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ELEIÇÕES ARGENTINAS | Os desafios da esquerda argentina no novo cenário político

A fórmula presidencial Alberto-Cristina: uma manobra para moldar um futuro governo de "pacto social" com os fatores de poder diante da crise. Os economistas do novo candidato a presidente já anunciam mais cortes de impostos e desvalorização. Os desafios da esquerda na campanha eleitoral e para o próximo ano.

Fernando ScolnikBuenos Aires | @FernandoScolnik

quinta-feira 23 de maio de 2019 | Edição do dia

O anúncio de Cristina Kirchner postulando Alberto Fernandez como candidato a presidente, com ela de vice, deu o pontapé inicial das eleições de 2019.

Quando a maior parte das análises e estratégias políticas se baseavam em um cenário de intensa polarização entre Macri e a ex-presidenta, surge um novo panorama que, em parte, nos força a recalibrar as armas da crítica e da luta política.

Nesse marco, o objetivo deste artigo é analisar o que se pode esperar da fórmula Alberto-Cristina, e a localização da esquerda no novo quadro político.

Uma grande batalha política, uma perspectiva estratégica

Durante os meses da campanha eleitoral, a esquerda tem um desafio de primeira ordem: atingir milhões de pessoas com uma voz clara para alertar que, diante do descrédito do macrismo, a fórmula de Alberto-Cristina baseará sua campanha na ilusão que têm milhões de superar o Cambiemos , mas que, no caso de vencerem, essas expectativas serão frustradas. Como analisaremos mais adiante, isso pode ser antecipado a partir de hoje, uma vez que eles já se comprometeram a cumprir os pagamentos da dívida e com o FMI, para o qual não terão outra alternativa a não ser continuar com os planos de ajuste.

Junto a essa campanha, faz-se necessário semear as idéias fundamentais de um programa alternativo para que a crise não seja novamente paga pelas grandes maiorias, e também se organizar com milhares para essa luta, fortalecendo a perspectiva de construir um partido revolucionário e se preparando para ser uma força decisiva nos próximos eventos agudos da crise e da luta de classes que, se conseguirem liderar a situação em 2019, terá lugar no próximo Governo. Desta forma, a Frente de Esquerda (que por sua vez pede maior unidade para estas eleições no âmbito de um programa de independência de classes) pretende também ser uma expressão das centenas de milhares de trabalhadores, mulheres e jovens que apoiam um programa para que a crise seja paga pelos capitalistas e que estão preparados para enfrentar os ataques, vença quem vencer.

Por último, mas não menos importante, adiantemos que nos próximos anos, se o macrismo ganhar, enfrentaremos desde o início um governo muito debilitado. Mas se o peronismo vencer, abre-se a possibilidade histórica de uma experiência com essa força no poder, o que levará ao surgimento de novos fenômenos políticos e da luta de classes.

Comecemos por aguçar as críticas contra o projeto político da nova fórmula presidencial.

O significado da armada eleitoral promovida por Cristina Kirchner

Primeiro vamos discutir os gestos e alianças, depois vamos ao programa e aos números.

Por um lado, fala por si só o fato de que o escolhido como candidato a presidente é um homem com um passado como funcionário Menemista , um legislador eleito nas listas de Domingo Cavallo , um amigo das corporações que renunciaram do governo de Cristina depois do confronto com os patrões do campo e com o Clarín, para então perambular através do massismo e do randazzismo, até retornar com Cristina depois de toda uma pirueta.

Sobre isso, não pode haver dúvida: a eleição do candidato visa convencer todos os fatores de poder econômico e político que não há nenhum risco de "Giro Chavista", mas que o caminho escolhido é pôr-se garantir a ordem necessária para continuar com os pagamentos da dívida e acordos com o FMI durante a atual crise.

Esta interpretação, longe de ser forçada, é apenas a coroação e expressão máxima de um curso político que já tinha sido desenvolvido com gestos significativos.

Para o capital financeiro internacional, podia-se ver essa orientação sendo sugerida com Axel Kicillof mostrando durante meses um tom conciliador, com reuniões com o FMI e promessas de pagar a dívida até o último centavo. Para os grandes capitalistas nacionais, com um discurso que desde o ano passado já vem sido levantado que, sob os governos Kirchner, os balanços de empresas como a Arcor eram melhores do que agora, especialmente os bancos, garantindo-lhes o seguimento da especulação financeira. E para o peronismo, dando apoio a candidatos de direita nas províncias (Perotti, Schiaretti, etc.) e tendo encontros com referências da burocracia sindical, como a reconciliação ressonante de Cristina Kirchner com Hugo Moyano.

Essa orientação complementa o discurso da ex-presidenta às suas bases, "alertando" que, devido à gravidade da atual crise, a situação será "muito difícil de reverter", como expressou no vídeo no qual comunicou sua decisão de ser candidata a vice.

Mesmo antes de lançar a campanha eleitoral, eles já estão acusando a "herança recebida". Imagine o leitor o que virá a seguir.

O objetivo deste alerta não é outro senão tentar moderar as aspirações daqueles que votam na fórmula Alberto-Cristina, já que, como a ex-presidenta apontou, a parte difícil não será ganhar as eleições, mas governar. Vamos para o coração da questão então.
Um "contrato social" para aprovar os planos do FMI

O principal problema estratégico que as classes dominantes têm na Argentina é como lidar com os ajustes e pagamentos que o FMI exigirá durante os próximos anos em qualquer "renegociação" de uma dívida impagável, sem a resistência do povo trabalhador em reprovar seus planos de ataque e sem questionar a chamada "governabilidade".

Neste marco, devemos entender a política de "contrato social de cidadania responsável" que a ex-presidenta está promovendo, e que se propõe como uma tentativa de fazer um governo mais forte do que seria um hipotético segundo mandato de Mauricio Macri, que depois de anos de desgaste e com grande oposição social, correria o risco de ser muito fraco desde o início. Por sua vez, a coalizão da Alternativa Federal começa a perder força com esta última virada conciliatória do Kirchnerismo, embora para ver sua perspectiva eleitoral final resta saber como o "fator" Sergio Massa atuará.

A tentativa de postular Alberto Fernández como articulador de uma frente mais ampla do peronismo (cujos resultados concretos serão finalizados nos dias 12 e 22 de junho com a apresentação de alianças eleitorais e candidatos), e por esse caminho do conjunto da burocracia sindical, procura então formar uma coalizão de governo com maior volume de força para impor os planos de ajuste à classe trabalhadora.

Lembremos que o Pacto Social de 73-74, tomado como modelo pela ex-presidenta durante seu discurso na Feira do Livro, procurou limitar as exigências de uma classe trabalhadora que estava na ofensiva após o Cordobazo de 1969 e o retorno de Perón, por meio do congelamento das paritárias por dois anos. A burocracia sindical então desempenhou o papel de aceitar este acordo (que terminou em uma grande crise em 1975) e de integrar as bandas paraestatais do Triple A para reprimir aqueles que queriam tirar os pés da chapa, como se demonstrou em numerosas greves e ocupações de fábricas que questionavam o acordo.

A analogia histórica, como sempre limitada, tem, porém, outro ponto essencial de comparação: um eventual triunfo de uma fórmula peronista pode alentar em grande medida as expectativas das massas que, despachando Macri, querem recuperar o salário e os empregos perdidos em nestes anos, bem como anular os “tarifazos”.

É por isso que, no caso de ganhar uma fórmula peronista da presidência, durante o próximo governo é provável que haja níveis mais altos de luta de classes, motivados pela expectativa de recompor as condições de vida.

Contra essas aspirações que não podem ser atendidas, o bloco político e social que busca conformar a fórmula Alberto-Cristina busca um "contrato social" para impor às grandes maiorias a aceitação dos planos ditados pelo FMI.

Nas garras do FMI: os economistas de Alberto Fernández já anunciam mais ajustes

Dentro da equipe econômica de Alberto Fernández se destacam algumas figuras. Vamos nos referir a dois das centrais e ao pensamento econômico que vem sendo expresso nos últimos dias.

Embora a nova fórmula de candidatos não tenha enunciado um programa de governo, é importante seguir as indicações dadas por suas principais referências econômicas, a fim de prever o rumo que tomarão se chegarem ao governo.

Um deles é Guillermo Nielsen. Antes de ser candidato ao Massismo em 2015 na Cidade de Buenos Aires, o que mais se destaca em sua carreira é ter feito parte dos negociadores com o FMI nos anos posteriores a 2001.

Em uma entrevista publicada no último domingo, o economista foi perguntado "O que espera a Argentina depois de 2019?".

Sua resposta, crua, foi simples: um ajuste fiscal brutal. Contaram também que ele disse recentemente a Cristina Kirchner que "nós temos mais dez anos com o FMI".

Sobre o ajuste que vem no caso de chegarem ao governo, ele explicou concretamente: "O governo que chega não precisa do déficit zero, mas um superávit de três pontos do PIB. Ou seja, é necessário um ajuste de quatro pontos do PIB e o ponto de partida inicial é um excesso e um recorde absoluto de pressão tributária ".

Para colocar de outra forma: esses 4 pontos envolvem cortar o equivalente a duas vezes o orçamento somado de toda a saúde pública e educação! Como se Macri não já tivesse feito um grande ajuste, eles ainda vêm para mais, a fim de alocar uma grande massa de recursos para o pagamento de dívidas aos especuladores.

Essas declarações de Nielsen têm o "mérito" de confirmar o que a Frente de Esquerda tem denunciado: que o próximo governo terá que pagar 160 bilhões de dólares em dívidas e que uma "renegociação" com o FMI só acontecerá ao custo de aceitaras receitas drásticas da organização internacional.

Por outro lado, outra referência importante ligada à equipe de Alberto Fernández, Matías Kulfas, vem demonstrando um apoio a uma desvalorização (que traria mais “tarifazos” e inflação) e alertando que uma recuperação econômica não pode ser traçada nem pela despesa nem pelo Consumo. Isso quer dizer que para resolver a falta de dólares da economia nacional, o que deveria esperar é o salário, já que as moedas seriam para pagar a dívida.

As tarefas da esquerda

O PTS-Frente de Izquierda está atualmente propondo uma grande campanha de agitação, propaganda e organização para enfileirar milhares e atingir milhões com denúncias claras e um programa de saída para a crise. Ao mesmo tempo, apoiamos com toda a nossa força cada luta contra os ajustes, e exigimos que a burocracia sindical não tome medidas de força isoladas (como em 29 de maio), mas que convoque um plano de luta com continuidade até derrotar os planos de ajuste.

Entendemos o desejo de milhões de livrar-se do odiado governo de Mauricio Macri, mas alertamos ao mesmo tempo que nada de bom pode vir de qualquer das variantes do peronismo que, como demonstramos, pretendemos continuar com os acordos com o FMI e aplicar ajustes que cairão nas costas das maiorias.

Pegando como exemplo um dos problemas mais sentidos por milhões, os “tarifazos”, eles não fariam mais do que continuar com qualquer plano econômico que priorize o pagamento da dívida, o ajuste fiscal e a desvalorização. O mesmo pode ser dito sobre o recuo dos orçamentos destinados aos salários, saúde ou educação. Se quisermos inverter a "herança recebida" do macrismo, o caminho não é com o peronismo.

Menos ainda pode ser revertido com um país absolutamente condicionado pelo FMI. Problemas estruturais como pobreza ou insegurança no trabalho que não vêm de agora, mas que fazem parte do legado da ditadura e do neoliberalismo que tanto o kirchnerismo quanto o macrismo deixaram intactos.

Ao contrário do macrismo e do peronismo, para a esquerda primeiro estão as necessidades do povo trabalhador. Rejeitamos qualquer "renegociação" com o FMI que envolva mais taxas, o aumento da pobreza, a queda dos salários, a perda de milhões de empregos, a condenação do colapso da saúde pública e da educação, e tudo para que alguns parasitas especuladores de capital financeiro continuem saqueando o país e hipotecando o futuro das gerações futuras por uma dívida ilegal, ilegítima e fraudulenta. Porque nossas vidas valem mais que seus lucros.

Também dizemos muito claramente que nenhum "pacto social" pode ser com os empresários, que já disseram que seu programa é a reforma trabalhista, a reforma previdenciária, o ajuste fiscal e o pagamento de dívidas aos especuladores até o último centavo. Seus interesses são opostos aos nossos. Toda e qualquer conciliação com eles será para continuar garantindo seus lucros às custas de manter os aposentados famintos, para ver nosso salário, saúde e educação caírem.

Sob estas bandeiras, nós, da Frente de Esquerda, insistimos também no apelo a Luis Zamora e outras forças de esquerda para que também fortaleçam nas eleições uma unidade que, no marco da crise, dará mais força às propostas da esquerda anticapitalista.

A atual campanha eleitoral assume então um caráter preparatório para as próximas etapas da crise. Se por alguma circunstância o macrismo ganhar as eleições, teremos um governo débil que rapidamente dará lugar a uma grande crise de resistência dos seus planos. Mas também o provável cenário do peronismo no poder atacando as grandes maiorias abrirá uma nova experiência histórica, e no calor de acontecimentos agudos da luta de classes abre a possibilidade de construir um grande partido revolucionário para lutar por um governo de trabalhadores, para uma sociedade organizada não em termos de lucros capitalistas, mas a serviço das necessidades das grandes maiorias.

Notas:
[1] Coalizão política liderada por Maurício Macri
[2] Período de 1989 a 1999 quando Carlos Menem foi presidente da Argentina
[3] Ex Ministro da Economia do governo Menem
[4] Coalizão política que se autointitula Peronista, liderada pelo político Sergio Massa
[5] Coalizão que se propõe a ser um “caminho do meio” entre o kirchnerismo e o macrismo
[6] A Aliança Anticomunista Argentina foi uma milícia paramilitar de extrema-direita que atuou durante o governo de Isabel Perón (1972-1976)




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