de forças no Oriente Médio.

Aliados iranianos no Oriente Médio contam com o Líbano, a Síria, o Iraque e a parte norte do Iêmen; aliados da Arábia Saudita são os Emirados Árabes Unidos, Kuwait e o Bahrein.

Um terceiro fator, que atua nos bastidores e não menos importante - pelo contrário, um dos ordenadores da situação internacional - é o cenário das eleições presidenciais no principal aliado da Arábia Saudita, os Estados Unidos. Donald Trump batalha pela reeleição em 2020, tendo o desafio de manter fortalecida sua "internacional direitista" como ponto de apoio político (com Bolsonaro no Brasil, Boris Johnson no Reino Unido, Macri na Argentina - até deixar o governo em outubro - e também seus aliados no Oriente Médio), mas também preservar a economia dos Estados Unidos, que mostra sinais de desaceleração industrial, de uma queda que debilitasse sua campanha em setores sociais chave, como os trabalhadores do antigo cinturão industrial do Meio-Oeste, o Rust Belt, que foram sua base eleitoral em 2016.

Segundo a rede de notícias Bloomberg, já há sinais de recessão em alguns estados do Rust Belt, como Pennsylvania e Wisconsin, o que preocupa as perspectivas eleitorais de Trump.

Em seus tweets, Trump fez questão de lembrar que, diante dos ataques, autorizou a liberação para exportação de parte das reservas de petróleo dos Estados Unidos, "suficientes para manter bem abastecidos os mercados", assim como ter enviado mensagens pedindo a aceleração da aprovação dos projetos de construção de oleodutos no Texas e outros estados norte-americanos. Terminou com mensagem sumamente sugestiva de "Cheio de petróleo!", referindo-se ao próprio país.

Não admira que o próprio Trump, que certamente busca defender as posições de seus aliados no Oriente Médio, em especial a Arábia Saudita, busque tirar proveito para aumentar a exportação de petróleo dos Estados Unidos, tratando de robustecer uma economia que apresenta riscos de recessão em 2020 através da construção de novos complexos petrolíferos. O óleo de xisto dos EUA está sendo golpeado pelos baixos preços do petróleo nos últimos meses, o que incrementa a necessidade de buscar alternativas de curto prazo para incrementar os resultados econômicos nos Estados Unidos previamente às eleições presidenciais.

Não está claro como isso se dará, especialmente num momento de relativa decadência das ainda preponderantes formas energéticas baseadas em combustíveis fósseis, diante do crescimento da produção de veículos elétricos e o desenvolvimento de novas formas de energia.

Um conflito que pode reacender o barril de pólvora do Oriente Médio

As incertezas que marcam o terreno internacional podem ir muito além das consequências não resolvidas da Grande Recessão de 2008, ou das crises orgânicas e de autoridade estatal que atravessam distintos países centrais, abalando os tradicionais sistemas partidários. Os meses seguidos de atritos e escaramuças entre os Estados Unidos, o Irã, e as potências aliadas no mundo árabe e na Europa, podem desencadear conflagrações que escapem às mãos dos governos.

Por ora, Trump e as potências europeias, assim como China e Rússia, buscam acalmar os ânimos, e calcular o panorama que se abre com a subida dos preços do petróleo, e o golpe na imagem da Arábia Saudita. A própria saída de Bolton da Casa Branca é um elemento que indica a disposição mais negociadora de Trump.

Entretanto, não se podem definir de antemão as consequências de médio prazo. Nouriel Roubini, um dos economistas keynesianos que prevê uma nova recessão mundial em 2020, escreveu em recente artigo que distúrbios na produção do petróleo poderiam ser disparadores de um novo capítulo recessivo (além das disputas comercial-tecnológicas entre Estados Unidos e China). Os acontecimentos em Abqaiq e Khurais atualizam como hipótese essa possibilidade, para uma situação mundial que, independentemente disso, vem mostrando a incapacidade dos capitalistas de darem uma saída harmônica para sua crise.




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