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SEMANÁRIO

O voto em Biden e o naufrágio do anti-imperialismo

André Barbieri

O voto em Biden e o naufrágio do anti-imperialismo

André Barbieri

O MES, corrente interna do PSOL, decidiu que sua política para os Estados Unidos passa por chamar o voto em Joe Biden, candidato do Partido Democrata, contra Trump. E essa coisa chamada "anti-imperialismo" ficou para as calendas gregas.

Nos Estados Unidos, o MES/PSOL segue sendo fiel a si mesmo. Para esta corrente, “o novo campo que se abre no continente” tem uma tarefa especial no coração do imperialismo mundial, nas eleições presidenciais: derrotar Donald Trump votando em Joe Biden. Em artigo assinado por Pedro Fuentes, o MES convida toda a juventude que protagonizou o ressurgimento do Black Lives Matter, após o assassinato de George Floyd, e os trabalhadores que entraram em greve contra o racismo policial, a votar no candidato liberal racista do Partido Democrata. Não deixa de agregar, por desencargo de consciência, que depois disso esses setores “vão ter que seguir um curso independente do governo Biden”, por alguma desconhecida arte mágica.

Com essa magnífica lógica, o MES é apenas mais uma corrente a engrossar o coro do “mal menor” nos Estados Unidos, defendendo o voto no mais antigo partido imperialista da história. Para sermos justos, cumpre dizer que essa é apenas a mais grosseira das conclusões de um artigo que ergue para todo o continente a bandeira da “unidade de ação tática com forças burguesas e do progressismo”, repetida inúmeras vezes, inclusive para o Brasil (não à toa, o MES subscreve as alianças eleitorais oportunistas da ala majoritária do PSOL, que vai desde os conciliadores do PT e do PCdoB, até partidos burgueses como PDT, PSB e os golpistas da Rede).

Unidade com forças burguesas é algo que não falta no artigo do MES. Um oportunismo hiperbólico o faz defender, entre outras coisas, que apostemos o futuro da luta de classes no Peru nas mãos do partido de Verónika Mendoza Movimiento Nuevo Perú (do qual o MES é parte), que ocupa cargos no Ministério da Saúde do governo burguês do presidente Martín Vizcarra. Ou que no Chile, a batalha contra Piñera e o regime pinochetista repousaria nas mãos da Convergência Social, corrente interna da Frente Ampla, partido que asfixiou o movimento de massas nas ruas, bloqueou a luta dos trabalhadores junto ao Partido Comunista, e que defende junto à direita chilena (como a Unión Democrática Independiente) uma convenção constituinte antidemocrática dentro da “cocina” parlamentar, para evitar uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana sobre as ruínas do regime. Por mais oportunistas que sejam essas composições com burgueses na América Latina – já debatemos isso com o MES nas eleições municipais no Brasil, que está na chapa para a prefeitura de Cachoeirinha/RS com o partido burguês golpista da Rede – nada supera o chamado de voto em Biden.

Não se enfrenta Trump com Biden

Enfrentar Trump e a extrema direita racista dos Estados Unidos é uma conclusão básica para qualquer um que se defina de esquerda. O MES considera que a discussão termina onde ela apenas começou. Como enfrentar Trump é a pergunta estratégica. O critério do MES é unificar-se com os setores burgueses que supostamente se diferenciariam de um curso totalitário. Mas esse critério dilui a posição da esquerda dentro das fronteiras do que permite as instituições do regime bipartidário imperialista, que são responsáveis pelo trumpismo. É um critério que se opõe ao combate frontal ao imperialismo.

Trump não encabeça um governo “fascista”, como diz o MES para justificar seu oportunismo. Trata-se de um governo bonapartista débil, um líder autoritário fruto da crise de autoridade estatal norte-americana, em que diferentes frações de classe do capital não conseguem encontrar uma forma de impor um representante hegemônico. Trump não se apóia sobre bandas armadas arregimentadas na pequena burguesia arruinada para atacar e atomizar as organizações do movimento operário. É um reacionário que utiliza mecanismos institucionais para implementar suas políticas (as pequenas organizações supremacistas que o apoiam, como os Proud Boys, estão limitadas por essas instituições, e se subordinam a elas). Os tribunais, a Corte Suprema, o Congresso, o FBI e o próprio processo eleitoral antidemocrático – todas essas instituições que foram consideradas “baluarte” da democracia são hoje os instrumentos que Trump utiliza para exacerbar a restrição que representam aos direitos democráticos mais elementares. Biden é a outra cara desse regime imperialista.

Depois de fazer uma crítica cerimonial à “política imperial” do Partido Democrata e falar com gravidade contra sua “defesa das grandes corporações”, o MES afirma que “sem nos comprometermos com o programa e o futuro governo de Biden (caso ganhe), a ação eleitoral possível é votar por Biden para derrotar Trump”. Lamentamos ofender o raciocínio mas, noblesse oblige, o voto em Joe Biden torna o MES comprometido com o programa imperialista de Joe Biden, e com seu Partido Democrata. Para “derrotar Trump”, o MES chama voto na “política imperial que defende as grandes corporações”, e incorre naquilo que dizia um engenhoso francês, a “gravidade é um mistério do corpo para esconder os defeitos do espírito”.

A ruptura da independência de classe não é algo que incomoda o MES, mas é nessa ruptura que se compromete com o “shoot ’em in the leg Joe”, um candidato que convida a polícia a “atirar na perna, não no peito” dos negros que considera criminosos. Biden tem um longo currículo de políticas segregacionistas no Senado desde a década de 1970, e é autor da Crime Bill de 1994, que incrementou a polícia de encarceramento em massa dos negros desde a administração Clinton. Foi parte direta das intervenções imperialistas de Barack Obama no Oriente Médio, sendo o vice do presidente apelidado de “senhor dos drones”, responsável por guerras e intervenções no Iraque, na Síria, na Líbia, no Iêmen, no Afeganistão, lembrado também na América Latina pela legalização dos golpes em Honduras e no Paraguai. Na posição de vice, traz consigo Kamala Harris, atual senadora pela California, e que nesse Estado é reconhecida pela “mão dura” junto à polícia e por aumentar exponencialmente a perseguição e encarceramento dos negros. “Progressistas”, not so much.

Uma corrente de esquerda que ambiciona construir uma tendência revolucionária nos Estados Unidos sabe que é estratégico cravar firmemente a bandeira do anti-imperialismo. É impossível relegar a um segundo plano esse ponto programático fundamental. Se há uma lição fundamental do desenvolvimento do movimento operário no século XX é que não há nem pode haver uma política socialista sem uma luta anti-imperialista conseqüente. O MES o ignora solenemente. Na realidade dos fatos, está partilhando a responsabilidade por um eventual governo imperialista de Biden.

Nessa negligência diante do combate ao imperialismo, o MES segue, mais uma vez, a orientação da direção reformista do Democratic Socialists of America (DSA), a principal organização socialista nos EUA, que cada vez mais se apresenta na prática como ala esquerda do Partido Democrata. Num documento divulgado em outubro, mais de 100 personalidades dirigentes do DSA, incluindo membros do Comitê Político Nacional, assinaram uma declaração para “organizar-se contra Trump”. A três semanas das eleições presidenciais, isso significa organizar o aparato do partido para fazer campanha de votos em Biden. A mensagem é clara: “Os membros abaixo-assinados do DSA se comprometem a voluntariamente dedicar seu tempo a fazer chamadas telefônicas, enviar mensagens de textos e percorrer as casas para organizar a derrota de Trump”. Apesar de Biden ser odiado na esquerda norte-americana, membros renomados do DSA, como Dan La Botz e o novo senador por Nova York, Jabari Brisport, anunciaram publicamente que vão votar em Biden.

O fracasso da estratégia parlamentar de eterno desgaste do DSA, que tinha seu núcleo no chamado “inside/outside” (construção de uma organização socialista por dentro do Partido Democrata) foi um fracasso completo. A adesão acrítica do MES à direção do DSA é um eco de apoio, mesmo débil, à política de sua direção de se vincular cada vez mais ao Partido Democrata, e à renúncia da construção de uma esquerda socialista e revolucionária contra esse partido imperialista, “coveiro dos movimentos sociais” desde a década de 1960.

Do apoio a Sanders ao “voto em Biden”

havíamos criticado o MES por sua defesa do ex-candidato à nominação Democrata, Bernie Sanders, arrastando-se à cauda da revista Jacobin e da direção reformista do DSA. Não soltaram nenhum balanço do estrepitoso fracasso do sanderismo. Refrescamos a memória. A campanha de Sanders revigorou o Partido Democrata em meio a uma crise profunda. Serviu para dar novo fôlego às ilusões de que os Democratas poderiam estar em função dos interesses dos trabalhadores e da juventude. Sanders utilizou suas propostas como veículo de assimilação da raiva antisistêmica de amplos setores no interior do mais antigo partido imperialista do mundo, evitando que ela se expressasse de maneira independente da burguesia nacional.

Depois de cumprir esse serviço, foi esmagado nas prévias internas pelo establishment do Partido Democrata. Uma vez fora da disputa, imediatamente se alinhou no total apoio a Joe Biden, que havia criticado em vários debates anteriores, assim como havia apoiado Hillary Clinton em 2016. Ao contrário de “empurrar o establishment Democrata à esquerda”, foi o Partido Democrata que empurrou Sanders, assim como Alexandria Ocasio-Cortez, à direita. Ambos apoiam um candidato graúdo do imperialismo que nega tudo o que disseram defender, como o Medicare for all (plano de saúde público universal e gratuito) ou o Green New Deal (medidas parciais de combate à crise climática). Como sempre, desde George McGovern, Jesse Jackson, e tantos outros, o Partido Democrata liquidou e absorveu em seu seio aqueles que representavam sua ala esquerda.

Sanders também tinha seu prontuário de atuações imperialistas. Se havia se oposto à autorização da guerra do Iraque em 2002, também é verdade que votou a favor do Iraq Libertation Act de 1998, que chamava a “eliminar o regime encabeçado por Sadam Hussein”, o que deu respaldo às operações da CIA, um regime de sanções assim como de bombardeios. Também votou várias vezes a favor da guerra na Sérvia, da mesma maneira pela Authorization for Unilateral Military Force Against Terrorists [Autorização para uma Força Militar Unilateral contra os Terroristas] (AUMF) de George W. Bush em 2001. E a lista continua. Votou a favor do incremento da segurança nas fronteiras, em meio à crise migratória e à xenofobia de Trump contra os mexicanos e centro-americanos. Uma oposição de fato à política imperialista exigiria o contrário do que fez Sanders durante a ofensiva golpista de Trump na Venezuela, momento em que aprovou a “ajuda humanitária” (política compartilhada por Ocasio-Cortéz) atrás da qual se disfarçava a política de “regime change” de Washington, que tinha como objetivo substituir o autoritarismo repressivo de Maduro pelo de Juan Guaidó. A cara de Biden estava atrás da máscara sanderista.

A metamorfose do “mal menor” do MES foi se desenvolvendo, e do apoio a Sanders se transformou no voto em Biden. As afirmações rituais contra a segregação racial e o racismo estatal morrem no chamado a apoiar a candidatura de um racista consumado que busca restaurar a legitimidade das instituições imperialistas norte-americanas. Antes debatíamos com a ilusão em Sanders, que buscava revitalizar o Partido Democrata. Agora temos de descer tão baixo a ponto de discutir o problema de votar em uma figura imperialista que se opunha a que crianças negras estudassem com crianças brancas. Dentro do miasma da “unidade de ação tática com forças burguesas e progressistas” (progressistas!), impossível não enquadrar o cretinismo do MES no interior da reflexão do marxista italiano Antonio Gramsci, que sabia bem guardar-se da miséria do possível:

“Um mal menor é sempre menor que um subseqüente possivelmente maior. Todo mal resulta menor em comparação com outro que se anuncia maior e assim até o infinito. A fórmula do mal menor, do menos pior, não é mais que a forma que assume o processo de adaptação a um movimento historicamente regressivo cujo desenvolvimento é guiado por uma força audaciosamente eficaz, enquanto que as forças antagônicas (ou melhor, os chefes das mesmas) estão decididas a capitular progressivamente, em pequenas etapas e não de uma só vez [...]”. (Cadernos do Cárcere, Caderno 16, §25).

Com licença ao MES, por uma política anti-imperialista

E a “adaptação ao movimento historicamente regressivo” levou o MES a um apoio eleitoral franco e sem rebuços ao partido dos monopólios e de Wall Street. Com a política de “mal menor” pró-Democratas do MES, não há lugar para o anti-imperialismo. Não há lugar para o enfrentamento às instituições que hoje são manuseadas por Trump para aplicar sua política contra os trabalhadores dos EUA e os povos do mundo. Uma esquerda à altura dos acontecimentos, nessa etapa de decadência hegemônica do imperialismo norte-americano e de aplicação de austeridade por um período extenso de recessão pandêmica, deve dar a centralidade que merece à luta estratégica que se coloca em torno do anti-imperialismo. Isso é condição para forjar uma fração própria num contexto sócio-político em que os setores mais conscientes da juventude dos Estados Unidos começam a ver com simpatia a palavra "socialismo" como alternativa a um capitalismo decadente (expressando-se politicamente no Black Lives Matter), mas que foi consideravelmente frágil na oposição à política do imperialismo norte-americano.

O MES, se tivesse qualquer tipo de influência nos Estados Unidos, contribuiria para desacelerar qualquer avanço de consciência anti-imperialista. Independente das frases piedosas sobre um “caminho independente”, chamando voto em Biden é parte das correntes que impedem o surgimento de um partido socialista e revolucionário que enfrente os Democratas.

Felizmente nem toda a esquerda capitula ao partido dos Obama, dos Biden e dos Clinton. O Left Voice, organização irmã do MRT nos Estados Unidos, que divulgou seu programa anti-imperialista e revolucionário para a situação atual (ver aqui), diz claramente que Biden não é alternativa a Trump. Enfrentar a extrema direita trumpista exige delimitar-se do Partido Democrata, e batalhar por uma política de independência de classe que prepare os combates futuros, quer sob uma administração Republicana, quer Democrata. Discutimos abertamente com os integrantes mais conscientes do DSA sobre a necessidade de romper qualquer ilusão nesse partido imperialista – através do qual nunca se poderá construir uma organização socialista. Acreditamos que essa luta é indispensável para o surgimento de uma esquerda dos trabalhadores, socialista e revolucionária nos Estados Unidos, o que obviamente deve ser de interesse de todos os socialistas revolucionários do mundo. Trata-se de um mecanismo elementar da teoria da revolução permanente de Trótski para a nossa época.

Levar essa tarefa adiante exclui de antemão a “unidade tática com forças burguesas”, inclusive as que supostamente se opõem ao “curso totalitário”. Essas fórmulas são os floreios da teoria do mal menor no século XXI, sem cujos adornos o figurino do MES apareceria no palco tal como é: coligado no Brasil com golpistas, votante nos Estados Unidos em imperialistas.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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