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COLUNA | Pergunte ao jangadeiro

Estando no primeiro mês de 2021, as memórias ainda vivas do ano que nos antecedeu revivem-se na dura realidade da confluência de uma pandemia mundial, atrelada ao descaso nacional (com consequências concretas nas vidas perdidas) e a uma situação econômica de crise. Na realidade, crise para os de baixo, pois os poderosos do andar de cima trataram de aproveitar esse momento de grande fragilidade da população trabalhadora para aplicar os ajustes, demitir em massa, rebaixar salários, uberizar o trabalho. Cada trabalhador nesse país sentiu um pouco angústia do duro chicote da exploração atual como um escravo moderno assalariado jogado em meio a uma pandemia.

terça-feira 26 de janeiro de 2021 | Edição do dia

E nessa dialética do escravo e senhor, quem assume a feição máxima deste nesse contexto, incrivelmente, não faz nem questão de esconder: o presidente da república, Jair Bolsonaro, já começou sua sorte (e nosso azar) declarando todo tipo de racismo e outras barbaridades, mas destaco o particular racismo montado em um regime político advindo de um golpe institucional, sob a égide das elites do atraso (em termos mais precisos, da burguesia brasileira), que fez de sua missão implementar reformas econômicas que tornassem a condição da trabalhadora e o trabalhador brasileiros ainda mais danosa.

Bem, essa história é bem conhecida de vocês, o que ainda parece desconhecido para boa parte da esquerda e do progressismo em nosso país é a batalha ousada por oferecer respostas. Sim, uma parcela importante da população (vejam que essa semana popularidade de Bolsonaro decaiu bastante) já entendeu que estamos vivenciando a barbárie e busca respostas, busca entender como modificar essa situação. “Espere até 2022”, brada um. “Nos juntemos, mesmo com a velha globo, tucanos e moderados, numa frente ampla”, argumenta outro. “estamos juntos só entre a esquerda e centro-esquerda, tentemos mudanças parlamentares ancoradas na pressão popular”, uma pressão que só aparece para constar, porque todo mundo sabe que a discussão do momento para essa esquerda é se vota em Baleia Rossi no primeiro ou segundo turno, nada ver com mobilização de rua.

A situação nossa é lamentável, realmente, com a catástrofe capitalista que estamos vivenciando. Mas é a primeira vez que nosso povo passa por uma situação de enorme opressão social? Como reagir ao fato de se sentir o escravo assalariado moderno em meio a pandemia? Não deveria restar dúvida que a história de lutas gloriosas da nossa população negra, indígena e proletária deveria ser uma fonte valiosa para resposta.

Chamo a atenção para um ocorrido a exatos 140 anos. No dia 27 de janeiro de 1881 começava uma greve que marcaria decisivamente a história do país na sua luta contra a escravidão. Os primeiros estados a abolir a escravidão foram o Ceará e Amazonas, em março de 1884. Isso mesmo, aí a escravidão foi abolida anos antes da Lei Áurea da princesa Isabel, que todo mundo já ouviu falar, porque é branca e princesa.

Do que não se ouviu foi que no Ceará saíam navios com escravos que alimentavam as recém desenvolvidas plantações de café no Sudeste, a nova fonte de riquezas da oligarquia escravocrata, e que no porto de Fortaleza os navios atracavam e as jangadas levavam as populações do navio para a praia e da praia ao navio. Entre os que embarcavam estavam os escravizados. Pois bem, segundo a historiografia, impulsionados por Chico da Mathilde, José Napoleão, Petra Tia Simoa e outros “dragões do mar”, os jangadeiros fizeram uma greve que impedia que os escravos chegassem nos navios. A palavra de ordem proclamada era que “No Ceará não se embarcam mais escravos”. O movimento de importante impacto na história da luta antiabolicionista foi um dos fatores que terminou com a antecipação da abolição naquele estado.

Tomemos nota: os jangadeiros não decidiram que contra a oligarquia escravocrata da barbárie era necessário adotar sua porção "menos pior". Eles não caíram no conto de que tal ou qual navio negreiro era menos cruel, e não decidiram esperar até 2022 ou propor uma frente ampla com escravistas "menos piores" para votar por um presidente que amenizasse a escravidão. Eles fizeram uma greve, eles impediram - com sua capacidade de controle da natureza e intercambio com ela, conhecida como trabalho, no caso a capacidade de controle das jangadas em alto mar - que a escravidão se desenvolvesse no Ceará. E se a crise do sistema escravista não começou aí, a greve intensificou sem dúvida sua bancarrota.

Todos nós compartilhamos da inconformidade com um governo tipo Bolsonaro, mas quando a esquerda começa a ensaiar uma frente com um filhote da oligarquia escravocrata paulista como Dória, com Maias, Baleias Rossis e Cia., ou pensar com todo seu afinco como ajudar a ir ao "menos pior" na "instituição da instituição da instituição" dentro desse Congresso podre recheado de figuras do impeachment, é sinal que o ceticismo já corroeu até os livros de história. Querem mudanças reais e não ilusões? Melhor perguntar aos jangadeiros, eles podem explicar melhor a linguagem com a qual se enfrenta nossa classe dominante.




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