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FILME PANTERA NEGRA | Pantera Negra: racismo, ficção e realidade

Milhões pessoas aguardaram ansiosamente o lançamento de “Pantera Negra”. Já viu ou vai ver o filme? Quer entender o porquê de tanta expectativa? Confira um pouco sobre o filme mais politizado do gênero nos últimos anos (possíveis spoilers!).

Allan CostaMilitante do Grupo de Negros Quilombo Vermelho - Luta negra anticapitalista

domingo 25 de fevereiro de 2018 | Edição do dia

Poucos filmes recentes geraram tanta expectativa como “Pantera Negra”, que estreou no último dia 15/02 nos cinemas nacionais. Em uma sociedade profundamente racista, a indústria cultural não está livre das contradições da sociedade, pelo contrário reproduz em grande medida os valores e ideias da classe dominante e no que se refere ao papel dos negros no mundo dos filmes de animação e de heróis não seria diferente. Por isso é completamente compreensível a grande expectativa e o entusiasmo que o filme Pantera Negra tem gerado em milhões de negros não apenas no Brasil, mas internacionalmente, ao assistir um filme de herói não apenas com um protagonista negro, mas com toda uma trama construída em grande maioria por personagens também negros sob com uma mitologia e aspectos de diversas culturas negras.

O filme vende a promessa de ser um manifesto pela diversidade e pelo povo negro, tentando dar vazão a um sentimento de representação de jovens e adultos negros que passaram décadas vendo as telas de cinema e TV dominados por heróis e heroínas brancos, com problemas e padrões de beleza brancos e em que aos negros eram reservados apenas um ou outro papel coadjuvante, muitas vezes de criminosos ou de alívio cômico, deixando evidente o modo estereotipado com o qual Hollywood trata a presença de negros em suas produções.

Mais do que apenas mais um filme de Super-Heróis, Pantera Negra é um filme que expressa de forma distorcida vários aspectos políticos do “mundo real”, sendo considerado um dos mais politizados do gênero em muitos anos por relacionar coisas como escravidão, colonização, crise migratória, encarceramento em massa e as lideranças e movimentos históricos dos negros nos EUA. Toda a comoção em torno do filme se explica pelos anseios frustrados de milhões de negros que vivem nos marcos dessa sociedade racista. Do ponto de vista de Hollywood, é uma clara resposta da indústria cultural aos problemas raciais que tocam os EUA, sobretudo sob o governo racista e xenófobo de Donald Trump e que não podem mais ser simplesmente ignorados, precisam ser canalizados para dentro da esfera da representatividade negra nas telas de cinema. Certamente é uma estreia que merece nossa atenção.

Criado há mais de 50 anos por dois dos maiores desenhistas de quadrinhos de todos os tempos, Stan Lee e Jack Kirby, O Pantera Negra fez sua primeira aparição em julho de 1966, apenas alguns meses antes da fundação do famoso Partido dos Panteras Negras. Obviamente o personagem e o partido tiveram uma relação interessante nos anos seguintes. O Pantera Negra foi o primeiro herói negro com superpoderes e também o primeiro a ter uma revista própria. Os criadores chegaram a tentar evitar a coincidência entre o nome do herói e do partido temendo algum tipo de impopularidade e alteraram o nome dele para “Leopardo Negro”, mas no auge da expansão e popularização do Partido dos Panteras Negras, a desaprovação dos leitores fez com que voltassem atrás e mantivessem o nome original.

Em meio a uma histórica onda de luta do movimento negro que, dentre outras coisas, buscava lutar em defesa dos mais elementares direitos civis negados aos negros durante séculos pela burguesia norte americana e por poder para o povo negro, a indústria cultural criou o personagem Pantera Negra buscando dialogar com esta subjetividade do povo negro através de uma das suas expressões mais populares na época, conhecida como “Era de Prata” dos quadrinhos. A revista solo do herói esteve entre as mais vendidas dos EUA nos anos seguintes e, coincidentemente (ou não), teve seu declínio no final dos anos 70 e início dos 80, junto com o desmantelamento do Partido pelas mãos do FBI. O herói teve sua popularidade debilitada dali em diante, se mantendo conhecido apenas pelos fãs através de algumas produções menores.

O retorno do herói às massas através do universo cinematográfico da Marvel aconteceu em 2016 no filme “Capitão América: Guerra Civil”, que traz o prólogo para a história solo lançada no último dia 15. Na trama, o princípe T’Challa, interpretado por Chadwick Boseman perde seu pai, o Rei T’Chaka, em um atentado terrorista e agora se vê em meio a uma disputa pelo trono e pela unidade de Wakanda, país fictício no coração da África, nação mais rica e desenvolvida tecnologicamente da Terra por conter a única fonte de um mineral cheio de propriedades especiais, chamado Vibranium, que permitiu que Wakanda se mantivesse escondida e protegida do resto do mundo, evitando assim a intervenção do europeu que acontecia em larga escala pelo resto do continente. O filme do diretor Ryan Coogler, vencedor do Globo de Ouro com o filme Creed – nascido para lutar, conta ainda com um elenco astronômico que incluí Lupita Nyong’o (dispensa apresentações), Michael B. Jordan (também de “Creed” e "Fruitvale Station", que conta a história do assassinato de um jovem negro pela polícia dos EUA), Danai Gurira (de “The Walking Dead”), Daniel Kaluuya (do premiado “Corra!”), além de Forrest Whitaker, Andy Serkis e Martin Freeman (os dois últimos como os únicos brancos do elenco principal). Astronômicas também são as cifras do filme que custou 200 milhões de dólares, mas logo no primeiro dia de exibição arrecadou mais de 25 milhões de dólares.

Evitando os spoilers, podemos dizer apenas que o longa entrega bastante aventura no mesmo nível dos recentes filmes da Marvel, com um diferencial muito positivo em termos de história, o vilão Killmong, de Michael B. Jordan, em uma interpretação que realmente nos convence de seus propósitos e nos leva às principais reflexões do filme, chegando a despertar o carisma dos expectadores, afinal, seu personagem vem das violentas ruas de Oakland e vivencia todas as mazelas aos quais negros americanos estão expostos, principalmente os mais pobres. É um vilão em busca não apenas de vingança, mas de transformar a realidade dos negros através da força.

O grande dilema do filme se apresenta quando o segredo de Wakanda como nação mais rica e próspera se mostra cada vez mais fragilizado, dividindo o povo internamente entre aqueles que acham necessário se defender pra tentar manter as tradições e a segurança de um lado, e aqueles que acham que é necessário sair das sombras e intervir diante dos acontecimentos que oprimem os irmãos negros pelo mundo. Uma referência nada enrustida à politica anti-imigração de diversos países, mas principalmente dos EUA de Donald Trump (com direito a cutucadas bem mais explícitas nas cenas pós créditos). Com esse pano de fundo, as duas propostas do filme são colocadas na mesa: o vilão acha que Wakanda deve usar seu poderio para intervir nas demandas dos negros através de sua superioridade tecnológica e militar, enquanto o Pantera Negra defende a ideia de que deviam intervir de forma diplomática e humanitária. Resumidamente: uma proposta de uso de força pelos negros contra uma proposta que prega confiança nas instituições da democracia burguesa e valores reformistas. Desse ponto de vista, os traços progressistas de algumas das ideias do vilão ficam marcados pela associação à outros métodos "maus", como impulsividade, agressividade, machismo e desrespeito às tradições.

Aqui a vocação do filme fica bastante evidente: ele busca ser a resposta da indústria cultural aos novos levantes de luta racial nos EUA. Uma resposta àqueles que tomaram as ruas e gritaram “Black Lives Matter” recentemente diante do assassinato de negros pelas mãos da polícia estadunidense. A resposta de uma indústria para se relocalizar depois que se viu contestada nos últimos anos sob acusações de racismo nas principais premiações que ano após ano nem sequer indicavam negros aos prêmios. Uma resposta que, verdade seja dita, é obrigada a reconhecer a enorme força com que os negros sempre se levantaram ao mesmo tempo em que busca canalizar tudo isso por um viés pacifista, ainda mais se tivermos em vista que em sua identidade civil, o príncipe T’Challa é um diplomata e homem mais rico do mundo (na verdade, o Pantera Negra foi identificado como o personagem mais rico de toda a ficção, uma analogia às riquezas naturais do continente africano, mas usada na lógica capitalista).

Esse objetivo é alcançado através também da produção espetacular do filme que não poupa referências às raízes do povo negro: roupas, armas, arquitetura, aspectos religiosos, um sotaque incorporado por todos os atores e até alguns golpes de capoeira se juntam para construir uma fusão entre tradição e o moderno universo do herói.

A quantidade de mulheres no eixo principal do filme e com destaque em todas as cenas de ação também é um exemplo do “espírito de época” e do anseio por representatividade, as "Dora Milaje", guarda pessoal do Rei de Wakanda que é formada apenas por mulheres chama atenção pelo visual e atitude de disciplina e força; Shuri, irmã de T’Challa, tem o domínio tecnológico mais avançado do planeta, sem falar nas líderes do conselho real que se colocam ativamente em todas as discussões. Aqui se explora largamente a imagem de mulheres fortes, em cargos de inteligência e estratégia, assim como é uma forma de fazer referência às tradições matriarcais de tantas civilizações africanas antigas.

Se no final dos anos 60 os criadores do personagem de certa forma tentaram desviar qualquer ligação explícita do personagem com o cenário político, em seu ressurgimento nos cinemas, ele percorre o caminho oposto. Ryan Coogler fez um filme consciente de seu peso, e deixa isso claro nos diálogos com as questões da representatividade e politização ou mesmo em pequenas referências, como o fato de o começo do filme se dar em Oakland, cidade onde começa também o Partido dos Panteras Negras. Sobre estes, fica apenas a constatação do risco de o filme esvaziar a tradição de luta real e o aspecto mais questionador associado aos Panteras Negras, ligando o uso da violência como defesa, uma das principais táticas do partido, ao vilão do filme, enquanto o Herói leva o nome "Pantera Negra" à aspirações reformistas ou mesmo "democratas". Vale lembrar que a ex-primeira-dama dos EUA, Michelle Obama, rasgou elogios ao filme, fez isso sem se recordar que no governo de seu marido, o primeiro de um negro nos EUA, o encarceramento em massa da população negra continuou uma realidade na maior população carcerária do mundo, nem se lembrou que foi na era Obama que Mike Brown e Eric Gardner foram mortos, como dezenas de outros negros, pelas mãos da polícia estadunidense. Ou ainda que os EUA assassinaram negros no continente africano utilizando drones no mesmo período. Por fim, o governo Obama que manteve presos ou perseguidos os antigos Panteras Negras que lutaram na vida real pelos direitos dos negros, como é o caso de Mumia Abu-Jamal e Assata Shakur.

Muito se engana quem encarar esse filme como apenas mais uma produção hollywodiana, O Pantera Negra retorna com seu propósito original de suprir uma demanda por representatividade mas dessa vez sob o enredo das mazelas modernas. Ao seu modo, quer fincar suas garras nos corações e influenciar uma nova geração de jovens negros que não suportam mais tanta opressão e exploração e que se colocam contra os abusos de uma sociedade que não tem nada a nos oferecer.

O filme diverte, enche os olhos, emociona e tem gerado uma efervescência entre os negros, e justamente por isso não pode ficar restrita à esfera da representação cultural. Queremos que toda a energia heróica do povo negro transborde as telas do cinema ganhando as ruas, as fábricas, escolas e locais de trabalho questionando cada caso de racismo, as reformas que o governo e os patrões preparam para que os negros trabalhem até morrer e sem direitos assim como a escandalosa intervenção federal no Rio de Janeiro. Construímos a agrupação de negros e negras Quilombo Vermelho confiantes de que se apontamos nesse caminho, podemos fazer tremer a burguesia e suas instituições racistas para pôr abaixo o racismo e o capitalismo.


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