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DEBATE SOBRE ESCRAVIDÃO | Os pensadores modernos e a escravidão africana: escondendo o pecado original (Parte 2)

terça-feira 22 de setembro de 2015 | Edição do dia
Sir Peter Lely, Elizabeth Countess of Dysart, c. 1650

Diderot e os enciclopedistas
De forma relativa podemos encontrar algumas contra tendências. Diderot parece ter tido contato e influência direta sobre os primeiros críticos a escravidão real. Ele contribui para o livro do Abade Raynal onde, em tom messiânico, um “espartaco negro” vingaria as violações dos direitos naturais do novo mundo. O líder da revolução haitiana Toussaint l’ouverture teria tido contato com esse livro. Porém, autores como Michel-Rolph Trouillot questiona sobre a radicalidade dessas passagens que devem ser entendidas como um alerta aos europeus.

A enciclopédia editada por Diderot contém vários verbetes críticos a escravidão real e favorável ao seu fim. Porém, aqui a contradição entre o tom filosófico radical e uma moderação sobre o fim da escravidão se mantém. Diderot e os enciclopedistas mantiveram na enciclopédia inúmeras concepções racistas. E o fim da escravidão, para eles, deveria ser feita em um processo gradual onde os africanos deveriam ser preparados para a liberdade.

As enciclopédias iluministas são um bom exemplo do racismo como um produto histórico mais recente do que geralmente se imagina. É conhecido que o racismo enquanto doutrina cientifica é um produto do século XIX. Em muitos sentidos é no contexto iluminista que o discurso de nação e a noção de raça são vinculados. Ainda que o fim da escravidão fosse um horizonte enevoado para alguns pensadores que viam as evidências de crise do sistema colonial com eventos como as independências das colônias e a resistência escrava, a ideia de superioridade racial ganhava força. O racismo surgia como uma ideia de que os europeus eram preparados para a liberdade e outros povos precisavam ser tutelados para tal. Essa ideia será uma justificativa para a manutenção da escravidão e da defesa de que seu fim deveria ser gradual.

Adam Smith e os liberais
É comum a defesa de que Adam Smith defende o trabalho livre como mais lucrativo que o trabalho escravo. Porém, não é correto afirmar que a defesa do trabalho livre era um ataque direto a instituição da escravidão. Adam Smith não só reconheceu que o desenvolvimento moderno europeu dependeu da lucrativa produção açucareira, como chegou a defender a escravidão nas colônias¹. Vemos que não existe aqui uma contradição radical no pensamento liberal. Os seguidores de Smith nos EUA mantinham a dualidade. Thommas Jeferson, por exemplo, era proprietário de escravos.

A relação entre liberalismo econômico e escravidão deve ser contextualizada na transição da fase originária do capitalismo e sua fase industrial. Segundo Jacob Gorender:
“o próprio liberalismo, inglês ou francês, padeceu dessa contradição, que talvez não seja uma contradição entre o liberalismo e o escravismo, mas somente uma incorporação do escravismo como integrante de um sistema colonial. Trabalho livre na Europa, escravidão nas colônias americanas - tal a ordenação segmentada, estabelecida pela teoria liberal”.

As exposições dos liberais são muitas vezes genéricas, para fortalecer a ideia de que o desenvolvimento das categorias próprias do capitalismo eram tendências naturais do homem. Neste sentido Adam Smith pretende dar uma universalidade para a noção de trabalho livre como mais lucrativo. Porém, ainda que páginas de “A riqueza das nações” sejam dedicadas a questão da escravidão, não dá centralidade para análises concretas do sistema de exploração escravocrata, ainda que tenha tido contato com cálculos que demonstravam a lucrabilidade do trabalho escravo. Como demonstra Eric Williams esta é uma questão particular de “tempo, espaço, trabalho e solo” e não uma formulação abstrata. E em muitos sentidos os economistas clássicos sabiam que a “O trabalho escravo é mais caro do que o livre sempre que exista uma abundância de trabalho livre”²

É necessário ver o liberalismo não só como um sistema teórico, mas como um conjunto de posturas políticas. Assim o máximo que os liberais puderam chegar foi uma transição gradual para economia industrial. Para isto era necessário a manutenção de condições cruéis criadas pela própria escravidão e que esta transição fosse mais disciplinada possível. Tal postura será visível nos Estados Unidos onde os defensores de Adam Smith não viam contradição em serem proprietários de escravos. O máximo que conseguiram chegar, antes da Guerra de Secessão, foi culpar a Inglaterra pela necessidade do trabalho escravo. Também, é notável que nestes formidáveis economistas o nascente trabalho livre era analisado com tanto rigor, mas o funcionamento da escravidão ainda com descaso.

Hegel
É conhecida as posições de Hegel sobre a África como “continente sem História”; “Terra de crianças” e suas posições que responsabilizavam os próprios escravos por sua situação.
“Se um homem é um escravo, sua própria vontade é responsável por sua escravidão, assim como é sua vontade a responsável pela sujeição de um povo. Portanto, a injúria da escravidão não se deve simplesmente a escravizadores ou conquistadores, mas também aos próprios escravizados e conquista dos.”
Essas posições são mais vigorosas na maturidade de Hegel. Hegel se incluía entre mais um daqueles que consideravam necessário que os africanos, fossem amadurecidos para a liberdade. Esta, para Hegel, é a essência do homem. Porém, os africanos, exemplos do estado de natureza para ele, provavam que a injustiça era absoluta fora “do estabelecimento de um estado racional”. Logo:
“A escravidão é a injustiça em si e por si só, pois a essência da humanidade é Liberdade; mas, para tanto, o homem deve amadurecer. A abolição gradual da escravidão é, portanto, mais sábia e mais equi tativa que sua súbita supressão.”

Porém, podemos encontrar em Hegel momentos onde estas assertivas não eram tão claras. Segundo Susan Buck-Morss é necessário estudar os impactos que a revolução haitiana produziu nos pensadores europeus. Hegel para este propósito é possivelmente um bom exemplo. Segundo a autora existe um radicalismo que não é encontrado nos textos mais maduros de Hegel. O período radical estaria na primeira vez que aparece a dialética do Senhor e Escravo, na “Fenomenologia do espirito”, e nos escritos que o precedem. Enquanto Hegel habitava a cidade alemã de Jena.
Buck-Morss sustenta que a dialética do senhor e do escravo possui um diálogo com os acontecimentos da Revolução Haitiana. Os argumentos historiográficos da autora é de que Hegel lia em Jena o jornal Minerva, que cobriu mais de uma década os acontecimentos haitianos. Hegel teria tido contato com a maçonaria radical que teve participação direta na insurreição haitiana. E uma citação tardia em 1830 no “A fenomenologia do espirito subjetivo”.

As análises geralmente sobre a primeira aparição da dialética do senhor e o escravo oscilam entre a afirmação de que seria um debate direto com os gregos (Aristóteles e Platão), um exemplo totalmente abstrato sem referência a acontecimentos reais; sobre a dinâmica da Revolução Francesa; e uma antecipação da noção de luta de classes através da leitura de Adam Smith aproximando Hegel da noção de sociedade civil. Susan Buck-Morss está entre os que não negam uma interpretação social. Uma carta de Scheling a Hegel haveria colocado a questão de dialogar com os acontecimentos presentes: "Quem há-de querer se enterrar-se no pó da antiguidade quando o movimento de seu próprio tempo não cessa de revirá-lo e varrê-lo adiante?” Mas a posição da autora é que onde mais “se encaixa” a dialética do senhor e o escravo, pelo menos em suas primeiras exposições, é com o acontecimento de auto libertação dos negros haitianos. Neste sentido a modernidade de Hegel estaria em uma tríade: revolução francesa, sociedade civil e revolução haitiana.

O impacto dos acontecimentos de Saint-Domingue em Hegel teria feito as formulações da dialética do senhor e o escravo mais radicais que nos momento posteriores. A primeira noção do senhor como independente devido a sua abundância de propriedade, logo se inverte para evidenciar sua dependência do escravo que produz sua abundância. O escravo por sua vez prova sua condição de liberdade na medida demonstrando que não são coisas, como as leis e o pensamento europeu haviam afirmado, mas sujeitos que transformam a natureza. Nestes primeiros escritos de Hegel a libertação do escravo seria uma auto-realização onde ele prefere enfrentar a morte a sua subjugação. Muito dessa radicalidade ainda se manteria na Fenomenologia do Espirito. De acordo com Susan-Buck-Morss:
E é somente arriscando a própria vida que a liberdade é obtida [...]. O indivíduo que não arriscou sua vida pode, sem dúvida, ser reconhecido como uma pessoa (a agenda dos abolicionistas!); mas ele não alcança a verdade desse reconhecimento como uma autoconsciência independente". O objetivo dessa libertação, da libertação da escravidão, não pode ser a sujeição, por sua vez, do senhor, o que simplesmente repetiria o "impasse existencial" do senhor e sim a eliminação completa da instituição da escravidão.

Conclusão
A defesa de Susan Buck-Morss implica em elevar os eventos revolucionários de Saint-Domingue a um status epistemológico. Autores, como Michel-Rolph Trouillot, pensaram a relação entre a Revolução Haitiana e a Europa como algo impensável para estrutura de pensamento europeu e as estratégias de esquecimento, que a ideologia ocidental fez, e continua a fazer, sobre eventos grandiosos protagonizados por negros como a Revolução Haitiana.

A hipótese apresentada em Hegel e o Haiti permite radicalizar ainda mais a
importância da luta contra o escravismo realizada pelos próprios escravos. A
Revolução Haitiana, apesar de todo pensamento racista presente nos maiores pensadores europeus, implicou um impacto imenso também sobre o pensamento europeu. Privilegiar, uma suposta defesa universal da liberdade nos filósofos iluministas, ou uma defesa intransigente do trabalho livre nos economistas liberais é diminuir a importância das lutas anticoloniais para o fim da escravidão e fundamentalmente: uma história contada pelos vencedores que busca apagar a grandiosidade dos feitos dos oprimidos.

A influência da Revolução Haitiana na formulação da dialética do senhor e do escravo ainda é uma hipótese, ou mesmo, um fragmento histórico. Porém, ela nos permite a apologia de outra forma de narrar a história. Que recusa um lugar comum sobre a história do pensamento europeu onde existe um desenrolar continuo que deriva sempre de outro pensador europeu sem levar em conta as rupturas produzidas por eventos realizados pelos oprimidos.

Buscamos neste artigo mostrar que a escravidão real e suas implicações foram muitas vezes para os pensadores europeus um “não dito”. Porém, o que não é dito nos permite insights de clareza. Por questões ideológicas e políticas os pensadores europeus se negavam a perceber a importância dos povos não europeus para a existência da própria Europa. Devemos compreender esta importância tanto no sentido econômico como também intelectual. Aqui se encontra o mérito do estudo de Susan Buck-Morss. O momento de maior clareza e grandeza de Hegel não é onde ele mais se dedicou aos estudos convencionais europeus. Inclusive, segundo a autora, quanto mais ele se aprofundava neste sentido mais era um tolo racialista, ainda que não em termos biológicos. Mas sim quando ele olhou para o evento mais extraordinário da sua época: a auto realização da liberdade pelos negros haitianos.£

A exposição do pensamento iluminista e liberal buscava expressar um desenvolvimento “natural” para elementos nascentes do capitalismo. O sistema colonial e, principalmente, a escravidão africana, era uma contradição gritante a esta naturalidade. A liberdade defendida pelos iluministas em muitos sentidos era parcial e cega frente à escravidão real. O nascimento do “trabalho livre” capitalista na Europa necessitava em grande medida da manutenção do trabalho escravo nas colônias. Neste sentido, a radicalidade da ideia da liberdade universal não deve ser entendida como um produto das mentes europeias, mas dos corpos em lutas dos oprimidos, como os escravos de Saint-Domingue.

Notas
1 Ver Gorender, http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142002000300015
2 Capitalismo e Escravidão, pp. 32
3 Ver Contra História do Liberalismo de Domenico Losurdo
4 Outras seções de “A fenomenologia do espirito” podem ser analisadas no sentido do impacto dos eventos haitianos em Hegel. Pode se encontrar várias críticas ao pensamento racista de anatomistas e fisionimistas importantes na época. Segundo Buck- morss muitos comentadores encontraram o dialogo crítico a autores como Joseph Gall, mas geralmente não é citado o racismos de suas teorias.

Imagem: Sir Peter Lely, Elizabeth Countess of Dysart, c. 1650


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