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EDUCAÇÃO - TEORIA | Por que Vigotski é importante para pensarmos a escola hoje?

Após a maior greve da história do professorado paulista (março-junho/2015), o governo do PSDB celebra o dia das professoras e professores atacando novamente a estrutura da educação pública paulista. Com o anúncio do fechamento de escolas e a intenção explícita de municipalização (e implícita de privatização) do ensino fundamental, faz cada vez mais sentido discutirmos escola pública, seus meios e fins. Para isso, este texto pretende contribuir respondendo à questão exposta do título.

quarta-feira 14 de outubro de 2015 | 23:10

“Pois quando o pobre tem no seu repasto
O direito a escola e proteína
O seu cérebro cresce qual um astro
E começa a nascer pra todo lado
Jesus Cristo e muito Fidel Castro”
Tom Zé (Desafio)

Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934) foi um pensador soviético (perseguido e censurado pelo regime stalinista) que produziu uma das mais célebres contribuições à psicologia no século vinte. Muitas pessoas envolvidas com a educação sabem seu nome, mas nem todas conhecem exatamente o conteúdo de seu pensamento. Mas como disse Gramsci, é filosoficamente mais relevante que uma multidão de pessoas pensem a realidade de maneira coerente e unitária que grandes descobertas sejam feitas e mantidas restritas a poucos círculos de pessoas. Vigotski foi um gênio e nos instrumentaliza para compreender a psicologia humana e a importância da escola, mas isso muda pouco o estado de coisas que vivemos. O que ajudaria na mudança é o domínio coletivo de suas teses principais. Este texto visa expor a base de seu pensamento, especialmente aos não-psicólogos.

Por que afinal ele é importante para a psicologia e para a pedagogia? Toda a história das religiões, da filosofia e da psicologia orbitaram em torno do maior mistério psíquico humano, a consciência. O que é o espírito? Como sabemos que existimos? A consciência, tanto do aspecto de sua vivência imediata quanto do movimento da História, intriga as pessoas há muito tempo. Não é à toa que a principal característica dos deuses, especialmente os das religiões monoteístas, é a intencionalidade, a consciência em ação. Pura projeção de características humanas. Toda a filosofia acaba se referindo ao debate em torno da dinâmica matéria-espírito, quem cria a quem, quais são suas substâncias, existe livre-arbítrio?, etc.

A psicologia herda o dualismo (separação entre espírito e matéria) da filosofia e aceita que a realidade mental é separada da realidade física e corporal. Aliás, psicologia é o aportuguesamento de uma palavra grega (Ψυχολογία), que significa estudo da alma. Alma, mente e razão são conceitos equivalentes numa introdução à psicologia. A psicologia de raiz idealista se divide em várias escolas, mas todas elas sustentam a autonomia da vida psíquica, seja ela consciente ou inconsciente. Essas teorias servem frequentemente à psicologização dos problemas sociais. A própria ideologia liberal da meritocracia, adotada pelas classes médias, sustenta a autonomia da vontade.

Da crítica à psicologia da mente, nasce a psicologia positivista, o behaviorismo, a psicologia sem psique, sem mente, a ciência do domínio externo do fazer humano, o comportamento. É uma expressão interessante da psicologia materialista, mas ao abandonar a consciência como objeto de estudo, perde as diferenças qualitativas entre humanos e animais. Nenhuma das vertentes, idealista ou materialista mecanicista (behaviorismo) postula que a realidade histórica e social cria e é criada dialeticamente pelo ser social, aliás, nenhuma delas admite que o ser humano é o ser social.

É aqui que entra Vigotski na história. Em seu contexto se almejava na União Soviética a criação de uma psicologia marxista, da qual ele foi crítico e recolocou suas bases. Sua grande contribuição foi ter oferecido uma explicação dialética da natureza social, e não metafísica, da consciência. Ele dissera já em 1925, início de sua trajetória na psicologia, que a consciência deveria ser objeto de estudo da psicologia do comportamento, ou seja, que a consciência era objeto de estudo científico e materialista. É esse tema que o conduz até 1934, seu último ano, em que completa a obra clássica Pensamento e Linguagem, que alcança uma tese substantiva sobre a natureza social da consciência humana.

Vigotski disse basicamente o seguinte: todas as nossas capacidades psíquicas, como pensar, sentir, expressar, perceber, falar, lembrar, convencer, se emocionar, ritmar, etc., são originadas nas nossas relações sociais e dialeticamente internalizadas. O resultado da articulação, fusão e integração dessas Funções Psíquicas é o que chamamos consciência. Fica claro em seu pensamento que a consciência se desenvolve tanto na filogênese (história da humanidade) quanto na ontogênese (história do indivíduo).

Vigotski entende o desenvolvimento como revolução e não como simples incremento ou evolução. Para ele, a diferença entre seres humanos e animais é qualitativa, e não quantitativa. Quando ele diz que a consciência se desenvolve, diz que todos os seres humanos criam-se como tais nas relações sociais e isso é necessário, e não casual. Nascemos candidatos à humanidade e nos humanizamos nas relações sociais (outro psicólogo soviético, Leontiev (1903-1979), também sustentou essa tese). As relações sociais humanas criam novas condições para o desenvolvimento psíquico porque introduzem um novo elemento, absolutamente decisivo para a existência da realidade psíquica, a linguagem.

O fato psíquico mais importante para o desenvolvimento é a aquisição de nosso idioma materno. A linguagem é aquela condição sem a qual todo o processo se inviabiliza. E não falamos apenas da linguagem falada e escrita, hegemônica e frequente, falamos também da linguagem de sinais e da tátil. O que todos esses tipos de linguagem têm em comum? O significado. Vigotski defende que não há funções psíquicas humanas sem socialidade mediada pela significação. Sua tese é: a consciência tem uma estrutura semântica e sistêmica. Podemos afirmar então que são os significados que promovem a integração radical de Funções Psíquicas e formam a consciência. A consciência é atividade social perene e mediada pela linguagem. Então o segredo último da constituição psíquica humana é a natureza das relações sociais.

Mas a questão é que não basta aprender a falar para se desenvolver humanamente. É preciso algo mais. Todas as esferas da cultura têm potencial para gerar desenvolvimento psíquico. A escola tem tudo para oferecer possibilidades de desenvolvimento psíquico a amplas camadas da população, pois pode reunir em um único espaço teoricamente quaisquer contribuições culturais da história da humanidade. A escola reúne conhecimentos e formas de ação sistematizadas e escolhidas a dedo para compor seus currículos. Pelo menos em potência isso é concebível. Segundo Vigotski, as aprendizagens escolares ensejam processos de desenvolvimento psíquico. Além disso, a escola pensa em seus objetivos e avalia seus produtos, o que torna sua atividade autoconsciente.

Outro ponto importante, o pensamento tem papel destacado no desenvolvimento da consciência. Ele é uma Função Psíquica que desempenha um papel protagonista no desenvolvimento da consciência, pois integra ativamente a todas as demais. Ele se desenvolve mediante verbalização (integração com a linguagem), o que acontece em etapas. Espera-se que somente aos doze anos de idade o pensamento tenha cumprido suas etapas de desenvolvimento. O que muda basicamente de uma etapa para a outra é o tipo de conceitos com os quais as crianças pensam (conceito, palavra e significado também podem ser compreendidos como sinônimos). E é por isso que a escola é importante, porque é uma fonte inesgotável de um tipo especial de conceitos, que ele chamava de conceito científico.

Os conceitos científicos se diferenciam pelo seu alto grau de generalização, que é basicamente o grau de abstração que ele alcança. Por exemplo, os conceitos de parafuso e tempo têm em si graus de generalização bem diferentes. Bem, trabalhar com conceitos científicos transforma o pensamento das pessoas, torna-o mais abstrato e afinado com mediações. A criança que ingressa na escola usa a palavra tempo de forma correta, mas ela não sabe o que realmente significa. Para compreender a definição mais profunda da palavra tempo, isto é, compreendê-la em toda sua significação, exige pensamento abstrato (ou conceitual). (Exercite agora silenciosamente, responda para si: o que é tempo?). O pensamento abstrato é o que caminha com firmeza nas abstrações, e mesmo para adultos conceituar não é simples, ou foi simples definir tempo?

O que está em jogo aqui? Estamos falando de acesso coletivo a formas abstratas de pensamento, muito necessárias para analisar o mundo politicamente. Conhecimento e articulação intelectual é poder na luta de classes (créditos a D. Saviani). Estamos também falando da possibilidade de desenvolvimento artístico e cultural em geral, pois na escola oferece-se o material e o meio para o desenvolvimento. Como pólos de desenvolvimento, as escolas poderiam ser centros de organização popular. Claro que isso seria perigoso desde o ponto de vista da burguesia, e toda a origem do fracasso do nosso sistema escolar é o interesse político na luta entre as classes. A receita governamental é simples, educar para o emprego precarizado. Uma educação cada vez mais simples a um trabalhador ideal, cada vez mais explorável. A luta pela educação é basicamente garantir duas coisas: as condições intelectuais da luta política e o acesso a um direito inalienável de todas as pessoas, o direito às próprias fontes de humanização.

Elenquemos alguns exemplos, a tese de que o público é marcado pela ineficiência, morosidade e corrupção e que o privado é marcado pela inovação, eficiência e pioneirismo é embasada por evidências aparentes. Ultrapassar a percepção imediata dos fatos e compreender as mediações e processos históricos que envolvem os acordos público-privados, a precarização intencional de setores da máquina pública, o papel comunicativo dos grandes meios de comunicação, tudo articulado como tática política da classe dominante, requer bastante abstração. Para compreender que o antagonismo entre PT e PSDB é um falso antagonismo, idem. Para não achar que bandido bom é bandido morto, também precisamos de abstração. Em suma, a realidade aparente não revela as contradições inerentes ao conflito social que vivemos, para compreender o mundo criticamente, é preciso analisar ativamente a situação para revelar mediações ocultas, precisamos de abstração.

O que queremos é que a escola funcione, eduque e enseje o desenvolvimento do pensamento da classe trabalhadora. O que a escola potencialmente garante é uma população que compreende de forma mediada e contextualizada seus dramas e opressões sofridas. A classe que se compreende como classe historicamente situada e portadora de uma condição de subalternidade estrutural, não é mais a mesma classe. É por isso que os ataques à escola não pararão, pois ela tem um papel revolucionário.

A luta pela educação é, portanto, estrategicamente importante para a composição de forças da classe trabalhadora. A categoria profissional dos docentes, apesar de sua heterogeneidade, ainda é uma das mais importantes para o debate político no Brasil. O contraste entre o senso comum eleitoral da educação como prioridade e o descaso na prática é uma pauta que pode mobilizar amplos setores da população, pois explicita as contradições de classe subjacentes à luta.

Saber estabelecer mediações entre a hipocrisia do governo e a motivação das políticas públicas é necessário e não acontece espontaneamente. Aí entra o papel dos professores e lideranças, temos que mediar a elaboração intelectual do momento vivenciado para compreendermos a motivação política das ações. As pessoas, especialmente os alunos e pais, devem entender o horizonte político que estamos vivendo. Compreender a importância dessa elaboração para a organização da ação coletiva também é pensar em termos vigotskianos. Estamos diante de um momento decisivo, pois os estudantes e as famílias estão sensibilizadas para a luta. Claro que respondem a uma provocação física em suas vidas, mas esse pode ser o motivo para que se compreenda as determinações políticas mais gerais do nosso momento.

Voltando à tese da formação da consciência para finalizar o texto, se o segredo da constituição psíquica humana é a natureza de suas relações sociais, somente com a superação da ordem capitalista é que conheceremos todas as potencialidades humanas. Até lá, nos colocaremos à frente da luta pelo autodesenvolvimento e pela emancipação. Entre a escola que temos e a que queremos há um grande caminho, mas podemos nos apegar ao fato de que quando as pessoas estudam em luta o desenvolvimento do pensamento é ainda mais impressionante e novas possibilidades se abrem.

GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 10 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

PRESTES, Z. R. Quando não é quase a mesma coisa: Análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil: repercussões no campo educacional. Universidade de Brasília, Tese de doutorado, 2010.

VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, (1934)2001.

VYGOTSKI, L. S. El problema de la consciencia. In: Obras Escogidas: (2ª Ed.) Madrid: Visor, (1925)1997. Tomo I.

VYGOTSKI, L. S. El significado histórico de la crisis de la psicología. In: Obras Escogidas: (2ª Ed.) Madrid: Visor, (1927)1997. Tomo I.




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