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Surrealismo e trotskismo | Os caminhos cruzados antes do Manifesto da FIARI (1938)

Somos especialistas da Revolta. Não há um meio de ação que não sejamos capazes de empregar, se necessário...
O surrealismo não é uma forma poética.
É um brado do espírito que se volta para si mesmo e está nitidamente decidido a romper desesperadamente seus entraves.
E se necessário com martelos materiais.

(Declaração surrealista de 27 de janeiro de 1925)

terça-feira 6 de dezembro de 2011 | Edição do dia

A análise do movimento surrealista, se encarada mediante uma perspectiva retrospectiva superficial, pode desembocar facilmente na simples conclusão de que o devir natural do grupo, e sua realização última enquanto tal, repousa em sua articulação ao materialismo dialético – este enquanto guia de ação capaz de abarcar e enriquecer todas as aspirações dos poetas e artistas plásticos surrealistas de então. O Manifesto da FIARI (escrito por Leon Trotsky e André Breton em 1938, na cidade de Coyocán, México) é utilizado largamente para exemplificar os laços firmados entre ambos, muitas vezes no sentido de simplesmente enaltecer os surrealistas pela adesão ao léxico e à prática revolucionária (e muitos destes enaltecedores tampouco conhecem o surrealismo como prática artística), e raras vezes no sentido de enaltecer uma síntese da série de contradições que se abriram na esquerda artística e política do começo do século XX. A esta primeira leitura mistificadora e de caráter teleológico, que faz da história do grupo surrealista uma límpida história linear e sem tensões, proporemos uma breve abordagem do movimento que procura, ao contrário, apreender as contradições intestinas ao mesmo, bem como reconstruir os momentos de aproximação e distanciamento deste da esquerda organizada e, por fim, no que cabe aos desígnios deste artigo, do trotskismo. A questão chave aqui é apontar qual a relação que o surrealismo manteve com o trotskismo antes do tão citado Manifesto do México.

Em um primeiro momento, cabe pontuar que o surrealismo, enquanto desenvolvimento de uma ruptura no interior do movimento Dadá provocada por discordâncias quanto à filosofia e prática meramente destrutiva dos últimos, segundo os dissidentes , não se desenrola para o campo da prática política imediata, ou para um ideário de “politização da estética”, como proporia posteriormente Walter Benjamin; mas, antes, para a radicalização de procedimentos artísticos já iniciados no dadaísmo, incorporação e criação de novas estratégias criativas e alargamento da crítica Dadá até uma positivação da mesma, ou seja, até um rompimento com seu imaginário niilista em prol de uma prática vital que combatesse o homem do pós-guerra e suas misérias e, centralmente, o campo moral da classe burguesa em sua racionalização mercantil. Se o dadaísmo não fora senão “uma maneira de sentar-se”, como escreveu André Breton em 1923, é possível que o mesmo poeta analisasse o “período heróico do surrealismo” (entre os anos 1923-1925), conforme denominado por Maurice Nadeau, como expressão da mesma postura de relaxamento, em seu sentido estritamente político.

É fato que a Revolução Russa, ainda não degenerada, não fora objeto de exaltação por parte do grupo. Ao contrário: entendida enquanto uma mera transposição de poderes, cuja única tônica repousava no aspecto econômico, não merecia destaque para os mesmos, que almejavam uma Revolução completa, do espírito humano, que passaria a incorporar o aspecto inconsciente da vida, a supra-realidade. Lê-se, por exemplo, em La Revolutión Surrealiste no. 4:

Não existe revolução total, há unicamente a Revolução perpétua, vida verdadeira, como o amor, deslumbrante a todo momento. Não existe ordem revolucionária, há apenas desordem e loucura. A guerra da liberdade deve ser conduzida com cólera e conduzida sem cessar por todos que não aceitam...
(Apud NADEAU, 1985, p. 76)

A idéia sobre uma Revolução social, desta maneira, passava por matizes idealistas, no sentido de que adquiria o aspecto de uma revolta sem consciência, um valor transcendente, sem alcance, perpétua em seu sentido longínquo, inalcançável. A “criação de um mito coletivo”, idéia cara ao grupo, era entendida enquanto desvinculada e às vezes antagônica com a proposição de uma insurreição armada acaudilhada pelo proletariado para a tomada de poder das mãos da burguesia. Os intensos debates promovidos pelos surrealistas na época, tais quais se o surrealismo consistiria em si uma revolução ou não, foram acelerados pelos rumos da situação internacional, de maior dinamização da luta de classes. A Guerra do Marrocos assume importância central no giro do movimento às questões mais propriamente políticas, a partir de uma aproximação e colaboração do grupo com a revista Clarté e seus editores.

É deste período uma proclamação inteiramente nova aos surrealistas, que marca a passagem de uma concepção mais abstrata do sentido de uma Revolução para a de uma subversão do modo de vida fincada em bases materiais: “Não somos utopistas: esta Revolução não a concebemos senão sob sua forma social.” (NADEAU, 1985, p. 83). Não se trata mais de uma “revolução do espírito” sem mudar “o que quer que seja na ordem física e aparente das coisas” (Idem, ibidem). É significativo que no mesmo período André Breton tenha lido Lenin, escrito por Trotsky, o que se faz notar neste trecho, por exemplo, do Manifesto lançado pelo grupo em 1925, A Revolução primeiramente e sempre:

Há mais de um século a dignidade humana é rebaixada à categoria de valor de troca. Já é injusto, é monstruoso mesmo, que quem nada possui seja escravizado por quem possui, mas quando essa opressão ultrapassa o quadro de um simples salário a pagar e toma, por exemplo, a forma de uma escravidão que as altas finanças internacionais fazem incidir sobre os povos, é uma iniqüidade que nenhum massacre poderá expiar.
(Apud NADEAU, 1985, p. 83)

A passagem da Revolução de valor transcendente até a adesão dos surrealistas ao princípio do materialismo dialético marca o “período raciocinante” do grupo, conforme nomeado pelo próprio Breton. Interessa notar que, enquanto a maior parcela da intelectualidade francesa aderiu à consigna de “defesa da pátria” mediante a Guerra do Marrocos, os surrealistas se alinharam prontamente em favor dos insurgentes marroquinos, aproximando-se deste modo do Partido Comunista Francês e de seus intelectuais. A filiação do grupo ao PCF dá-se paulatinamente, e até 1927, quase todos os seus membros remanescentes já eram militantes. No mesmo ano, entretanto, em função da crescente stalinização das fileiras do Partido, boa parte dos surrealistas rompe com seu aparato burocrático.

A expressão mais significativa e mais citada deste desenvolvimento do ideário surrealista, feito mediante uma série de conflitos internos e distanciamentos e aproximações de outros artistas do grupo inicial, é o Segundo Manifesto do Surrealismo, que data de 1929. Neste, Breton declara abertamente a adesão do grupo ao materialismo dialético, bem como empreende críticas ao PCF. Cabe comentar também que é neste manifesto que pela primeira vez surge no interior do grupo a definição de arte enquanto processo de sublimação, definição esta que reaparecerá no Manifesto da FIARI, de 1938, redigido com Trotsky. Um elemento seu pouco comentado, no entanto, diz respeito à qualidade desta adesão ao materialismo. Escreveu Breton:

Como admitir que o método dialético só possa aplicar-se validamente à solução de problemas sociais? A ambição maior do surrealismo é fornecer-lhe possibilidades de aplicação de modo algum concorrentes no domínio consciente mais imediato. Em que pese a certos revolucionários de espírito acanhado, não compreendo por que nos absteríamos de colocar, desde que o abordássemos do mesmo ponto de vista do qual eles – e também nós – o fazem, que é o da Revolução, os problemas do amor, do sonho, da loucura, da arte e da religião.
(BRETON, 2001, p. 169)

O caráter afirmativo do grupo se manifesta, ao que nos parece, de modo a subordinar o materialismo dialético à Revolução Surrealista desejada, e não o contrário. A Revolução Comunista, desta maneira, e a luta por sua realização, vem como ampliação do ideário surrealista, e não enquanto propósito maior ao qual o surrealismo comporia. Retomando-se a idéia de “resolução dos problemas fundamentais do homem”, presente no Primeiro Manifesto (de 1924), os surrealistas aderem ao marxismo com o intuito de, primeiramente resolver os fundamentos materiais da existência, para assim abrirem caminho para a verdadeira revolução do espírito em sua totalidade. Eis uma das chaves para a compreensão da defesa incessante que farão acerca da necessária autonomia de suas atividades artísticas, cada vez mais cerceadas pela burocracia que se cristalizava no PCF:

(...) existe também a experiência surrealista. Ela já deu resultados e em nada se opõe à Revolução. Segundo Breton, até ultrapassa por sua amplitude a estreita especialização do econômico e do social e não seria pequeno o risco se se confundisse com ela, se se limitasse a ela. Aqueles que quisessem considerá-la como um simples anexo da ação revolucionária se enganariam, e Breton previne seus amigos políticos a não esperarem de sua parte nem desaprovação dessa ação, nem renúncia. É útil, é necessário que a experiência surrealista prossiga seu caminho.
(NADEAU, 1985, p. 87)

Em confluência com o desenvolvimento das idéias do grupo, acerca da autonomia artística frente aos partidos, percebe-se um notório paralelismo nas elaborações de Leon Trotsky sobre o tema, contraposto, neste arcabouço teórico, às teorias sobre a cultura proletária e a arte proletária, embriões da futura política soviética de coerção à produção artística e eliminação física dos artistas. Ao abuso cometido nestas linhas, com a imediata e mecânica associação entre o campo da economia e da cultura, e uma mesma política estatal e partidária que deveria se guiar igualmente nos dois sentidos, Leon Trotsky oporá a mais ampla liberdade à criação artística: se reivindica, por um lado, a economia planificada, reivindica a anarquia criativa e intelectual. O revolucionário, que desde 1923, ironizava e criticava a pobreza das teorizações sobre a cultura proletária, no sentido da impossibilidade histórica da mesma e da contradição que mantinha com a teoria marxista , se colocará até sua morte, em 1940, contra a política cultural desenvolvida no interior da Rússia e assumida pelos demais Partidos Comunistas a partir da Internacional Comunista. Escreverá em 1923:

No fim da guerra civil, quando abordávamos uma nova fase da nossa atividade, a tentativa de criar uma “doutrina militar proletária” foi a expressão mais clara e mais gritante da incompreensão das tarefas da nova época. Os orgulhosos projetos que visam criar uma “cultura proletária” em laboratório partem da mesma incompreensão. Em meio à busca pela pedra filosofal, o nosso desespero perante nosso atraso une-se a uma crença no milagre, que é ela própria um sinal desse atraso. Mas não temos nenhuma razão para nos desesperar; é mais do que tempo de nos libertarmos dessa crença em milagres, dessas práticas pueris de curandeiros, do gênero da “cultura proletária” ou da doutrina militar proletária. Para fortalecer a ditadura do proletariado é preciso desenvolver um militantismo cultural cotidiano, o único que pode garantir um conteúdo socialista para as conquistas fundamentais da revolução. Quem não compreendeu isso, representa um papel reacionário na evolução do pensamento e do trabalho do partido.
(TROTSKY, 2009)

Na mesma trilha, publicará no ano seguinte Literatura e Revolução, obra lapidar no combate à coerção da produção artística e a mencionada tentativa de se “criar em laboratório” uma nova cultura de classe:

Isso quer dizer que o Partido, contradizendo seus princípios, adota uma posição eclética nos domínios da arte? O argumento que parece fulminante é meramente infantil. O marxismo oferece diversas possibilidades: avalia o desenvolvimento da nova arte, acompanha todas as suas mudanças e variações por meio da crítica, encoraja as correntes progressistas, porém não faz mais que isso. A arte deve abrir por si mesma seu próprio caminho. Os métodos do marxismo não são os mesmos da arte. (...) A arte não é um domínio que se chame o Partido a comandar.
(TROTSKY, 2007, p. 173 - grifos nossos)

Embora Literatura e Revolução só tenha sido publicado na França em 1964 (pela tradução do também primeiro historiador do surrealismo: Maurice Nadeau), a série de debates travados no período pela intelectualidade francesa indica que suas teses centrais, se não lidas, já haviam sido apreendidas e incorporadas nas discussões (GOUJON, 1994). O alinhamento entre o grupo e as idéias de Trotsky, entretanto, não se dá apenas no que toca mais diretamente o campo da arte. O próprio estreitamento dos surrealistas à Clarté dá-se mediante a reivindicação, em primeiro lugar, dos nomes de Vladimir Lenin e de Trotsky, enquanto seu continuador revolucionário. Em 11 de março de 1929, por exemplo, Breton chama uma reunião do grupo com o intuito de discutir e examinar criticamente a “sorte dada recentemente a Leão Trotski” (NADEAU, 1985, p. 115), referindo-se à expulsão do revolucionário da Rússia pela burocracia soviética, ou ainda, a título de outro exemplo, a já mencionada leitura apaixonada de Breton sobre o livro Lenin, sobre o qual comentará, em 1925:

No plano moral onde resolvemos nos colocar, está claro que um homem como Lenin é absolutamente inatacável. E à objeção de que, conforme este livro, Lênin é um tipo e os ‘tipos não são homens’, pergunto: Qual destes novos bárbaros sofistas terá a ousadia de sustentar que há algo a reprovar nas apreciações gerais emitidas ocasionalmente por Trotski sobre os outros e sobre ele mesmo?
(Apud FACIOLI, 1985, p. 76)

Poderíamos citar ainda o manifesto Planeta sem Passaporte, de 1934, no qual o grupo coloca-se novamente em defesa do dirigente do exército vermelho e contrário à negativa de permissão de asilo político da França ao mesmo; ou ainda o conhecido Manifesto da FIARI, escrito no México em 1938 por Breton e Trotsky – expressão mais bem acabada dos esforços de ambos os revolucionários no campo de uma elaboração programática referente às artes (“toda a licença em arte”).

Importa notar, por fim, que, mesmo durante o período de ingresso do grupo no PCF, os surrealistas sempre foram marginalizados no interior do partido em função de suas atividades artísticas, entendidos enquanto grupo de matriz pequeno-burguesa, sem disciplina revolucionária, etc. Os surrealistas parecem se preparar a todo o momento para um ataque dos demais militantes e da comissão editorial da Clarté, de onde resulta a série de cartas, tomadas de posição e intimações que formam a brochura Au Grand Jour, de 1927:

Por que, perguntam a Marcel Fourrier, somos utilizados apenas para uma “tarefa literária”? É dessa maneira que compreendeis a especialização? Será que servimos somente para amenizar as áridas páginas políticas de Clarté? Por outro lado, por que vos mostrais tão tímido a tomar a nossa defesa? Se até nós temos de ser defendidos contra a estreiteza de espírito de militantes que não apreciam a mensagem de libertação humana que Sade e Lautréamount lhes transmitiram, por que não nos defendeis aberta e responsavelmente, e com conhecimento de causa, já que de maneira nenhuma vos somos desconhecidos?
(Apud NADEAU, 1985, P. 97)

A linha política do PCF no período, ainda que não orientada tal qual depois de 1934, para a perseguição dos artistas de vanguarda que não tivessem aderido à estética estatal do realismo-socialista, já poderia conter elementos de perseguição neste sentido, informação da qual se carece de fontes.

A série de tensões, entretanto, que permearam o desenvolvimento do movimento surrealista em contato íntimo com a intelligentsia comunista francesa já nos remete a uma perseguição, ainda que informal, dos quadros do partido a estes artistas, como colocado acima. O trotskismo, neste sentido, oferecia uma possibilidade alternativa, ao menos teoricamente – na medida em que muitos dos quadros e dirigentes trotskistas (incluso o ex-surrealista Pierre Naville ) perseguirão artistas – com relação à articulação arte e política. A revisão historiográfica crítica sobre tais processos é tarefa premente para os revolucionários, no sentido de “escovar a contrapelo” a relação mantida entre o trotskismo e as vanguardas artísticas, bem como o debruçar sobre as elaborações de Leon Trotsky sobre o tema, e da necessária independência artística para a revolução, não apenas tática, mas estrategicamente.

Referências

ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BRETON, André. Manifestos do surrealismo.Rio de Janeiro: Nau, 2001.

FACIOLI, Valentim (Org.). Breton-Trotsky: Por uma arte revolucionária independente. São Paulo: Paz e Terra; Cemap, 1985. 218 p.

COGGIOLA, Osvaldo (Org.). Trotsky hoje. São Paulo: Ensaio, 1994. p. 203-216.

GOUJON, Gerard. Trotsky e a “literatura proletária” na França. In: COGGIOLA, Osvaldo (Org.). Trotsky hoje. São Paulo: Ensaio, 1994. p.193-202.

KLINGSOHR-LEROY, Cathrin. Uma nova declaração dos direitos do homem. In: Surrealismo. Singapura: Taschen, 2007.

LOWY, Michael. Estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

NADEAU, Maurice. História do surrealismo. São Paulo : Perspectiva, 1985.

TROTSKY, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro : Zahar, 2007.

. Questões do modo de vida / A moral deles e a nossa. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2009.

. Textos sobre arte, cultura y literatura. Córdoba: Jorge Sarmiento, 2008.


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