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CORONAVÍRUS | Pandemia do Coronavírus: tempos de recrudescimento da coerção e decadência do capital

Luiz PustiglioneDoutorando em educação pela UFSC e professor da Rede estadual de SC

quarta-feira 1º de abril de 2020 | Edição do dia

O mundo está sendo acometido de uma grave crise combinada: econômica e sanitária. O novo vírus descoberto na China (mas ainda sem origem certeira) e que se espalhou muito rapidamente pelo mundo expõe com muita nitidez a ganância do capital que pretende se apoiar numa emergência de saúde pública para adaptar-se, reiventar-se e seguir sua sanha de exploração da classe trabalhadora.

Pretendemos, ao longo desse texto, destrinchar algumas explicações razoáveis acerca dessas duas crises e de como estão imbricadas de maneira inevitável no atual cenário mundial com algumas “cenas excepcionais” a ocorrer no Brasil. A ideia é tratar da questão viral sem descolá-la do problema social maior de nosso tempo: o capitalismo – responsável direto pela situação deficitária das condições de combate ao novo vírus; a proposta é também projetar alguns cenários futuros para os quais podemos apontar com alguns elementos concretos da realidade, como é o caso da ampliação da vigilância e outros meios coercitivos sobre a população, em especial, sobre a classe trabalhadora.

Um problema anunciado diversas vezes e ignorado solenemente!

Não é de hoje que diversos autores vêm apontando para a possibilidade de uma pandemia da proporção da atual. Diversos outros patógenos antecederam o atual SARS-Cov2 na tentativa de atingir uma combinação genética que permitisse a transmissão entre humanos em larga escala. Os elementos combinados que criam as condições ideais para que um vírus dessa potência surja são velhos conhecidos nossos: rotas de migração de aves selvagens, convivência com animais domésticos e cada vez menos áreas de floresta, bem como um farto mercado ilegal e pouco higiênico de carnes de caça (comuns na cultura culinária de diversos povos) no oriente.

Para quem não é familiarizado com termos e não conhece a biologia das doenças, mas pretende “alfabetizar-se” acerca desses problemas, uma boa indicação é Mike Davis, autor de “O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária”. Nesse livro, o autor aponta uma série desses patógenos predecessores do novo Coronavírus e uma série de problemas que a humanidade caminhava para ter no caso de um deles conseguir superar o bloqueio da transmissão entre seres humanos. O eleito como o principal possível vilão supremo foi o H5N1, que ficou mais conhecido como gripe aviária e que, por pouco, não antecedeu com possível taxa de “sucesso” ainda maior a atual pandemia, feito também quase alcançado pelo irmão mais velho do novo vírus, o SARS-1.

O fato é que com o acúmulo científico que se tinha sobre esse passado e a evolução na produção de alimentos – em especial as carnes de aves e suína, mas não só – sob o modo de produção capitalista que passou a concentrar a produção em enormes instalações, nas quais convivem dezenas de milhares de aves amontoadas e que permitem que um vírus que, em outras condições não tivesse a virulência que adquire ali, era plenamente possível antever e, acima de tudo, evitar que houvesse uma situação como a que estamos vivenciando (sobre isso há um livro recente e uma entrevista no youtube com o autor). Ainda que não fosse possível evitar, pois no modo de produção capitalista essa é a forma consagrada de produzir-se carne, e evitar atividades ilegais como o tráfico silvestre não é exatamente uma prioridade do capitalismo, era possível ter preparado as condições dos sistemas de saúde nacionais ou a construção de um sistema de saúde internacional que dessem conta de uma pandemia dessa magnitude.

A contradição que o capital impõe para “equilibrar” ao seu modo saúde/doença de forma que gerem lucro às indústrias que cercam esse “mercado” foi impeditiva nessa possível, mas não realizada, preparação mundial para o surto. A grande indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar e produzir medicamentos de baixo custo e/ou de prevenção e acaba investindo em “necessidades” que remetem ao lucro imediato, como doenças crônicas, impotência sexual etc. Isso sem mencionar o mercado de vacinas que é pouquíssimo lucrativo, inversamente proporcional à importância que possui o produto em questão. Não à toa os grandes produtores de vacinas no mundo são laboratórios públicos estatais e o país que se destaca na área é Cuba.

Nesse sentido, é provável que os países a serem destacados como melhores combatentes à atual pandemia do covid-19 acabem sendo aqueles nos quais a presença estatal é marcante, em especial pelas suas capacidades de reverter setores industriais para atendimento das demandas momentâneas, mas também pela sua capacidade de monitorar e intervir sobre os corpos dos cidadãos e sobre seus territórios.

A pandemia como elemento definitivo da imposição de uma vigilância total?

Como nos alerta David Harvey em seu mais recente texto, a tendência é que, ao cessar a crise pandêmica, os melhores exemplos sejam aqueles advindos da China e os piores dos EUA. O elemento diferencial que o autor aponta e que nos parece bastante óbvio é a presença do Estado na economia, afinal, para a China não foi nem um drama, tampouco difícil, virar a produção industrial de determinados setores para produzir os equipamentos e insumos necessários para esse combate. Mesmo nos EUA, Trump ordenou que uma fábrica da indústria automotiva passasse a fabricar respiradores.

Esse exemplo chinês pode fortalecer os argumentos dos setores que defendem uma maior cobertura estatal para determinadas necessidades humanitárias e para uma melhor “equalização” da desigualdade social. No entanto não configura exemplo para aqueles que defendem uma superação total do capitalismo pela via revolucionária, afinal, diferente do que se apregoa nos discursos da extrema direita, a China está longe de ser um país “comunista”.

O exemplo chinês vem carregado de vigilância pesada e persecutória sobre seus cidadãos, afinal, a mesma facilidade que o governo chinês teve para virar determinados setores da economia na direção necessária, teve para ampliar o já forte sistema de vigilância estatal sobre seus cidadãos. Utilizando-se de aplicativos nos celulares o Estado fornecia QR codes para que as pessoas pudessem transpor as barreiras que tinham necessidade para atividades essenciais que poderiam ir desde a ida ao trabalho até acessar um hospital etc, além de começar testes de pontuação social, adquirida através de “bom comportamento” perante os critérios estabelecidos e da utlização de câmeras de identificação facial e térmicas para conrolar grandes fluxos ainda antes da interrupção mais geral da circulação de pessoas.

Na Coreia do Sul também há notícias que dão conta da criação eficientemente rápida de um mega esquema de vigilância e controle da circulação da população, que permitiu ao país um combate mais “moderno” à pandemia, podendo parar determinadas regiões ou serviços com base em dados reais obtidos pela testagem massiva que aplicaram em sua população. Um dos outros “segredos” da política coreana do sul – para além da testagem massiva - foram pulseiras com localizadores por GPS que eram impostas às pessoas que eram testadas e não poderiam tirá-las (caso o fizessem um alarme disparava em uma central e essa pessoa poderia vir a ser presa) até que fizessem novo teste para ganhar outra pulseira com outra identificação. Essas pulseiras permitiam ou não que se saísse de casa e determinava onde cada pessoa poderia acessar ou não.

Podemos estar em meio a um período no qual tentará se passar um aumento da coerção estatal se comparado com o período anterior no qual buscou-se ampliar o consenso através da sociedade civil – considerado o estado integral gramsciano e o par dialético inseparável coerção-consenso. Ou seja, se antes buscava-se através da ideologia convencer aos setores mais explorados de que o mais conveniente para se viver nesse mundo era a meritocracia, o neoliberalismo e a busca individual pelo sucesso e multiplicavam-se iniciativas para cooptar pessoas das classes subalternas, agora poderemos presenciar a inversão do pólo nessa dupla conceitual, com um aumento significativo dos aparelhos de repressão estatais – no mínimo como bom exemplo de combate à pandemia para o senso comum.

É preciso ser crítico frente a esta situação, pois, se entendemos a gravidade da pandemia e da necessidade do isolamento social para um primeiro combate ao vírus, não podemos aceitar que tais medidas tornem-se uma nova panaceia que servirá para a contenção de toda e qualquer crise, não apenas as pandêmicas como a atual, mas inclusive crises sociais com explosões de manifestações, o que interessa não somente à casta dominante da burocracia e burguesia chinesas, mas à burguesia mundial de conjunto. Para não permitirmos o cenário hipotético proposto no texto de Raúl Zibechi (disponível no mesmo e-book do texto anteriormente citado de David Harvey), é importante que busquemos meios para garantir uma solução científica compatível com as técnicas e tecnologias disponíveis em pleno século XXI, que poderiam ser quarentenas orientadas por testagens massivas da população, por exemplo.

É claro que não podemos nos iludir de que só há essa solução, pois, todas essas medidas coercitivas podem ser perfeitamente adaptadas à uma lógica de mercado mais próxima à realidade que vivíamos até essa pandemia em outras áreas, com empresas exercendo o papel terceirizado pelo Estado de controle populacional. Mas, dados os atuais questionamentos acerca da eficácia dessa lógica perante a uma situação emergencial, essa não parece ser uma tendência, ao contrário, os indícios apontados já no início da pandemia são no sentido de que mesmo alguns governos declaradamente neoliberais irão “apelar para o Estado”.

Ouro elemento que merece atenção especial é que essa capacidade estrutural de lançar mão desse tipo de recursos tecnológicos não está ao alcance de todo e qualquer país no mundo, o que nos impele a refletir sobre quais outras formas de aumento da coerção são possíveis e nos leva, necessariamente a refletir sobre a situação do Brasil que está, aparentemente, um ou mais degraus abaixo de outros países já citados.

Brasil: aqui o buraco é mais embaixo!

Nas palavras de Roberto Leher, por conta de termos um governo que ainda é difícil de nomear, mas cuja melhor aproximação conceitual seria fascista ou protofascista, temos um cenário que parece mais escancaradamente anti classe trabalhadora, ou, que leva às últimas consequências a prática do darwinismo social. Seria sob essa lógica que se movimentariam o governo federal e os setores aderentes da burguesia ao negacionismo da pandemia e defensores da “volta a normalidade” ou da “quarentena vertical” que levará, de forma consciente, à morte milhares – quem sabe milhões -, de trabalhadoras e trabalhadores.

Sem entrar no mérito da caracterização do governo, a intenção é dar destaque para o fato de que sob uma aparência de “alucinação” individual ou coletiva de um pequeno grupo que cerca o núcleo central do poder federal no país o que está a efetivar-se é uma política de extermínio a partir de uma seleção nada natural, mas baseada em critérios de classe e orquestrada pela classe dominante brasileira.

É importante afirmar que o mesmo autor citado no começo deste texto, Mike Davis, já alertou (aqui) que muitos aspectos sobre o novo vírus ainda são desconhecidos e ele pode sofrer diversas mutações ao longo de sua jornada de contaminação da população mundial, em especial, se desconhece quais os possíveis efeitos em países com baixa taxa de saneamento básico e graves problemas econômicos e sociais, como é o caso do Brasil e diversas nações do continente africano. Outra infectologista (aqui) também já mencionou possíveis complicações desse novo vírus sobre a população tuberculosa, que é muito grande no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, com maior gravidade nas favelas e em número assustador no sistema prisional.

Estamos, portanto, perante uma política deliberada de assassinato em massa da classe trabalhadora brasileira. Essa gana não encontra, por outro lado, um polo de resistência que esteja à altura dos desafios que estão inevitavelmente impostos à nossa geração. Em outras palavras, há uma crise generalizada nas organizações de esquerda com alguma influência sobre o conjunto da classe que se reflete na completa falta de respostas ou de respostas completamente descoladas das reais necessidades e demandas que temos.

Se é verdade que perante às declarações bizarras do presidente alguns governadores e prefeitos, ou mesmo um de seus ministros de Estado, pareçam pessoas razoáveis, tomando medidas necessárias para que se estanque a crise que já se instalou e vai piorar ainda mais a já crítica situação da saúde pública brasileira, essas mesmas medidas não serão nem de longe suficientes para que evitemos que a política de assassinato em massa seja um sucesso. É factível pensar também que no Brasil não teríamos ações coercitivas tão “delicadas” como as de ordem tecnológica, como na Coréia do Sul, mas sim sob a base de porradas e cassetetes.

A necessidade premente, portanto, é tomarmos o controle do combate à pandemia nas mãos da classe trabalhadora e de quem entende do assunto de fato. Isso significa redirecionar produção de fábricas, estatizar cada leito privado no país sob administração centralizada dos trabalhadores do SUS, mas acima de tudo, TESTAGEM EM MASSA da população, a começar por quem já está circulando e pode estar servindo de vetor assintomático do vírus, mas com a intenção de atingir o conjunto da população, sintomática ou não, pois, somente assim seria aceitável pensarmos numa retomada de determinadas atividades.

Essa retomada também não deve ser uma retomada do ciclo de exploração e extração de mais-valia pela classe dominante, ao contrário. A classe trabalhadora brasileira precisará construir um caminho para uma constituinte livre e soberana que possa se desfazer de todos os entulhos acumulados constitucional e economicamente desde 1988 e antes, rumo à construção de uma sociedade socialista que extermine de vez a doença chamada capitalismo.




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