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SEMANÁRIO

O suspeito de sempre: O capitalismo do desastre

Esteban Mercatante

O suspeito de sempre: O capitalismo do desastre

Esteban Mercatante

A pandemia do coronavírus pegou o mundo de surpresa; em dezembro alguns médicos na China começaram a detectar os sintomas de algo que não parecia ser uma gripe normal e que dois meses depois se expandia pelo mundo. Mas não se pode dizer que se trata de um “cisne negro”. Não depois dos surtos de SARS em 2003 e do H1N1 em 2009. Também poderíamos mencionar uma epidemia de alcance continental no surto de Zika (entre 2015-2016) e nos frequentes surtos de dengue, assim como o Ebola em regiões da África, algumas das 1.483 epidemias detectadas pela Organização Mundial da Saúde entre 2011 e 2018 em 172 países. O COVID-19, uma variedade do coronavírus já detectada em animais, é a última e mais ameaçadora de todas as epidemias recentes. Essa aceleração dos surtos virais que, como assinalam Lewontin e Levins em “a biologia em questão”, vai à contramão do que as referências em biologia esperavam há pouquíssimo tempo e o culpado por trás disso é bem conhecido. Na cena do crime se encontram as pegadas do capitalismo em todas as partes, assim como ocorre em todas as emergências ambientais de gravidade crescente que não são nenhuma catástrofe natural.

Gado de corte

O economista Isaac Johsua pontua que a penetração do capital em todas as áreas do planeta é o que distingue a fase atual da globalização do capital, iniciada em fins dos anos 70 e acelerada a partir dos 90.

A globalização do século XIX estendeu a relação de salário a novos territórios (o continente americano), deixando subsistir às suas margens a imensidade de relações de produção “tradicionais” (Índia, China, etc.) A atual, por sua vez, penetra nos antigos espaços sociais, destrói as antigas relações de produção e, fazendo-as esgotar, redistribui à maneira capitalista os elementos dispersados. A dinâmica do capital se aproxima ao seu ideal: De que tudo sobre a terra seja ou capital ou fruto de seu valor

 [1]]

Isto significa que, como nunca antes, todos os rincões do mundo devem considerar-se um espaço produzido pelo capital, o qual tem enormes consequências para o metabolismo da natureza, já que atua sobre forças que escapam a seu controle. Como observa David Harvey na nota que reproduzimos neste Semanário, “o capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz em um contexto de consequências não intencionadas (como a mudança climática) e com o fundo de forças evolucionárias autônomas e independentes”.

Sem dúvida, tudo que for compreendido dentro do rótulo do agronegócio estabelece alguns de seus vínculos mais diretos com esta tendência a produção “em série” de pandemias. É assim por vários motivos. A mais óbvia, o avanço da fronteira agrícola, feito graças à subjugação de populações camponesas e semi-camponesas sem posses em grande escala a partir dos anos ‘80, mas também ao desenvolvimento de sementes mais resistentes que junto com os agroquímicos permitiram o avanço da agricultura em grande escala sobre terrenos aonde antes não era possível.

Como isso se relaciona com a questão das enfermidades virais? Em primeiro lugar, porque, segundo um informe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), 75% das novas enfermidades infecciosas são de origem animal, é dizer que podem se transmitir de animais para pessoas. E a perda de habitat natural de espécies selvagens, produzida pela expansão da agricultura, é uma das forças que impulsiona uma maior transmissão. Como afirma John Reinmann, “os animais selvagens são forçados a viver fora de suas áreas vitais previas e entram em contato direto ou indireto com animais domesticados”.

Porém a destruição de bosques e outros ecossistemas também alimenta a expansão do vírus por outra via: A destruição da biodiversidade. “Quando fazemos coisas em um ecossistema que erode a biodiversidade – tal como cortar bosques ou substituir o habitat com campos agrícolas – tendemos a nos desfazer de espécies que fazer um papel protetor”, afirma Richard Ostfield, expert na doença de Lyme. O já mencionado artigo da PNUMA aponta, neste mesmo sentido, que “os bosques são cortados para produção de lenha, as paisagens devastadas pelos interesses agrícolas e mineiros, e as tradicionais zonas tampão – que já separaram os humanos dos animais e seus patógenos – são notoriamente reduzidas ou desaparecem.

Mas tudo que foi dito até agora é apenas a ponta do iceberg. É na industrialização das atividades granjeiras, que alcançou escalas gigantescas, aonde se encontra provavelmente o maior causador da produção em série dos vírus. Em Big Farms make Big Flu (Grandes fazendas, grandes gripes), Rob Wallace sustenta o argumento:

A produção industrial já está implicada no aumento da diversidades de gripes que circulam entre seres humanos. Nos últimos quinze anos uma quantidade sem precedentes de variedades de influenza capazes de infectar humanos surgiram graças ao arquipélago global de granja industriais”

 [2]]

Animais aglomerados, mantidos em condições pouco saudáveis, são um caldo de cultivo para a expansão de doenças, ao mesmo tempo que “deprimem a resposta imune” [3]]. Isso por si só é pouco, mas a aplicação em larga escala de antibióticos tem gerado imunidade aos mesmos nas bactérias [4]].

Um exército de defensores do agronegócio sustentam que não há maneira de alimentar os quase 8 bilhões de pessoas se não é expandido o agronegócio. Mas a necessidade de se aproveitar os avanços técnicos não significam que a única forma para serem aplicados seja do jeito que o capital determina, para o qual a ganância é o maior determinante. Numerosos desenvolvimentos biotecnológicos permitem a possibilidade de manter a produtividade agropecuária sem incorrer em todos os impactos ambientais e sanitários que hoje são comuns.

Prevenções “gravemente insuficientes”

Se a produção capitalista do espaço cria o caldo de cultivo para a propagação dos Vírus, as restrições que impões a disciplina do capital sobre os pressupostos públicos determina a (in)capacidade de resposta para enfrentar emergências. Em setembro do ano passado, em um informe sobre o nível de preparação ante uma pandemia devastadora que era uma possibilidade cada vez mais real para a OMS, o diagnóstico era certeiro: a Preparação dos sistemas de saúde era “gravemente insuficiente”. Apesar das vidas e custos econômicos que uma preparação adequada pode salvar, “os governos continuam a se descuidar”. Se trata de um texto escrito na linguagem da diplomacia, branda, que evita fazer um diagnóstico detalhado da desgraça que vem se aplicando sobre os sistemas sanitários, há muito tempo submetidos a uma dupla pressão.

Por um lado no caso das prestações públicas, tendem a se deteriorar como resultado da severidade fiscal. No caso europeu, convertida agora no epicentro da expansão do COVID-19, na última década o gasto sanitário foi cortado, o que não ocorria desde 1975. Em países como Espanha, Irlanda, Grécia, Portugal ou Itália, a década que se seguiu após a quebra do banco Lehman Brothers fez estragos no gasto público em saúde. Recentemente em 2019 alguns destes países começaram a recuperar os níveis de gasto per capita que tinham antes da crise. Temos em conta que mesmo neste clube de países imperialistas aonde os efeitos da Grande Recessão foram severos, seguem contando com os sistemas de saúde mais sólidos. Mas aqui também a agenda de austeridade fez seus estragos.

Por outro lado, o que marca a agenda nas últimas décadas foi a tendência em privatizar a prestação de saúde como negócio, restringindo o investimento público. Na Argentina, as taxas dos planos de saúde aumentaram nos anos 90 graças às fortes desregulações que se mantém até hoje, reforçadas na era Macri. Nos EUA a implementação do chamado “Obamacare”, um compromisso mais do que moderado para assegurar prestações mínimas em um sistema de saúde completamente privatizado, foi taxada de “socialista”, o mesmo ocorre agora com a proposta de Bernie Sanders de assegurar “Medicare (atendimento de saúde) para todos” em um sistema público. Até mesmo a realização do teste para o coronavírus pode trazer gastos consideráveis.

O estado de calamidade no qual sistemas de saúde com décadas de pouco investimento em saúde pública encontram um terreno favorável para que a pandemia possa levar vários países à um colapso. A Itália possuía, em 1970, 10 camas para cada 1000 habitantes, enquanto hoje possui 3. O Estado espanhol passou de 4,6 para 3 cama a cada milhar. Até a a Alemanha caiu de 11,5 parra 8,3. Se isso é o que ocorreu dentro da União Europeia é seguro afirmar que na América latina e na África pode ter sido muito pior.

Desde Janeiro podemos ver que a preparação fui muito pior do que “gravemente insuficiente”. Os casos “de sucesso” como Coreia do Sul ou Alemanha (o primeiro apelando a métodos quase policiais e o segundo apoiado em seu poderio econômico de ser uma das maiores potências da Europa), mostram que não é um problema de falta de capacidade técnica. Mas com pressupostos rigorosamente restringidos (não vai por isso que elevarão o gasto, financiado com o aumento de impostos sobre grandes patrimônios ou ganâncias empresariais pelas quais todos os estados vêm competindo entre si, reduzindo a décadas os impostos e legislações em um instrumento chamado de “dumping fiscal”) e insumos limitados, a maior parte dos governos descartaram tomar medidas de resposta imediata como a realização de testes em larga escala (#TestesMassivosJa). O que não foi feito na Itália nem na Espanha, EUA, Argentina e tão pouco no Brasil, se não se quer gastar a alternativa passa, como nos tempos medievais, no isolamento social massivo e forçado. Mas isso é economicamente devastador, e por isso essa decisão foi postergada em alguns dos primeiros países afetados até que tal decisão se mostrou inevitável. Mas até aí os sistemas sanitários já se encontravam colapsados.

O Negócio da Pandemia

Uma retração da economia mundial já estava nos prognósticos para este ano ou no próximo. O coronavírus foi um estopim, não a principal causa. Embora as medidas tomadas pelos Estados tenham amplificado seus efeitos e projetam uma crise que ao que tudo indica será muito profunda, com efeitos duradouros que poderão ser piores do que os causados pela Grande Recessão de 2008.

Entretanto, nem todos perdem. E não dizemos isso só por causa de alguns dirigentes estado-unidenses, que, contando com a informação privilegiada reservada a senadores, fizeram ótimos negócios vendendo suas ações a tempo, como os republicanos Richard Burr e Kelly Loeffler, de acordo com o revelado esta sexta pelo jornal Washington Post.

Quem tem a ganhar é sobretudo as grandes empresas farmacêuticas. Como afirma Gerald Posner, autor de Pharma: Greed, Lies, and the Poisoning of America (Indústria Farmacêutica: Avareza, mentiras e o envenenamento da América).

Partindo da China até os EUA, passando pela UE, todos disputam para ver quem põe mais dinheiro no bolso de quem promete uma vacina para o COVID-19. Uma firma alemã recebeu 80 milhões de euros da UE para desenvolver uma, enquanto Trump e Xi Jiping anunciam que estão testando protótipos em cobaias humanas. Se trata de um fundo público de ganâncias privadas. De acordo com Posner, apenas nos EUA, desde a década de 1930, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) investiram 900 bilhões de dólares (duas vezes o PIB da Argentina) em estudos que as companhias farmacêuticas se utilizaram para patentear os medicamentos pelos quais lucram. Apenas entre 2010 e 2016 os fundos públicos representaram mais de 100 bilhões de dólares nesses estudos [5]]

Dos setores do capital que “perdem” com a pandemia, desde as linhas aéreas e hotéis até os bancos e indústrias multinacionais que sofreram interrupção de sua cadeia de produção, serão devidamente recompensados, e quando for necessário serão resgatados por meio da nacionalização como no caso da Alitalia, Os bancos centrais dos EUA, Europa, Japão e outros anteciparam que vão injetar bilhões de dólares de liquidez comprando bônus e ações privadas. O resgate às empresas não promete chegar aos milhões de trabalhadores e trabalhadoras que poderiam perder o emprego neste ano (25 milhões pelo mundo segundo estimativas conservadoras). Com a crise sanitária em pleno desenvolvimento, e sendo também uma incógnita o alcance dos impactos econômicos que trarão as medidas de quarentena e fechamento de fronteiras, os mesmos estados que retrocederam nos investimentos aos sistemas de saúde avaliaram durante semanas críticas a forma de ação mais econômica para gerenciar a crise do coronavírus, tenham se dedicado a salvar bancos e grandes empresas. Também foram anunciadas medidas fiscais como enviar um cheque aos contribuintes devolvendo impostos (o que deixa de fora a quem paga menos impostos por terem menos a ser devolvido), que mostram que quando a conta aperta, aonde estavam os recursos que em tempos “normais” se retraiam em nome da austeridade. Mas o grosso dos novos gastos está dedicado em salvar a classe capitalista, a mesma a qual com o pânico que destruiu em mais de um terço o mercado financeiro responsável por amplificar os efeitos da crise. Muitas das firmas que poderiam ter quebrado e foram salvas pelos governos são “empresas zumbis” que há tempo vinham sobrevivendo apenas por causa do baixo custo de financiamento proporcionado pelo Fed.

A resposta social à emergência sanitária já começa a deixar em evidência algo que se vai se mostrando mais claro com o correr das semanas e meses, enquanto se agravam as penúrias, que durarão muito mais do que a própria pandemia: tanto em questão da exposição e vulnerabilidade ao contágio, como no manejo dos traumas econômicos gerados, como se vê nas fartas evidências das linhas divisoras de classe. Como afirma Harvey, “até os neoliberais de carteirinha podem ver que há algo de muito podre na forma na qual se está respondendo essa pandemia”. Isto é cada vez mais certo a medida em que se sucedem (ou fracassam) as quarentenas, a vida siga seu curso e há de lidar com o após essa pandemia.

Grandes epidemias existem desde antes do capitalismo, mas ele não só tem ampliado a escala geográfica através da qual se expandem as pandemias; como também 1) aumentou a produção em série das mesmas; 2) em sua fase neoliberal cerceou as capacidades para seu enfrentamento (capacidades essas que foram geradas pelos próprios Estados capitalistas), ampliando o colapso sanitário; 3) Pelas próprias necessidades do capital (de não parar nunca sua roda de valorização) que agrava as devastações econômicas que foram geradas pela pandemia, que poderiam se processar de outra forma em um sistema que não esteja baseado na ganância e na especulação creditaria; 4) Deixa como em todo choque financeiro alguns poucos grandes ganhadores ao lado de um oceano de perdedores.

Enfrentar seriamente a pandemia requer outra lógica muito distinta a qual se desenvolveu na maioria dos países, começando pelo teste em larga escala para ter uma rota de fuga mais certeira. Para sustentar a produção social fundamental e assegurar a provisão de insumos sanitários sem que se convertam em um negócio para os negociantes de sempre, é chave o protagonismo de setores da classe trabalhadora que controlem a produção (como já vem se apontando em alguns países) [https://www.laizquierdadiario.com/Video-Coronavirus-reorganizar-la-produccion-bajo-control-obrero-para-paliar-la-crisis-espanola]. Para cortar pela raiz as condições que levam a uma produção em série das mesmas é necessário a organização da classe trabalhadora para acomodar o conjunto dos explorados em massa na luta por acabar com um sistema que acomete a toda humanidade e sua natureza para o único fim de aumentar sem limite a ganância. “Expropriar os expropriadores” capitalistas como dizia Marx, para impor um regime sem exploradores nem explorados.


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FOOTNOTES

[1[Isaac Johsua, Une trajectoire du capital, París, Éditions Syllepse, 2006. Citado por Juan Chingo en “Crisis y contradicciones del capitalismo del siglo XXI”, Estrategia Internacional 24, diciembre 2007.

[2[Nova York, Monthly Review Press, 2016, p. 59.

[3[Idem, p. 57.

[4[Idem, p. 243.

[5[Lerner, Sharon, “Las grandes farmacéuticas se aprestan a lucrar con el coronavirus”, The Intercept, 13/3/2020.
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