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ORIENTE MÉDIO | Oriente Médio ou a geopolítica do caos [1]

Entre as guerras norteamericanas e o terror do Estado Islâmico

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

quinta-feira 18 de junho de 2015 | 04:04

O Egito se encontra sob o domínio da ditadura plebiscitada de Al-Sisi que em pouco mais de ano e meio acumula cerca de mil sentenças de morte (método utilizado pelos regimes totalitários como o nazismo). A Síria, o Iraque e a Líbia estão imersos em guerras civis sangrentas e à beira da fragmentação. Têm surgido novas entidades proto-estatais, como o califato do Estado Islâmico [2] – EI, também conhecido como ISIS – que mesmo com suas fronteiras diluídas engloba um território do tamanho da Grã-Bretanha ou da Itália. Esta organização, surgida do interior da Al Qaeda, ameaça alterar não apenas as fronteiras nacionais, mas inclusive as tendências políticas do mundo islâmico estimulando o surgimento de frações radicais também entre os jovens das comunidades muçulmanas do ocidente.

O que está em questão é o mapa dos estados nacionais cujas fronteiras foram fixadas pela França e a Grã-Bretanha nos acordos de Sykes-Picot de 1916 com os quais dividiram o domínio dos territórios do império otomano. A possibilidade de que estes estados que têm um papel importante nos equilíbrios regionais, ou que têm grandes reservas de petróleo e gás, se convertam em “estados falidos” é um cenário de pesadelo, como se pode ver com a situação da Líbia na crise de imigração que aflige a União Europeia.

Pela terceira vez em pouco menos de um quarto de século os Estados estão em guerra no Iraque. A operação militar que já dura quase um ano e, segundo dados do Pentágono, tem custado aos contribuintes uns US$ 8,6 milhões por dia, mostra estar longe de alcançar os objetivos pretendidos por Obama de “degradare eventualmente destruir o ISIS”. Neste tempo, apenas pode exigir a vitória em Kobane, obtida a um altíssimo custo pela resistência curda com apoio aéreo norte-americano e a recuperação da cidade de Tikrit com a colaboração do Irã. Como contrapartida, em meados de maio o EI passou a controlar Ramadi, o coração sunita do Iraque, e a milenar Palmira, na Síria, há várias centenas de quilômetros de distância, o que mostra sua capacidade de operar em várias frentes. Mesmo que a administração democrata [dos EUA] tenha a política de limitar o compromisso norte-americano aos bombardeios aéreos enquanto milícias locais combatem o EI em terra, não se pode descartar que se inicia uma dinâmica ascendente que resulte em estender os objetivos iniciais, o que se conhece em linguagem militar como “mission creeping” e que levou, nada mais, nada menos, na guerra do Vietnã

A “Guerra dos tronos” das potências

Ainda que uma combinação de fatores explique esta desordem geopolítica, há um elemento que tem um peso específico próprio: a mudança na política norte-americana em relação ao Irã, alimentada pela confluência entre as razões pragmáticas do imperialismo e a abertura do Irã após a posse de Hasan Rouhani como presidente, oriundo de uma ala reformista da teocracia.

Com um sistema de alianças assentado no regime de Bashar al-Assad na Siria, do Hezbollah no Líbano, do Hamas nos territórios palestinos e do Iraque, o regime iraniano se tornou uma peça indispensável para a segurança dos Estados Unidos, não apenas no Iraque, mas também para tentar encontrar uma saída estável à ocupação do Afeganistão.

A assinatura de acordos para manter sob controle o programa nuclear de Teerã, patrocinada pelo governo de Obama liderando as principais potências, além da Rússia e da China, implica uma mudança radical com importantes consequências regionais. O restabelecimento de um determinado nível de relações diplomáticas entre ambos países, suspensas desde a revolução iraniana de 1979, está tensionando as alianças tradicionais dos Estados Unidos e é firmemente criticada por Israel e a Arábia Saudita que já está fazendo um giro em sua política exterior para responder a esta nova situação. Alguns analistas preveem uma prolongada “guerra fria” entre a Arábia Saudita e o Irã – os rivais tradicionais que disputam a hegemonia do mundo muçulmano e simbolizam o enfrentamento entre sunitas e xiitas [3] – que teria seu primeiro ponto “quente” no Iêmen.

Às falhas estruturais que existem desde a constituição dos estados nacionais do Iraque, Líbia e Síria se soma o fato de que se tornaram um campo de batalha para as potências regionais que utilizam as guerras civis entre as várias facções para dirimir suas rivalidades. Assim, a Arábia Saudita, o Catar ou a Turquia, com o aval explícito ou implícito dos Estados Unidos, patrocinam diversos grupos “rebeldes” e milícias armadas na Líbia ou na Síria, a serviço de combater ou debilitar seus inimigos principais, o que, por sua vez, gera uma situação instável de alianças oscilantes e, às vezes, contraditórias.

Um exemplo é a dupla política que muitos desses estados – como a Arábia Saudita ou a Turquia – têm em relação ao Estado Islâmico, um inimigo estratégico, mas que taticamente pode ser instrumentalizado para debilitar seus principais rivais, como o regime sírio e o Irã.

Por sua vez, os Estados Unidos estão numa aliança fundamental com o Irã, que controla as milícias xiitas no Iraque, para tentar barrar o avanço do EI, porém está contraposto ao regime iraniano no Iêmen, onde apoia a coalizão sunita da Arábia Saudita contra os hutis aliados ao Irã. Vários outros exemplos existem.

As consequências da política norte-americana

Dizer que os Estados Unidos e seus aliados são os criadores do Estado Islâmico seria se contentar com uma explicação simplista calcada na teoria da conspiração para um fenômeno complexo. Ainda que, sem dúvidas, tenham ajudado, e muito. Antes da intervenção norte-americana não existiam a Al Qaeda no Iraque nem o Estado Islâmico, mas o governo dos Estados Unidos antecipava em 2012 a probabilidade de que o EI avançasse na formação de um “principado salafista” no território sírio, o que, segundo um documento de inteligência militar recentemente desclassificado [4], era visto como uma oportunidade para isolar estrategicamente o regime de Al-Assad (e o Irã), mesmo que ao custo de desestabilizar o Iraque.

A esta altura, é indubitável que a situação atual do Oriente Médio nasceu da falida “guerra contra o terrorismo” lançada pelo governo Bush como resposta aos atentados de 11S e continuada pelos dois governos de Obama.

A história é conhecida. A administração república, sob a influência dos “neocon”, pretendia reverter a decadência de hegemonia dos Estados Unidos com a estratégia militarista da “guerra preventiva”. Primeiro, invadiu o Afeganistão perseguindo Osama Bin Laden, chefe da Al Qaeda. Depois, inventou um casus belli - as armas de destruição massiva que supostamente Saddam Hussein teria – para invadir o Iraque e derrubar o antigo ditador. Com a queda de Saddam, em março de 2003, a ocupação norte-americana impôs a chamada “lei de desbaathificação”, pela qual, num golpe, cerca de 400 mil membros do derrotado exército de Saddam e funcionários do Partido Baath foram expulsos sem receber qualquer pensão e excluídos do emprego estatal. Anos depois, muitos destes oficiais e funcionários formaram suas próprias milícias ou se integraram à Al Qaeda e, posteriormente, ao Estado Islâmico.

A intervenção dos Estados Unidos produziu, além disso, uma mudança fundamental no poder estatal, que passou das mãos da minoria sunita (que controlava a burocracia estatal e militar desde os tempos do império otomano) para a maioria xiita, oprimida pelo regime de Saddam. Desnecessário dizer que o principal efeito colateral não desejado da intervenção no Iraque foi projetar o papel de hegemón regional do Irã, considerado por Bush, nesse momento, como um dos integrantes do “eixo do mal”.

Os Estados Unidos exploraram as diferenças religiosas para liquidar a perspectiva de unidade da resistência antinorte-americana sunita e xiita. Nesse terreno cresceram os grupos sunitas radicais, entre eles a Al Qaeda no Iraque (AQI), fundada pelo jordaniano Al-Zarqawi em 2004, que rapidamente se orientou para a guerra civil religiosa.

Em 2007, o presidente Bush lançou uma dupla política para debilitar a frente sunita dos líderes tribais e grupos radicalizados: por um lado, aumentou as tropas próprias (a estratégia ficou conhecida como “surge”), e, por outro, cooptou os líderes tribais sunitas (dirigentes do movimento conhecido como “Awakening”) para combater a Al Qaeda, que vinha perdendo autoridade por seus métodos brutais. Estes dois fatos combinados conseguiram baixar os níveis de violência, mesmo que o êxito tivesse vida curta.

Em 2011, os Estados Unidos tentaram se retirar do Iraque deixando um regime estabelecido no modelo confessional do Líbano, procurando distribuir o poder entre as três principais comunidades – xiitas, sunitas e curdos –, com predomínio dos xiitas. Porém, fracassaram. O então primeiro-ministro Al-Maliki rompeu o compromisso de incorporar os sunitas ao esquema de poder. Isso fez nascer uma nova etapa da guerra civil entre xiitas e sunitas (e, secundariamente, disputas entre xiitas e curdos pelo controle do petróleo) que, com diferentes variantes, marca os conflitos da região. Este é o solo fértil em que se desenvolveu a Al Qaeda no Iraque que depois de romper formalmente com a direção da Al Qaeda adotou o nome de Estado Islâmico do Iraque, mais tarde ISIS ou simplesmente EI, que tem levado ao limite a guerra civil no mundo islâmico.

Apesar de tudo, o Estado Islâmico é um grupo minoritário que a maioria dos muçulmanos repudia seus métodos brutais e seu rigor, mas tem conquistado, no Iraque, a simpatia dos sunitas que veem a possibilidade de recuperar o poder perdido desde a queda de Saddam.

O Estado Islâmico e a contrarrevolução

Outro elemento que incide na configuração dos conflitos atuais é o retrocesso da “primavera árabe” que abriu um momento de “restauração” marcado pelo retorno brutal da repressão estatal com o objetivo de manter a continuidade das políticas neoliberais. Deixando para próximas análises as tendências históricas que permitiram o surgimento do islamismo radical [5], as “causas eficientes” do êxito do EI devem ser procuradas na intersecção da política imperialista com o fracasso dos partidos islâmicos moderados, como a Irmandade Muçulmana, que se apresentava no Egito, na Tunísia e inclusive na Síria como o veículo de desvio da primavera árabe.

O curso reacionário assumido pela guerra civil na Síria facilitou sua extensão e o estabelecimento do califato, eliminando as fronteiras entre o Iraque e a Síria. Em janeiro de 2014 passou a controlar Raqqa, no noroeste da Síria, e seis meses depois ocupou Mosul (e Tikrit) diante da defecção do exército iraquiano. A maioria dos seus combatentes está formada por presos liberados em ataques às prisões, incluída a de Abu Ghraib. O EI avançou na Síria tomando cidades em poder das frações “rebeldes” inimigas para em seguida se lançar à conquista do que é considerado o centro territorial do regime de Al-Assad que vai de Damasco atéAleppo.

Além disso, o EI faz da violência e da humilhação de suas vítimas uma arma de recrutamento para os jovens de origem árabe que sofrem essa humilhação, seja vivendo em países muçulmanos ou no ocidente imperialista. Mesmo sem dispor de dados exatos calcula-se que existem mais de 20 mil combatentes estrangeiros no EI, dos quais cerca de 3,5 mil proveem de países ocidentais – 1,2 mil franceses, 600 britânicos (entre esses o carrasco que aparece nos vídeos decapitando jornalistas), além de belgas e, em menor quantidade, canadenses, norte-americanos e australianos [6].

O esmerado sistema de propaganda do EI, que utiliza modernos meios audiovisuais e é muito ativo nas redes sociais, se esforça em apresentá-lo como uma força organizada que controla e administra um território, paga salários aos seus combatentes bem maiores dos recebidos por qualquer trabalhador nas devastadas economias dos países em conflito. E, além disso, se preocupa em dar-lhes uma família.

Para muitos analistas, este caráter de “estado em formação” é, no curto prazo, uma fortaleza, mas estrategicamente o ponto débil do EI, já que poderia ser estrangulado tanto pela ofensiva imperialista como pelos problemas de administrar um Estado e controlar milhões de pessoas submetidas à opressão econômica, política e social em nome de valores e moral religiosa. Talvez por isso nos territórios conquistados o EI combina execuções públicas massivas como elemento disciplinador com “políticas de gestão” – como restabelecer o serviço elétrico e reconstruir infraestrutura destruída – para diminuir a hostilidade.

Diferente do Hamas ou do Hezbollah, que também têm o objetivo reacionário de impor um estado confessional, expressando de forma distorcida movimentos de liberação nacional, tanto o EI como a Al Qaeda [7], e outras derivações deste tipo, assumem um caráter absolutamente contrarrevolucionário. Isso se pode ver tanto em seus objetivos políticos como em seus métodos terroristas voltados a provocar a maior quantidade de mortos entre a população civil, sobretudo entre os setores muçulmanos considerados “infiéis”. Do ponto de vista social estas organizações têm, em última instância, um caráter burguês “sui generis”, seus chefes são “senhores da guerra” (como Bin Laden ou os chefes tribais da Alianza Norte e os talebãs no Afeganistão). Suas bases estão nas relações de exploração e opressão, como se pode ver nos métodos de financiamento do EI, que não apenas se apropria da renda do petróleo como cobra uma comissão aos capitalistas e comerciantes para manter a ordem.

Diante de tamanha reação há quem alimente ilusões de que os Estados Unidos e seus aliados são os que irão derrotar o monstro que eles mesmos ajudaram a criar. Porém, a experiência indica que essas ideias não têm nenhum apoio na realidade e são um obstáculo para organizar uma força social e politicamente revolucionária capaz de apresentar uma saída. O preço foi a derrota do primeiro embate da primavera árabe. O combate contra a reação, de uma perspectiva anti-imperialista e da luta pelo poder operário, é uma conclusão elementar para aproveitar as novas oportunidades que seguramente a história brindará.

[1] Traduzido por Val Lisboa de Ideas de Izquierda – nº 20, junho 2015. http://www.laizquierdadiario.com/ideasdeizquierda/medio-oriente-o-la-geopolitica-del-caos/

[2] Ver em Ideas de Izquierda – nº 20, junho 2015 Juan Duarte, “Reseña de ISIS. El retorno de la Yihad”.

[3] Uma explicação simples sobre a divisão entre sunitas e xiitas pode ser encontrada em Tarik Ali, The Clash of Fundamentamisms. Crusades, jihads and modernity. Londres. Verso. 2002. Também em Gilles Kepel, La Yihad, Expansión y declive del islamismo. Barcelona. Ediciones Península. 2001.

[4] O documento é da Agência de Inteligência de Defesa (DIA, pela sigla em inglês), que se encarrega da inteligência militar exterior e está subordinada ao Pentágono. Foi difundido por vários meios de imprensa, entre eles o diário britânico The Guardian.

[5] O desenvolvimento histórico do islã político radical pode ser lido em C. Cinatti, “Islam político, antiimperialismo y marxismo”. 2006.

[6] Segundo o último informe do Conselho de Seguranlça da ONU, publicado em março de 2015, havia pelo menos 25 mil combatentes estrangeiros recrutados em cerca de 100 países para o Estado Islâmico e a Al Qaeda, dos quais 20 mil estariam efetivos em combate, fundamentalmente no EI e, em menor quantidade, na frente Al-Nusra no Iraque e na Síria. Uma síntese deste informe pode ser vista em “Un report: More than 25,000 foreigners fight with terrorists”. The Big Story.

[7] Olivier Roy faz uma análise interessante da A Qaeda no livro Genealogia do islamismo. Barcelona. Ediciones Bellaterra. 1996.




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