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Por que Trótski era o maior defensor da URSS? Parte 2: O Termidor Soviético

Gabriel Girão

Por que Trótski era o maior defensor da URSS? Parte 2: O Termidor Soviético

Gabriel Girão

Nesta série de artigos, buscaremos mostrar a luta de Trótski contra a burocratização na URSS e também explicar porque este foi o maior defensor da primeira república operária no mundo, tanto contra o imperialismo como também contra a burocratização do stalinismo.

No último artigo, discutimos um pouco sobre a origem do processo de burocratização na URSS. Terminamos ele definindo como o stalinismo representa reação sobre as bases da revolução, o Termidor soviético.

Termidor se refere ao período da revolução francesa que se implanta o diretório, depois seguido pelo consulado e pelo império napoleônico, e se retira do poder a ala mais radical da revolução. No entanto, as formas de propriedade burguesas ainda permanecem. Trótski faz essa comparação com o stalinismo pois esse também seria uma reação, mas que ao mesmo tempo preservaria as formar da economia planificada. Neste artigo, buscaremos descrever sobre a natureza do stalinismo como Termidor Soviético e também sobre sua teoria, o Socialismo em um só país.

Nessa tese, a tomada do poder pelo proletariado representaria 9/10 do socialismo na Rússia, graças às suas características “natas”, como um proletariado combativo e imensas riquezas naturais. Portanto, se o “socialismo” já está realizado, basta se proteger contra invasões externas e as tentativas “internas” de sabotagem e restauração. O papel do partido não é mais de avançar na liquidação das classes sociais e na construção do socialismo, pois isso já teria sido praticamente feito com a tomada do poder, mas de basicamente “gerir e administrar” aquele “socialismo” já pronto. Ou seja, era uma teoria que não apenas combinava com a ideologia da burocracia, de “gestora e administradora”, como também vai representar seus interesses materiais de autopreservação.

A expressão dessa reação sobre as bases da revolução vai se dar em muitos aspectos. A revolução fez da Rússia o primeiro país a legalizar o aborto e a descriminalizar a homofobia, acompanhado de uma ampla legislação que protegia os direitos de mulheres. As discussões sobre a abolição da família burguesa, o amor livre e a liberação da mulher do jugo do trabalho doméstico eram vivas no partido e na sociedade. Havia uma real preocupação em como aumentar a participação das mulheres na política. [1] Evidente que essas medidas e discussões esbarravam nas condições materiais da Rússia recém saída do czarismo e destruída por duas guerras, além dos atrasos herdados do passado, como o imenso machismo. No entanto, ao invés de combater esses traços mais atrasados, como era parte da tradição bolchevique e revolucionária no geral, a burocracia se apoiou neles e pior, os reforçou. A propaganda oficial, que nos primórdios da revolução falava para as mulheres se livrarem do jugo do lar, começou a exaltar a “família soviética” e a mãe soviética. O aborto é proibido, pois, no “socialismo” era proibido à mulher negar as “alegrias da maternidade”. Os homossexuais começaram a ser perseguidos com base ao artigo 121 do código penal, e a homossexualidade era associada ao nazismo na propaganda oficial. Esse clima homofóbico também contaminou os PCs, que muitas vezes condenavam a homossexualidade como "desvio burguês/pequeno burguês".

Outra caricatura comumente feita pelos stalinistas é de que Stálin seria a “mão-dura” que teria sido “implacável” contra os elementos burgueses e contrarrevolucionários, enquanto Trótski seria um “democrata” bobo. Dessa forma, a repressão promovida pelo regime burocrático estaria “justificada”. De nossa parte, acreditamos que a ditadura do proletariado de fato tem de ser implacável contra a contrarrevolução, ainda mais na situação que a Rússia pós 1917 se encontrava. Trótski, como dirigente do Exército Vermelho sabia disso melhor que ninguém. No entanto, diferente dessa caricatura promovida pelos stalinistas, a repressão promovida pelo stalinismo foi, muitas vezes, voltada não contra esses elementos - na verdade muitas vezes, esses foram tolerados pelo regime – mas sim contra seus inimigos políticos e muitas vezes, os revolucionários.

Analisando a década de 20 na URSS alguns exemplos ficam claros. Enquanto a perseguição contra a Oposição de Esquerda aumentava, Stálin abriu a porta do partido a todo tipo de figura renegada do movimento operário, inclusive muitos ex-mencheviques que tinham combatido ao lado da contrarrevolução! A única condição era que eles apoiassem Stálin em sua luta contra o “trotskismo”. Um caso emblemático foi o do ex-menchevique Martynov [2], que tinha sido duramente criticado por Lenin nos anos anteriores à Revolução. Já mostramos aqui também como muitos dos funcionários de alto escalão da URSS não eram os que estavam na linha de frente da revolução. Enquanto a Oposição era perseguida por denunciar o perigo que constituía a ascensão dos NEPmen [3] e dos kulaks [4], durante muito tempo eles foram tratados por Stálin como aliados passíveis de “integração ao socialismo”. Muitos soviets e outros órgãos estatais importantes, inclusive, estavam com kulaks ou NEPman à frente. Apenas após o estouro da crise agrária prevista por Trótski (que discutiremos mais a frente) é que vai haver uma mudança de orientação e esse setor vai ser perseguido, dando origem ao desastroso processo de coletivização forçada. Os métodos da burocracia não se limitavam apenas a perseguição política dos opositores. Vários livros e escritos foram censurados, inclusive de Lênin e outros bolcheviques. Muitos dos que não foram censurados, em suas novas edições foram editados para justificar a posição da burocracia. Muito famosa também foi a edição de fotos promovida pelo regime. Isso só evidencia que os métodos autoritários e criminosos usados pela burocracia não tinham o objetivo de defender as conquistas da Revolução. Pelo contrário, eram usados para manter o poder e os privilégios da casta governante, via de regra, contra os revolucionários.

No âmbito da Internacional Comunista (IC), isso se repete. A campanha de “bolchevização” promovida em vários Partidos Comunistas (PCs) pelo mundo consistia em perseguir os partidários e simpatizantes da oposição. Os congressos, que ocorreram anualmente entre 1919 e 1923 (ou seja, mesmo durante a Guerra Civil na Rússia) vão ocorrer apenas duas vezes mais antes de sua dissolução, em 1928 e 1935, com a participação da oposição vetada. Os dirigentes políticos eram escolhidos pelo CEIC da IC de acordo com sua proximidade e fidelidade às posições da ala stalinista no momento. No entanto, como a condução burocrática tanto da URSS como da IC vai ser marcada por ziguezagues e vários giros bruscos. Nesse sentido, a cada vez que a orientação decidida pela burocracia evidenciava seus problemas, se perseguia e se jogava a culpa nos dirigentes locais, como forma de lavar a cara da burocracia.

Em meados da década de 30, a burocratização da URSS dá um salto. Os sovietes são formalmente liquidados com a Constituição de 1936, que os substitui por um Soviete Supremo com eleições de 4 em 4 anos. Esse Soviete Supremo de soviético só tinha o nome, pois na prática acaba com todo o princípio de democracia direta dos sovietes como a revogabilidade dos mandatos [5], retornando para os moldes de um parlamento burguês – onde inclusive ficava sob responsabilidade do partido totalmente burocratizado decidir quem seriam os candidatos. Ao mesmo tempo, iniciam-se os expurgos e os Processos de Moscou, nos quais praticamente toda a antiga direção bolchevique durante a Revolução de 1917 que ainda estava viva na URSS é assassinada, junto a outros integrantes do Partido e do Exército Vermelho (o que vai ter consequências drásticas durante a invasão da alemã à URSS). Na prática, os sovietes já estavam totalmente burocratizados, e muitas dessas lideranças perseguidas tinham sido, até aquele momento, aliadas de Stálin, como Bukharin [6]. O caso de Radek é emblemático, pois meses antes de ser preso tinha participado da formulação da nova constituição. No entanto, a questão era mais profunda: tratava-se de apagar a lembrança do que tinha sido a Revolução de Outubro sob a direção de Lênin e Trótski e de perseguir qualquer um que pudesse representar uma potencial ameaça ao poder de Stálin. Essa perseguição continua no plano internacional, com diversos críticos do stalinismo e integrantes da IV Internacional, inclusive o próprio Trótski, sendo perseguidos e assassinados, além de toda uma imensa campanha de calúnia contra o trotskismo que ainda hoje é repetida por grupos stalinistas.

Apesar das calúnias e da imensa brutalidade da burocracia, Trótski nunca sucumbiu a visões antimarxistas e anticomunistas da URSS que surgiram sob o manto do anti-stalinismo, como as teses de “Capitalismo de Estado” e do “Coletivismo Burocrático”. Pelo contrário, as combateu fortemente. Principalmente em suas obras A Revolução Traída e Em Defesa do Marxismo, Trótski mostra como, apesar da burocratização a base da economia continuava a ser a economia planificada. Nesse sentido, a URSS continuava a ser um Estado operário, ainda que degenerado burocraticamente, e que, portanto, ainda havia conquistas da revolução a serem defendidas tanto da burocracia como do imperialismo. Isso impunha posições muito concretas como a defesa da URSS contra as agressões do imperialismo – naquele caso especificamente a Alemanha nazista – enquanto essas outras tendências pregavam o derrotismo da URSS na Segunda Guerra Mundial. Essa batalha originou cisões dentro da IV Internacional, com muitos dos opositores de Trótski que eram contra a defesa da URSS tendo depois aderido à posições abertamente liberais e contrarrevolucionárias.

No entanto, frente à burocratização da URSS, Trótski levanta a necessidade de uma revolução política. Trótski diferencia essa de uma revolução social, pois não se tratava de mudar as bases da economia e sim de destituir a burocracia governante e retomar a democracia soviética (e não a democracia burguesa ou ao capitalismo como alguns stalinistas tentam apresentar a questão). Junto a essas demandas políticas, Trótski também associava consignas econômicas e sociais:

Não se trata de substituir uma camarilha dirigente por outra, mas de modificar os próprios métodos da direção econômica e cultural. O arbítrio burocrático deve dar lugar à democracia soviética. O restabelecimento do direito de crítica e de uma verdadeira liberdade eleitoral são condições necessárias ao desenvolvimento do país. O restabelecimento da liberdade dos partidos soviéticos, a começar pelo partido bolchevista, e o renascimento dos sindicatos, são indispensáveis. A democracia acarretará, na economia, a revisão radical dos planos no interesse dos trabalhadores. A livre discussão das questões econômicas diminuirá as despesas gerais impostas pelos erros e ziguezagues da burocracia. Os empreendimentos suntuosos, Palácios dos Sovietes, novos teatros, metropolitanos, construídos para assombrar multidões, darão lugar a habitações operárias. As “normas burguesas de repartição” [7] serão, de início, levadas às proporções que uma estrita necessidade exige, para recuarem à medida que cresça a riqueza social, diante da igualdade socialista. As patentes serão imediatamente abolidas, as condecorações relegadas como acessórios. A juventude poderá respirar livremente, criticar, errar e amadurecer. A ciência e a arte sacudirão as cadeias. A política externa reatará a tradição do internacionalismo revolucionário. [8]

A defesa do programa da Revolução Política estava intimamente ligada as concepções da Revolução Permanente de Trótski. No próximo texto, discutiremos essa teoria em oposição ao que era o Socialismo em um só País.


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FOOTNOTES

[1Uma parte dessas discussões são exemplificadas no diálogo de Lênin com Clara Zetkin em 1920. O Livro Mulher, Estado e Revolução de Wendy Goldman também detalha muitas dessas discussões.

[2Integrante da ala “economicista” do Partido Social Democrata-Russo, que foi criticado por Lênin em Que Fazer?. Foi Menchevique nos anos seguintes e na Guerra Civil se posicionou contra os Bolcheviques e o poder soviético nos primeiros anos após a Revolução de Outubro

[3Negociantes que surgiram e enriqueceram através da política da NEP

[4Camponeses ricos

[5Para ver mais sobre democracia soviética, recomendamos esse texto aqui: Trótski, Estado e sovietes.

[6Logo antes de sua execução, enviou uma mensagem a Stálin questionando "Koba, por que você precisa que eu morra?"

[7Quando Trótski fala disso, não quer dizer nenhum retorno à propriedade privada. Como Marx previu em sua Crítica ao programa de Gotha, as “normas burguesas de repartição” (e não de produção) ainda se manteriam na fase inferior do socialismo

[8TRÓTSKI, A Revolução Traída
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