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Para qual guerra nos preparamos? Um debate com Vladimir Safatle

Thiago Flamé

Para qual guerra nos preparamos? Um debate com Vladimir Safatle

Thiago Flamé

A abordagem psicológica nos fenômenos políticos e sociais é bastante sedutora e não deixa de apresentar resultados interessantes e lançar luz sobre aspectos da realidade social que de outra forma permaneceriam na penumbra. O risco, no entanto, que este caminho apresenta é de se isolar as condições históricas, econômicas e sociais, e ignorar as determinações de classe que estão na base dos processos que se quer compreender.

No seu último artigo publicado no jornal El País, Vladimir Safatle parte das reflexões de Freud no livro Moisés e a religião monoteísta, particularmente de uma tese atribuída a Freud de que o poder molda os sujeitos, para compreender o fascismo em geral e o bolsonarismo em particular. Freud não era, evidentemente, um marxista ou um revolucionário, ainda que sua teoria parta de bases estritamente materialistas e pôde contribuir bastante para a compreensão da realidade social. Com a condição de não ignorarmos as determinações de classe, ponto de partida e de chegada de qualquer análise que efetivamente consiga compreender um fenômeno tão complexo como o do fascismo.

Chama a atenção como nesse caminho Safatle passa ao largo das determinações sociais numa escala que não pode ser atribuída completamente ao próprio Freud, se quisermos fazer justiça ao pensamento do fundador da psicanálise. Isso porque toma de maneira unilateral o longo percurso pelo qual Freud se aventura a discutir a relação entre Moisés, o surgimento do monoteísmo e a formação do povo judeu. Antes de citar diretamente a Freud, é útil lembrar que ele localiza na dinâmica imperial do Egito antigo a formação dos rudimentos de uma religião monoteísta, que apesar de ter sido sufocada, teria sido transmitida a Moisés e deste ao povo judeu. Se tivesse sido mais fiel ao pensamento de Freud, poderia ter evitado a debilidade de relegar a segundo plano no texto com o qual debatemos aqui, as condições históricas e econômicas que possibilitam que hoje Bolsonaro possa se utilizar do poder do estado para forjar a subjetividade do bolsonarismo.

Retomando a ascensão de Hitler na Alemanha, que sem dúvida Freud tem em mente em uma série de estudos sociais como esse da formação do monoteísmo. É impossível compreender a vitória de Hitler por fora das condições da crise de 1929, de como impacta a humilhação da Alemanha pós derrota na I Guerra Mundial e as condições de miséria impostas ao povo alemão como subproduto do tratado de Versalhes, da política adota pelas direções de massas da classe operária alemã, a social democracia por um lado e o partido comunista por outro. Tomando em conta esses aspectos fundamentais, a análise da psicologia de massas, da relação entre os lideres, os partidos e sua base social, é um caminho que nos permite uma visão mais refinada desses processos.

Evidentemente o problema analítico de Safatle não é ter recorrido a Freud, mas a separação desta chave interpretativa com a apreensão dos condicionantes de classe que operam na base do surgimento do fascismo. Quem seguiu por esse caminho, analisando os processos no calor dos acontecimentos durante a década de trinta, foi o revolucionário russo Leon Trotsky, quem afirmou sobre a psicanálise freudiana:
“Durante meus anos em Viena eu tomei contato com os freudianos, li seus trabalhos e até mesmo estive presente em seus encontros. […] Eles fizeram uma série de descobertas e conjecturas inteligentes apesar de cientificamente arbitrárias sobre as propriedades da mente humana. […] A teoria psicanalítica de Freud pode ser reconciliada com o materialismo.” [1]

Nos seus textos políticos, que buscavam intervir nos acontecimentos e reverter a política sectária do PC alemão que abriu caminho para a vitória de Hitler sem resistência efetiva, ele integra a análise da dinâmica de classe dos acontecimentos com a análise subjetiva dos diferentes setores de classe que aderem ao fascismo. Particularmente, ele Trotsky aprofunda a análise da subjetividade das classes medias arruinadas pela crise econômica, que passam a odiar seus representantes tradicionais que aderem ao mal chamado nacional socialismo de Hitler como a tentativa de encontrar uma saída de força que resolva a situação desesperadora em que se encontram. Enquanto a social democracia se pauta pelos arranjos parlamentares e confia que as classes medias prezam pela democracia, Trotsky demonstra o profundo equivoco dessa avaliação e desenvolve amplamente como o pequeno burguês confia nos mecanismos democráticos até que seus negócios vão a ruína e ele se veja na miséria, quando ele se torna predisposto a mandar as favas a democracia e passa e estar propenso a aceitar e até clama por uma saída de força.

Isso não significa que esse processo de ruína e desespero dos setores médios da população conduza invariavelmente ao caminho do fascismo. Se abrem também oportunidades revolucionárias se a classe trabalhadora se colocar a altura da situação e levantar uma política correta. Se mostrar que é capaz de derrotar os empresários e banqueiros responsáveis pela situação de miséria do país pode perfeitamente angariar o apoio da pequena burguesia desesperada por uma saída de força. Esse caminho foi barrado por que enquanto a social democracia buscava o caminho das composições parlamentares para combater Hitler, o partido estalinista se negava a defender uma política de frente única na ação com os operários social democratas contra as milícias de Hitler. A dinâmica da situação foi tal que Hitler chegou ao governo pela via eleitoral, sem contar com o apoio da maioria da população, depois avançou com golpes de força, mas só conseguiu consolidar seu poder graças à retomada da economia e o apoio do capital financeiro que se viu obrigado a escolher o caminho da guerra civil para esmagar a possibilidade da revolução proletária. Em suma, o fascismo é isso: a mobilização das classes medias arruinada contra todas as organizações operárias.

Disso tudo, o que se pode dizer da fórmula de que o poder molda as subjetividades? De que poder estamos falando, do poder e do carisma de determinados individuais, do poder estatal, do poder de partidos e movimentos sociais? Pelo texto de Safatle não saberemos nunca. O que não negamos é o papel que determinados indivíduos tem na história, que por vezes é decisivo, nem o papel que tem o poder de estado e partidos políticos na constituição das subjetividades coletivas. Porém, é preciso retomar a máxima marxista de que os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem. Nem o poder estatal tem uma força a-histórica para forjar subjetividades, muito menos individuais por mais poderosos ou carismáticos que sejam, se não atuam de acordo com as tendências e possibilidades da sua época. São questões elementares e certamente Safatle não ignora contextos históricos e sociais, mas frente ao ponto de partido e o fio condutor do seu raciocínio se faz necessário voltar ao mais elementar.

Chegando na realidade brasileira, é preciso relembrar onde está a base do surgimento da atual extrema direita para entender como esse processo termina se associando com a figura de Bolsonaro, mas não se restringe a ela. As mobilizações de junho de 2013 deslocaram o centro político do país e mostraram incapacidade, naquele momento, do petismo seguir jogando seu papel de conter o movimento de massas em favor da elite empresarial e financeira do país. Durante um breve período, a juventude que se mobilizava nas ruas representava mais os anseios das classes medias e de grandes parcelas da classe trabalhadora do que qualquer partido ou governo. As classes dominantes a partir daí já não confiam mais nos serviços prestados pelo petismo e buscaram inflamar as classes medias a tomar as ruas, exacerbaram o sentimento antipetista, culpando esse partido por todos os males da sociedade brasileira, cuja responsabilidade caia mais nessas elites do que no próprio PT. Das mobilizações ao golpe de 2016, à prisão de Lula e sua proscrição eleitoral em 2018, foram se dando as condições para que surgisse e se fortalecesse o que hoje é o bolsonarismo e seus sólidos.

É da crise da política tradicional, das rupturas das classes medias com o PSDB e do desencanto com a política petista que se alimenta o bolsonarismo. Também é do incentivo a meritocracia, ao êxito individual e a ascensão social pela via do acesso ao consumo, tão alimentadas durante os governos petistas, que se nutre agora o bolsonarismo. Sem dúvida Safatle está correto em apontar que não se trata da política tradicional das elites, nem da necropolitica “normal” do estado brasileiro. Que o fenômeno bolsonarista vai além, e que esse sentido se aprofunda durante a epidemia. Vemos nos discursos bolsonaristas os germens do fascismo, a intenção de expulsar do país Na ponta do fuzil as oposições, sua tentativa de arregimentar e utilizar politicamente as milícias cariocas em plena expansão nacional, sua ideologia sinistra que reivindica a tortura e toma como heróis nacionais os torturadores do regime militar. Porém está longe de corresponder a realidade a conversão dos 30% de apoiadores bolsonaristas em camisas negras seja um processo inevitável.

O erro de Safatle é que ele deduz das intenções Bolsonaristas a dinâmica do processo social, “o poder forma as subjetividades”, sem se atentar para a dinâmica viva da luta de classes e suas múltiplas determinações, que condicionam e limitam o desenvolvimento do bolsonarismo até suas últimas consequências logicas. Em um processo agudo da luta de classes as consciências mudam muito rapidamente, e não há motivos para crer que o fascismo teria conquistado uma espécie de vitória preventiva, sem batalhas cruciais. O general prussiano Carl Von Clausewitz já dizia que exagerar a força do oponente é um dos piores erros na guerra. E se sim, temos que nos preparar para ela, como aponta o título do artigo de Safatle, precisamos definir em que momento estamos, e quais forças materiais podemos e devemos mobilizar. E mais importante, como e para que. Muita água tem que rolar ainda por baixo dessa ponte antes de que as milícias cariocas e as classes medias bolsonaristas se convertam, com apoio do capital financeiro, em grupos de choque contra o movimento operário – inclusive que exista e se mobilize um movimento de massas que ofereça riscos a hegemonia burguesa. O que Bolsonaro quer e busca está claro. Mas estamos no inicio de um processo, que certamente se acelerará nas condições impostas pela pandemia, mas que está longe de ser inevitável.

Inclusive algumas definições que Safatle trabalhava sobre o bolsonarismo terão que ser reelaboradas nas novas condições, não por lacunas do autor, mas pelo desenvolvimento próprio da situação. O fascismo de cunho neoliberal que se expressa na aliança Bolsonaro/Guedes, que nos faz lembrar inevitavelmente do pinochetismo, podem estar com os dias contados, na medida em que Guedes vai sendo deslocado pelo general Braga Netto da condução da economia. Inclusive a situação é tal, que ninguém pode afirmar sequer que Bolsonaro vai completar o mandato – não só por que ainda pode ser derrubado pelo movimento de massas – mas por que pode perder o apoio da cúpula militar e ser expulso da presidência pelas próprias elites que possibilitaram sua ascensão ao poder.

Importa bastante separar dois processos. A dinâmica do bolsonarismo como movimento de extrema direita, proto fascista, pode seguir mesmo Bolsonaro fora da presidência, aliás é uma dinâmica que não se pode de forma nenhuma descartar. É um processo social profundo. Também não se pode descartar que o desenvolvimento da atual extrema direita em um movimento fascista se dê a parte da figura de Bolsonaro. Por isso é tão limitada a tese de que o poder forma as subjetividades e nos desarma para as múltiplas variáveis que a situação apresenta. Certamente, seria mais fácil se fosse como Safatle quer. Uma vez apeado do poder Bolsonaro, a extrema direita se desagregaria, mas ela tanto pode encontrar outro líder, como pode se fortalecer na oposição. Nada de fundamental seria resolvido por um processo de Impeachment e questão está longe de ser que se perdeu um mês para avançar nesse sentido. Afinal, não é o impeachment também uma modalidade de saída parlamentar, ao modo das cartas e manifestos que Safatle tão bem ridiculariza, quando fala da esquerda que pensa que o regime democrático ainda existe no Brasil.

É urgente que se constitua uma esquerda revolucionária que tome as coisas na sua profundidade e que consiga influencia em setores de massas e que se constituam movimentos de resistência para enfrentar as consequências da pandemia e as ameaças autoritárias (que vem não só e nem principalmente de um movimento fascista que não existe ainda enquanto tal, mas que pode vir também dos tradicionais uniformes verde-oliva, que inclusive poderiam se favorecer com um processo de impeachment). E sobretudo é necessário não dar por fato dado que 30% da população seguirão engrossando as fileiras do bolsonarismo até que sejam arregimentados contra a oposição e as organizações operárias. Existe ai nesses 30% uma parcela dos trabalhadores mais precários e oprimidos do país, que ainda podem encontrar um caminho para romper com o bolsonarismo e escapar a trágica oposição entre a bolsa e a vida.


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FOOTNOTES

[1Martin A. Miller. Freud and the Bolsheviks. New Haven: Yale, 1998. p. 87.
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Thiago Flamé

São Paulo
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